segunda-feira, 4 de abril de 2022
Democracias precisam se unir contra ameaças
O cofre da humanidade existe há quase 15 anos. Construído pelo governo da Noruega em 2008 como banco global de sementes, ele porta o nome oficial de Svalbard Global Seed Vault. Foi idealizado para sobreviver a todo tipo de apocalipse — climático, sanitário, nuclear —, por isso está prudentemente fincado 130 metros acima do nível do mar, na encosta de uma montanha do arquipélago norueguês de Svalbard, no meio do Oceano Ártico. Trata-se do lugar mais extremo, remoto e inóspito do Hemisfério Norte. Seus 2.700 residentes fixos e quase 300 ursos-polares às soltas encaram a cada ano dois meses e meio de escuridão ininterrupta (chamada Noite Polar), seguida de cinco meses de sol escancarado 24 horas ao dia. Coisa para vikings de raiz.
Segundo o jornalista Bruno Garattoni, um dos poucos brasileiros que se enfiaram naquelas paragens, é preciso atravessar um túnel de 120 metros escavado na montanha congelada e passar por cinco portas à prova de explosões para acessar o cofre/bunker. Ali estão as famosas 880 mil sementes de 5.403 espécies vegetais colhidas nos quatro cantos do planeta — entre elas, nosso arroz, feijão e milho enviados pela Embrapa. Trancado o ano todo — exceto para dias de inspeção ou recepção de material novo —, esse banco da vida não deve ser dilapidado antes da hora fatal. Até hoje, ocorreu uma única retirada, em 2015, quando a Síria devastada pela guerra sacou sementes de algumas espécies do Oriente Médio.
Diante da alarmante decadência política no Brasil — galopante, reles e destrutiva —, cabe perguntar que tipo de sementes da democracia temos em estoque para uso emergencial. Segundo a historiadora e jornalista americana Anne Applebaum, Prêmio Pulitzer e autora de “O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política” (Record, 2021), “não existe um arco da História”. “Nada é inevitável em se tratando de democracia ou ditadura”, escreve ela. “O que acontece amanhã depende do que todos nós fazemos hoje.” Applebaum observa que uma ordem mundial liberal nada tem de natural, uma vez que leis de nada servem sem alguém para fazê-las cumprir. A menos que democracias se defendam juntas, as forças da autocracia haverão de destruí-las.
A edição mais recente da revista The Atlantic traz o ensaio “Os bad guys estão ganhando”, em que ela avisa que as revoluções democráticas são contagiosas também às avessas: quando derrotadas num país, torna-se mais fácil impedir que brotem noutro. Cinco são os autocratas que lhe servem de fio condutor — o venezuelano Nicolás Maduro, o presidente da Bielorrúsia, Alexander Lukashenko, o russo Vladimir Putin, o chinês Xi Jinping e o turco Recep Erdogan. Para quem lê o texto a partir de um “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, salta aos olhos que falta alguém entre os retratados por Applebaum. Ou não. Ela pode ter considerado Jair Bolsonaro medíocre e delirante em demasia para incluí-lo entre os bad guys de alguma envergadura.
Ficamos então nós, sozinhos, presididos por um capitão incendiário que jura botar a cara no fogo por um ministro defenestrado quatro dias depois. Na verdade, o único exercício diário do personagem tem sido botar o Brasil no fogo da incivilidade educacional, cultural, ambiental e institucional. Cabe registrar a expressão certeira cunhada nesta semana pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, referindo-se à incessante destruição do país por dentro: “cupinização institucional”.
Faltando 180 dias até o esperado 2 de outubro do primeiro turno eleitoral, e 240 dias para a posse do presidente e dos governadores eleitos, é hora de juntar o maior número de sementes democráticas e protegê-las da avalanche de pragas. Antes que se multipliquem ainda mais nos três Poderes. Melhor nem listar aqui uma sinistra plêiade de egressos do atual governo, com folha corrida capaz de assombrar qualquer cidadão normal. Se eleito(a)s, farão do Congresso Nacional um pântano ainda mais amoral que a legislatura atual.
Daí a utilidade de evocar a iniciativa dos noruegueses. Enquanto a Terra for o único lar que temos, e o céu nos servir de generoso teto, vale colher e armazenar o que queremos preservar. Antes que essas sementes sadias se tornem espécies em extinção.
