segunda-feira, 18 de abril de 2022

Aliança do Brasil

 


Ainda somos o país do futuro?

A campanha política está em pleno andamento. É verdade que nenhum candidato a candidato, ou mesmo candidato assumido apresentou, por enquanto, qualquer projeto consistente sobre as questões centrais do país. Pena. Elas precisam ser abordadas com seriedade. E, para evitar enganos, deixo claro que as questões centrais não são simplesmente as urgentes, mas as importantes, aquelas que, devidamente resolvidas, poderiam nos transportar ao almejado e cada vez mais distante patamar em que deveríamos chegar, o de nação desenvolvida, socialmente justa. Queremos que nosso Brasil volte a ser um lar ambicionado por gente do mundo todo, não apenas por refugiados.


Para quem tem alguma memória, valeria a pena se lembrar de alguns pontos fundamentais, superficialmente tocados na última campanha presidencial: educação pública laica, universal e de qualidade, de modo a propiciar igualdade de oportunidades reais, não apenas nominais; habitação, água e esgoto para todos; sistema de transporte de qualidade (inclusive ferrovias, hidrovias e cabotagem); fartura de alimentos para seres humanos, não apenas para gado e galinhas; qualificação da mão de obra, para que possa haver mais empregos e mais empresas de bom nível; manutenção e expansão da rede pública de saúde; preocupação com o esporte como atividade voltada para a saúde, não apenas para a competição; controle sobre a usura praticada fora e dentro da lei; sistema de justiça democrático, desde o julgamento até o encarceramento. Embora tocados por alguns candidatos nas últimas eleições presidenciais – muito superficialmente, para dizer a verdade -, esses temas e vários outros foram debatidos com alguma seriedade em órgãos de imprensa e com real profundidade em livros. Uma das obras mais sérias, com propostas concretas em diferentes áreas, da Economia ao Esporte, da Educação à Agricultura, passando por Ciência e Tecnologia, Saúde, Segurança Pública e Meio Ambiente, foi “Brasil, o futuro que queremos”. Embora suspeito, por ter organizado a obra, estou à vontade para falar de um trabalho que não escrevi. Apenas estruturei, lancei perguntas, fiz observações, padronizei o material e redigi uma introdução. O conteúdo coube a especialistas, de diferentes correntes e cores políticas, gente aberta, articulada, capaz de juntar o saber com a prática. Brincando, eu chamava o grupo de “meu ministério”.

Seria um desperdício não aproveitar muitas das ideias e sugestões apresentadas nesse livro como tema para discutir nosso país, por ocasião da próxima campanha presidencial. Noticiários na TV, nas rádios e nos jornais têm ido pouco além da divulgação de pesquisas eleitorais (que não ajudam a compreender o país), quando não ficam exibindo manobras realizadas por supostos políticos “hábeis”. É pouco, muito pouco. Precisamos mesmo é discutir os problemas brasileiros. Não é uma competição para ver quem é o mais esperto, mas o mais preparado. Ou estou equivocado?

A percepção que as pessoas têm de quanto o Brasil é injusto é algo muito sério, pois não se pode tecer um país unido com a desigualdade social vigente. A desigualdade favorece a existência de arrogantes de um lado e dissimulados de outro. Um jovem advogado, muito idealista ainda, me dizia que, no Brasil, todos são iguais perante a letra da lei, mas não perante o espírito da lei. Na prática, o poderoso, quando prevarica, é bem defendido, muito bem defendido, defendido com tudo que a lei permite e, às vezes, até um pouco além disso. Quem não pode vai para a cadeia, sofre dias, meses, anos e, se sobrevive às prisões brasileiras, não terá muita chance de se recuperar. E esse sistema, vamos ser claros, não é acidental, é estrutural. Ele reflete a concepção que temos de um estado que é de todos, mas não é para todos. É de todos que pagam o aumento no custo dos alimentos, do transporte, do material escolar, das roupas vindas da China e do Vietnã. O Brasil é um país em que o desemprego é gigantesco, porém, aonde quer que se vá, vai se ouvir patrões dizendo que têm vagas em aberto, por falta de mão de obra qualificada. É um país que acha que todo mundo, para ser cidadão, precisa ter faculdade, e para isso aprova o funcionamento de pseudo universidades, verdadeiras Unidrogas e Unigranas, que ainda são beneficiadas com empréstimos feitos aos alunos, para eles pagarem a anuidade… Em troca, exigem muito pouco do aluno. A preocupação não é preparar gente, é fornecer um diploma para os pagantes. Diploma, que por seu turno, não servirá para nada.

