segunda-feira, 18 de abril de 2022

Bolsonaro e o liberalismo do medo

Judith Shklar (não me peça para pronunciar o sobrenome) precisou de menos de trinta páginas, divididas entre dois ensaios, para deixar sua marca na história do pensamento político. O primeiro ensaio, de doze páginas, chama-se “A Crueldade Antes de Tudo” (“Putting Cruelty First”). O segundo, de dezessete, “O Liberalismo do Medo” (“The Liberalism of Fear”). Ela escreveu muito mais, é claro, e seus livros são valorizados por quem trabalha com teoria política e história das ideias. Mas esses dois textos curtos são considerados sua contribuição mais forte e original.

Shklar morreu em 1992, aos 63 anos. Há um revival em torno dela. Eu, que jamais havia lido uma linha da sua obra, fui dar uma espiada e achei seus dois textos célebres extraordinariamente úteis para o momento atual. No Brasil, especialmente, há gente trabalhando o tempo todo para obscurecer os significados do liberalismo e da democracia. Shklar oferece o antídoto. Ela delimita com simplicidade e nitidez absolutas o mínimo denominador comum das sociedades desse tipo – aquilo de que elas não podem abrir mão, sob pena de se corromperem.

A graça dos argumentos de Shklar está na maneira como ela os desenvolve, mas o sentido é fácil de resumir. Segundo a autora, as raízes do liberalismo estão fincadas no século XVI, quando a Europa enfrentava as sangrentas guerras de religião entre católicos e protestantes.

Diz ela: “As bases mais profundas do liberalismo foram assentadas pelos primeiros defensores da tolerância religiosa. Estão calcadas na convicção, forjada no horror, de que a crueldade é um mal absoluto, uma ofensa contra Deus e a humanidade. É dessa tradição que o liberalismo do medo surgiu e continua a ter relevância em meio aos terrores do nosso tempo.”


O liberalismo do medo não diz qual o melhor tipo de sociedade. Como afirma Shklar, ele está preocupado apenas com a “contenção de danos”. Seu propósito é evitar que as pessoas vivam com receio de quem as governa. É desenvolver anteparos contra a possibilidade de que regimes arbitrários e violentos se consolidem no poder. É, finalmente, um alerta contra políticos que transigem com a crueldade, e não acreditam que ela é o mal que precisa ser evitado antes de tudo.

Jair Bolsonaro, hoje mesmo, repetiu que é importante ficar neutro diante da invasão da Ucrânia pela Rússia. Depois de quase sessenta dias em que as evidências da perversidade russa vão se empilhando, junto com escombros e cadáveres de ucranianos, ele ainda acha que nem mesmo uma palavra de repúdio deve ser apresentada contra Putin. Claramente, para ele, a crueldade não é o pior de tudo.

Semanas atrás, seu filho Eduardo primeiro zombou da tortura a que a jornalista Miriam Leitão foi submetida durante a ditadura militar, e depois pôs em dúvida a própria existência da tortura, num requinte de estupidez. Ele também não acredita que evitar a crueldade vem em primeiro lugar.

Apesar disso, políticos e pastores de todo o país não apenas acham belo o bolsonarismo, como ainda o misturam com religião e vontade divina.

Bolsonaro gosta de usar a palavra liberdade, inclusive para elogiar a ditadura militar e defender as delícias de um golpe de estado. Quando a linguagem política se deturpou a esse ponto, é bom voltar ao básico. O liberalismo do medo não diz que o repúdio à crueldade é o único critério para escolhas políticas, mas diz que, sem ele, não se pode falar em democracia, ou desenvolvimento ou qualquer outro ideal pomposo. A utilidade da doutrina de Shklar está no seu minimalismo. E Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores mais entusiásticos – inclusive os religiosos – não atingem a nota de corte.

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