Segundo o jornalista Bruno Garattoni, um dos poucos brasileiros que se enfiaram naquelas paragens, é preciso atravessar um túnel de 120 metros escavado na montanha congelada e passar por cinco portas à prova de explosões para acessar o cofre/bunker. Ali estão as famosas 880 mil sementes de 5.403 espécies vegetais colhidas nos quatro cantos do planeta — entre elas, nosso arroz, feijão e milho enviados pela Embrapa. Trancado o ano todo — exceto para dias de inspeção ou recepção de material novo —, esse banco da vida não deve ser dilapidado antes da hora fatal. Até hoje, ocorreu uma única retirada, em 2015, quando a Síria devastada pela guerra sacou sementes de algumas espécies do Oriente Médio.
Diante da alarmante decadência política no Brasil — galopante, reles e destrutiva —, cabe perguntar que tipo de sementes da democracia temos em estoque para uso emergencial. Segundo a historiadora e jornalista americana Anne Applebaum, Prêmio Pulitzer e autora de “O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política” (Record, 2021), “não existe um arco da História”. “Nada é inevitável em se tratando de democracia ou ditadura”, escreve ela. “O que acontece amanhã depende do que todos nós fazemos hoje.” Applebaum observa que uma ordem mundial liberal nada tem de natural, uma vez que leis de nada servem sem alguém para fazê-las cumprir. A menos que democracias se defendam juntas, as forças da autocracia haverão de destruí-las.
A edição mais recente da revista The Atlantic traz o ensaio “Os bad guys estão ganhando”, em que ela avisa que as revoluções democráticas são contagiosas também às avessas: quando derrotadas num país, torna-se mais fácil impedir que brotem noutro. Cinco são os autocratas que lhe servem de fio condutor — o venezuelano Nicolás Maduro, o presidente da Bielorrúsia, Alexander Lukashenko, o russo Vladimir Putin, o chinês Xi Jinping e o turco Recep Erdogan. Para quem lê o texto a partir de um “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, salta aos olhos que falta alguém entre os retratados por Applebaum. Ou não. Ela pode ter considerado Jair Bolsonaro medíocre e delirante em demasia para incluí-lo entre os bad guys de alguma envergadura.
Ficamos então nós, sozinhos, presididos por um capitão incendiário que jura botar a cara no fogo por um ministro defenestrado quatro dias depois. Na verdade, o único exercício diário do personagem tem sido botar o Brasil no fogo da incivilidade educacional, cultural, ambiental e institucional. Cabe registrar a expressão certeira cunhada nesta semana pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, referindo-se à incessante destruição do país por dentro: “cupinização institucional”.
Faltando 180 dias até o esperado 2 de outubro do primeiro turno eleitoral, e 240 dias para a posse do presidente e dos governadores eleitos, é hora de juntar o maior número de sementes democráticas e protegê-las da avalanche de pragas. Antes que se multipliquem ainda mais nos três Poderes. Melhor nem listar aqui uma sinistra plêiade de egressos do atual governo, com folha corrida capaz de assombrar qualquer cidadão normal. Se eleito(a)s, farão do Congresso Nacional um pântano ainda mais amoral que a legislatura atual.
Daí a utilidade de evocar a iniciativa dos noruegueses. Enquanto a Terra for o único lar que temos, e o céu nos servir de generoso teto, vale colher e armazenar o que queremos preservar. Antes que essas sementes sadias se tornem espécies em extinção.
Privilegiados da bananeira
A elite brasileira gosta de ostentar privilégios. Acha lindo escola e saúde pública na Europa, o estado de bem-estar social, mas apoia o bolsonarismo. Acha fofo os europeus respeitarem a faixa de pedestre, mas comporta-se como selvagem no trânsitoLira Neto
Putin está nos matando
O mais importante deles para mim foi o belo trabalho de Orlando Figes sobre a história da cultura russa. Existe em inglês sob o título “Natasha’s dance”. Uma boa parte dos livros era sobre política, sobretudo oposição a Putin. Um deles me levou à releitura, nestes tempos de invasão da Ucrânia. Chama-se “A invenção da Rússia — A ascensão de Putin e a época das fake news”. Seu autor, Arkady Ostrovsky, ganhou o Prêmio Orwell pelo trabalho.
Interessante como quase tudo estava lá. A Crimeia já havia sido anexada, e Putin não estava disposto a parar por aí.
Ostrovsky o apresenta como um produto da mídia russa, inventado pela KGB, que o transformou numa espécie de James Bond do lado de lá, depois de sua passagem como espião na Alemanha.