O Brasil tem solução? Teoricamente tem. Até países na Ásia Oriental, no Oriente Médio (com solo desértico e sem petróleo), no sul do Pacífico consolidaram-se como democracias pujantes e sociedades equilibradas. Não há motivos geográficos ou históricos que nos condenem a ser, para sempre, o país do futuro que passou.

O futuro que queremos é outro.

Natureza morta

Ruínas onde foram ontem casas,
corpos a apodrecerem no chão,
crianças mortas, lindas, já sem asas,
um mundo, antes, vivo, em implosão.

Por todo o lado, a morte em vez da vida,
por todo o lado, o nada em vez do tudo,
por todo o lado, a vida invertida
e o rasto do monstro chavelhudo.

Natureza morta conspurcada,
oferta a pintor alucinado,
paisagem cagada e mijada,

pra futuro museu excomungado.
A loucura a inventar uma arte,
que erga, no inferno, seu estandarte!

Eugénio Lisboa

Um país muito doido

É muito doido o que virou o Brasil. Com uma introdução ao que viria no governo golpista do Temer até a consolidação da loucura no governo Bolsonaro, vivemos hoje o desmonte total do estado, da política e das instituições. Claro que não se concretizou totalmente e graças a isso continuamos resistindo com o que sobra. Mas o plano é esse. Se deixar eles acabam o serviço e estabelecem um estado fascista disfarçado de populista com o povo “decidindo” através de plebiscitos, arma típica dos governos autoritários que desprezam a democracia, as minorias e as diferenças.

Eles armariam e muita gente nem perceberia. Parte do mercado financeiro continuaria, os ricos ficariam mais ricos, os pobres mais pobres e aqueles que acreditam que deus está acima de tudo viveriam o destino como se estivesse escrito. Democracia não é nada disso e ainda temos muita energia nessa resistência à barbárie. Por isso se diz que essas eleições são as mais importantes desta era.


Não gostaria de viver essa experiência do estado totalitário pela segunda vez. Fantasiadas de capitalismo neoliberal as imposições e limitações estabeleceriam as regras. O país sem fiscalização, sem apoio do estado, o vale tudo disfarçado também de liberdade deixaria todo o poder e as possibilidades nas mãos dos mais ricos e mais fortes. Um pouco já é assim e você sente isso no dia a dia das cidades, dos bairros e das ruas. É um verdadeiro milagre as cidades ainda funcionarem, o trânsito mal ou bem fluir e as pessoas ainda darem bom dia quando se cruzam. O brasileiro é antes de tudo um forte e certamente há de resistir.

Nas ruas você pode ser atacado se discute no trânsito, esfaqueado se volta pra casa a pé, assassinado se for assaltado, eliminado da vida se entrar por acaso numa comunidade sem avisar e daqui a pouco se der uma opinião contrária. É a lei da selva no seu mais alto grau. A polícia sumiu das ruas, os guardas de trânsito só existem para multar de vez em quando quem estaciona em local proibido, as pessoas circulam de moto ou bicicleta na contramão, as regras de convivência vão sendo esquecidas e o brasileiro em geral e o carioca em particular vai criando maneiras alternativas de sobreviver.

Tudo isso é resultado de falta de escola, de apoio e presença do estado, de assistência social e tudo o mais que dá ao cidadão a sensação de fazer parte de alguma coisa. O individualismo é estimulado, a meritocracia enaltecida e com isso o povo se sente abandonado, totalmente. Como não vai sucumbir paralisado acaba descobrindo sua maneira pessoal de sobreviver e isso pode incluir inclusive a violência e a intolerância.