Espiões russos eram muito queridos no país, sobretudo depois de uma série chamada “Dezessete momentos de primavera”. O herói, Maxim Isaev, infiltrou-se no alto-comando nazista com o nome de Max Otto Von Stierlitz. Sua imagem é cultuada como a de um grande herói.
Putin encarnou o personagem, posando sem camisa, lutando judô, e mergulhava em busca de tesouros. Na época, era o homem certo para salvar a Rússia dos radicais islâmicos da Chechênia.
Quando digo que estava tudo lá, quero dizer que Putin depois de 2014 já dizia que, em caso de avanço da Otan na área de influência russa, não hesitaria em usar armas nucleares e, o que é pior, com algum apoio popular.
Na análise da personalidade de Putin, Ostrovsky conclui que ele não é um Stálin, embora esteja pronto para exercer violência seletiva, dentro e fora da Rússia. É um stalinismo pós-moderno, que prefere métodos mais sutis de controle, sobretudo o da televisão.
Quando o livro de Ostrovsky estava no prelo, havia ainda protestos em mais de cem cidades da Rússia. A maioria dos manifestantes tinha 17, 18 anos e nasceu nos primeiros anos de Putin no poder. Os garotos não se dispunham a aceitar a propaganda, nem tinham o cinismo e medo das gerações anteriores. Muitos devem estar presos agora.
Se tivesse dado mais atenção aos argumentos de Ostrovsky, teria previsto a guerra na Ucrânia e, com ela, a ameaça nuclear contra o Ocidente. O que nem de longe me passou pela cabeça é que Putin, mesmo sem lançar bomba atômica, tinha uma enorme possibilidade de fulminar os ucranianos e de nos matar aos poucos.
Como não trabalhei a ideia de uma guerra na Ucrânia, não previ também suas consequências sobre o clima, sua capacidade de agravar o aquecimento global.
De repente, a guerra trouxe dúvidas sobre a segurança alimentar a muitos países. A Alemanha se dispõe a rever algumas regras ambientais para acelerar sua produção agrícola.
Com a necessidade de oferecer uma alternativa aos europeus para o gás russo, Biden deve estimular a produção americana para exportá-la na forma de líquido. Com isso, suas metas ambientais terão de ser reduzidas e adaptadas à nova realidade.
Sem falar nos gastos militares, que crescerão na Alemanha e noutros países europeus, assim como nos Estados Unidos. É difícil combater o aquecimento global aumentando a produção de combustíveis fósseis, assim como investir na transição da economia em plena corrida armamentista.
Depois da Copa do Mundo, as eleições brasileiras foram impactadas por fake news. As fake news já eram um instrumento importante para a KGB desde o fim da Segunda Guerra. O diplomata americano George Kennan previu que a desinformação seria a coluna mestra da política russa, que, afinal, prosseguiu mesmo depois do fim da União Soviética.
Putin apenas desenvolveu um longo trabalho com novos meios eletrônicos: usar trolls para espalhar desinformacão nas mídias sociais, difundir múltiplas versões sobre um mesmo fato para convencer de que não existe uma descrição confiável, mas apenas um conjunto de “fatos alternativos”.
Trump e Bolsonaro beberam nessa fonte. Por incrível que pareça, são discípulos de Yuri Andropov, um dos grandes líderes da KGB.
Interessante como quase tudo estava lá. A Crimeia já havia sido anexada, e Putin não estava disposto a parar por aí.
Ostrovsky o apresenta como um produto da mídia russa, inventado pela KGB, que o transformou numa espécie de James Bond do lado de lá, depois de sua passagem como espião na Alemanha.
Espiões russos eram muito queridos no país, sobretudo depois de uma série chamada “Dezessete momentos de primavera”. O herói, Maxim Isaev, infiltrou-se no alto-comando nazista com o nome de Max Otto Von Stierlitz. Sua imagem é cultuada como a de um grande herói.
Putin encarnou o personagem, posando sem camisa, lutando judô, e mergulhava em busca de tesouros. Na época, era o homem certo para salvar a Rússia dos radicais islâmicos da Chechênia.
Na análise da personalidade de Putin, Ostrovsky conclui que ele não é um Stálin, embora esteja pronto para exercer violência seletiva, dentro e fora da Rússia. É um stalinismo pós-moderno, que prefere métodos mais sutis de controle, sobretudo o da televisão.
Quando o livro de Ostrovsky estava no prelo, havia ainda protestos em mais de cem cidades da Rússia. A maioria dos manifestantes tinha 17, 18 anos e nasceu nos primeiros anos de Putin no poder. Os garotos não se dispunham a aceitar a propaganda, nem tinham o cinismo e medo das gerações anteriores. Muitos devem estar presos agora.
Se tivesse dado mais atenção aos argumentos de Ostrovsky, teria previsto a guerra na Ucrânia e, com ela, a ameaça nuclear contra o Ocidente. O que nem de longe me passou pela cabeça é que Putin, mesmo sem lançar bomba atômica, tinha uma enorme possibilidade de fulminar os ucranianos e de nos matar aos poucos.
Como não trabalhei a ideia de uma guerra na Ucrânia, não previ também suas consequências sobre o clima, sua capacidade de agravar o aquecimento global.
De repente, a guerra trouxe dúvidas sobre a segurança alimentar a muitos países. A Alemanha se dispõe a rever algumas regras ambientais para acelerar sua produção agrícola.
Com a necessidade de oferecer uma alternativa aos europeus para o gás russo, Biden deve estimular a produção americana para exportá-la na forma de líquido. Com isso, suas metas ambientais terão de ser reduzidas e adaptadas à nova realidade.
Sem falar nos gastos militares, que crescerão na Alemanha e noutros países europeus, assim como nos Estados Unidos. É difícil combater o aquecimento global aumentando a produção de combustíveis fósseis, assim como investir na transição da economia em plena corrida armamentista.
Depois da Copa do Mundo, as eleições brasileiras foram impactadas por fake news. As fake news já eram um instrumento importante para a KGB desde o fim da Segunda Guerra. O diplomata americano George Kennan previu que a desinformação seria a coluna mestra da política russa, que, afinal, prosseguiu mesmo depois do fim da União Soviética.
Putin apenas desenvolveu um longo trabalho com novos meios eletrônicos: usar trolls para espalhar desinformacão nas mídias sociais, difundir múltiplas versões sobre um mesmo fato para convencer de que não existe uma descrição confiável, mas apenas um conjunto de “fatos alternativos”.
Trump e Bolsonaro beberam nessa fonte. Por incrível que pareça, são discípulos de Yuri Andropov, um dos grandes líderes da KGB.
O momento mais perigoso
Ao fim de cinco semanas de combates, a guerra iniciada pela invasão russa da Ucrânia chegou a um ponto frágil e crítico. Estamos no momento em que tanto pode ser plausível alcançar-se um acordo de cessar-fogo, e com isso evitar mais sofrimento entre civis, como também se pode perder essa oportunidade e o conflito escalar para outro patamar, saltar fronteiras e assumir proporções que, até há pouco tempo, considerávamos impensáveis.
Começa a ser evidente que já ninguém tem grande interesse em continuar a guerra exatamente como ela está, com as peças mais ou menos imóveis no tabuleiro e sem se registar alterações significativas no controlo territorial ou outros desenvolvimentos militares importantes.
Na Rússia, Vladimir Putin dá sinais de já ter percebido que não vai concretizar a sua promessa de uma vitória categórica e rápida, e também parece ter perdido toda e qualquer ilusão quanto à possibilidade de conseguir ocupar militarmente um país com a dimensão da Ucrânia, com uma área superior à de França. Daí o contentar-se, a partir de agora, apenas com a região do Donbass, acrescentando-a à Crimeia, esquecendo as outras reivindicações proferidas com ar ameaçador e firme na madrugada de 24 de fevereiro.
Na Ucrânia, apesar da resistência heroica e obstinada do seu povo, Volodymyr Zelensky já assume que a atual situação não é sustentável, durante muito mais tempo, e que é preciso encontrar uma solução que evite que o país continue a ser destruído, todos os dias. Por isso, como confidenciou à revista The Economist, a “vitória”, para ele, passou a ser “salvar o maior número de vidas possível”, admitindo até perder partes do território.
Finalmente, esta é também a guerra cuja continuação não interessa ao resto do mundo, já que está a tornar a recuperação económica mais difícil, após dois anos de pandemia, ao erguer mais obstáculos às cadeias de distribuição em que assentou a globalização nas últimas décadas, fazendo, com isso, aumentar os preços dos bens de consumo, criando maior incerteza e até agudizando a fome nas regiões mais desfavorecidas do planeta.