Cabe a nós interromper esse ciclo terrível que nos países pobres e despolitizados como o nosso acabam criando condições para o estado fascista. Ainda restam as eleições, o Supremo, o Congresso, apesar de tudo. Vamos mudar o rumo dessa prosa e retomar nossa responsabilidade no futuro do Brasil. Chega de palhaçada, de compras patéticas, de motociatas fora da lei, de atitudes violentas e antidemocráticas. O Brasil é muito mais do que isso e dessa vez, até agora, as eleições vão correr de modo mais justo. Espero. Esperamos todos e só restará a lei para punir quem riu e zombou das nossas vidas esse tempo todo. A hora é essa.

Bolsonaro e o liberalismo do medo

Judith Shklar (não me peça para pronunciar o sobrenome) precisou de menos de trinta páginas, divididas entre dois ensaios, para deixar sua marca na história do pensamento político. O primeiro ensaio, de doze páginas, chama-se “A Crueldade Antes de Tudo” (“Putting Cruelty First”). O segundo, de dezessete, “O Liberalismo do Medo” (“The Liberalism of Fear”). Ela escreveu muito mais, é claro, e seus livros são valorizados por quem trabalha com teoria política e história das ideias. Mas esses dois textos curtos são considerados sua contribuição mais forte e original.

Shklar morreu em 1992, aos 63 anos. Há um revival em torno dela. Eu, que jamais havia lido uma linha da sua obra, fui dar uma espiada e achei seus dois textos célebres extraordinariamente úteis para o momento atual. No Brasil, especialmente, há gente trabalhando o tempo todo para obscurecer os significados do liberalismo e da democracia. Shklar oferece o antídoto. Ela delimita com simplicidade e nitidez absolutas o mínimo denominador comum das sociedades desse tipo – aquilo de que elas não podem abrir mão, sob pena de se corromperem.

A graça dos argumentos de Shklar está na maneira como ela os desenvolve, mas o sentido é fácil de resumir. Segundo a autora, as raízes do liberalismo estão fincadas no século XVI, quando a Europa enfrentava as sangrentas guerras de religião entre católicos e protestantes.

Diz ela: “As bases mais profundas do liberalismo foram assentadas pelos primeiros defensores da tolerância religiosa. Estão calcadas na convicção, forjada no horror, de que a crueldade é um mal absoluto, uma ofensa contra Deus e a humanidade. É dessa tradição que o liberalismo do medo surgiu e continua a ter relevância em meio aos terrores do nosso tempo.”


O liberalismo do medo não diz qual o melhor tipo de sociedade. Como afirma Shklar, ele está preocupado apenas com a “contenção de danos”. Seu propósito é evitar que as pessoas vivam com receio de quem as governa. É desenvolver anteparos contra a possibilidade de que regimes arbitrários e violentos se consolidem no poder. É, finalmente, um alerta contra políticos que transigem com a crueldade, e não acreditam que ela é o mal que precisa ser evitado antes de tudo.

Jair Bolsonaro, hoje mesmo, repetiu que é importante ficar neutro diante da invasão da Ucrânia pela Rússia. Depois de quase sessenta dias em que as evidências da perversidade russa vão se empilhando, junto com escombros e cadáveres de ucranianos, ele ainda acha que nem mesmo uma palavra de repúdio deve ser apresentada contra Putin. Claramente, para ele, a crueldade não é o pior de tudo.

Semanas atrás, seu filho Eduardo primeiro zombou da tortura a que a jornalista Miriam Leitão foi submetida durante a ditadura militar, e depois pôs em dúvida a própria existência da tortura, num requinte de estupidez. Ele também não acredita que evitar a crueldade vem em primeiro lugar.

Apesar disso, políticos e pastores de todo o país não apenas acham belo o bolsonarismo, como ainda o misturam com religião e vontade divina.

Bolsonaro gosta de usar a palavra liberdade, inclusive para elogiar a ditadura militar e defender as delícias de um golpe de estado. Quando a linguagem política se deturpou a esse ponto, é bom voltar ao básico. O liberalismo do medo não diz que o repúdio à crueldade é o único critério para escolhas políticas, mas diz que, sem ele, não se pode falar em democracia, ou desenvolvimento ou qualquer outro ideal pomposo. A utilidade da doutrina de Shklar está no seu minimalismo. E Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores mais entusiásticos – inclusive os religiosos – não atingem a nota de corte.