É nestes momentos, em que tudo parece conjugar-se para que possa ser encontrada uma saída aceitável para todos, que é preciso ter maiores cautelas. Na frente diplomática, o “mínimo” exigível passou a ser o “máximo” possível: nervos de aço, bom conhecimento sobre os pontos fortes e fracos dos interlocutores, capacidade de se negociar cedências mútuas, objetivos absolutamente definidos e, acima de tudo, uso adequado de cada palavra por parte dos intervenientes principais.
Nesta altura, uma frase fora do contexto ou uma palavra sem o tom adequado podem ter o efeito destruidor de uma bomba e dinamitarem, por si só, os esforços diplomáticos em que têm estado envolvidos os líderes de vários países – nomeadamente os da Turquia e de Israel, sempre hábeis a caminhar por entre linhas estreitas e ténues, como verdadeiros equilibristas da geopolítica. Por isso, quando, após um discurso brilhante na Polónia, decidiu improvisar e declarar que era preciso “tirar Putin do poder”, Joe Biden foi rapidamente desmentido em coro por meio mundo, e até pelos colaboradores da Casa Branca. E isto por uma razão muito simples: todos sabem que há frases que, por si só, podem iniciar uma guerra ou, como poderia ser o caso, fazer escalar a atual para um nível mundial. Assim, apesar da promessa de um cessar-fogo, este é mesmo o momento mais perigoso – aquele em que, se algo correr mal, todos podemos perder.
Rui Tavares Guedes
Começa a ser evidente que já ninguém tem grande interesse em continuar a guerra exatamente como ela está, com as peças mais ou menos imóveis no tabuleiro e sem se registar alterações significativas no controlo territorial ou outros desenvolvimentos militares importantes.
Na Rússia, Vladimir Putin dá sinais de já ter percebido que não vai concretizar a sua promessa de uma vitória categórica e rápida, e também parece ter perdido toda e qualquer ilusão quanto à possibilidade de conseguir ocupar militarmente um país com a dimensão da Ucrânia, com uma área superior à de França. Daí o contentar-se, a partir de agora, apenas com a região do Donbass, acrescentando-a à Crimeia, esquecendo as outras reivindicações proferidas com ar ameaçador e firme na madrugada de 24 de fevereiro.
Na Ucrânia, apesar da resistência heroica e obstinada do seu povo, Volodymyr Zelensky já assume que a atual situação não é sustentável, durante muito mais tempo, e que é preciso encontrar uma solução que evite que o país continue a ser destruído, todos os dias. Por isso, como confidenciou à revista The Economist, a “vitória”, para ele, passou a ser “salvar o maior número de vidas possível”, admitindo até perder partes do território.
Finalmente, esta é também a guerra cuja continuação não interessa ao resto do mundo, já que está a tornar a recuperação económica mais difícil, após dois anos de pandemia, ao erguer mais obstáculos às cadeias de distribuição em que assentou a globalização nas últimas décadas, fazendo, com isso, aumentar os preços dos bens de consumo, criando maior incerteza e até agudizando a fome nas regiões mais desfavorecidas do planeta.
É nestes momentos, em que tudo parece conjugar-se para que possa ser encontrada uma saída aceitável para todos, que é preciso ter maiores cautelas. Na frente diplomática, o “mínimo” exigível passou a ser o “máximo” possível: nervos de aço, bom conhecimento sobre os pontos fortes e fracos dos interlocutores, capacidade de se negociar cedências mútuas, objetivos absolutamente definidos e, acima de tudo, uso adequado de cada palavra por parte dos intervenientes principais.
Nesta altura, uma frase fora do contexto ou uma palavra sem o tom adequado podem ter o efeito destruidor de uma bomba e dinamitarem, por si só, os esforços diplomáticos em que têm estado envolvidos os líderes de vários países – nomeadamente os da Turquia e de Israel, sempre hábeis a caminhar por entre linhas estreitas e ténues, como verdadeiros equilibristas da geopolítica. Por isso, quando, após um discurso brilhante na Polónia, decidiu improvisar e declarar que era preciso “tirar Putin do poder”, Joe Biden foi rapidamente desmentido em coro por meio mundo, e até pelos colaboradores da Casa Branca. E isto por uma razão muito simples: todos sabem que há frases que, por si só, podem iniciar uma guerra ou, como poderia ser o caso, fazer escalar a atual para um nível mundial. Assim, apesar da promessa de um cessar-fogo, este é mesmo o momento mais perigoso – aquele em que, se algo correr mal, todos podemos perder.
Rui Tavares Guedes
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