sexta-feira, 13 de maio de 2022

Afinal, quem é nazi?

Assad Bina Khahi (Iran)
"O futuro é conhecido – é sempre auspicioso. O passado é que está sempre a mudar.” Esta velha piada soviética sublinha a flutuante relação russa com a História, que oscila ao sabor dos tempos e dos governantes. Vladimir Putin vem numa longa esteira de dirigentes russos que forçam interpretações seletivas e criativas dos acontecimentos históricos. Como dizia Goethe, o patriotismo corrompe a História. Assim como o nacionalismo ou o narcisismo.

Tal como fizeram Lenin, Stalin e Khrushchev, Putin aposta na fixação conveniente de alguns factos do passado. Em 2013, encomendou um livro de História rescrito para toda a Federação Russa, onde a brutal repressão estalinista que matou 20 milhões de pessoas era atenuada e as reformas do tirano destacadas. Em 2021, decretou a proibição de comparações entre a União Soviética e a Alemanha nazi. E em 2022, para justificar a “operação especial militar” da Ucrânia, faz uso do conceito de nazismo. “Desnazificar” a Ucrânia e lutar contra os nazis ucranianos virou slogan de guerra e mote para consumo interno na Rússia e fora dela, replicado pelos amplificadores do argumentário do Kremlin no mundo inteiro (é lembrar a declaração de Paula Santos, líder parlamentar do PCP, que disse que Zelensky “personifica um poder xenófobo e belicista, rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi”).

Tanto a técnica da desvirtuação histórica como a retórica são antigas. E, como todas as variações de propaganda, funcionam melhor se tiverem um remoto fundo de verdade. A União Soviética usou linguagem semelhante, numa tentativa de desacreditar o nacionalismo ucraniano como nazismo, chamando aos ucranianos pró-ocidentais “banderites”, referindo-se a Stefan Bandera, que colaborou com a Alemanha nazi e lutou ferozmente pela independência ucraniana nos anos 30 e 40. O tema, é um facto, ressoa bastante para os russos. Na Rússia (que chegou ela própria a assinar um entendimento – o pacto Molotov-Ribbentrop – com a Alemanha Nazi em 1939 e, depois, um acordo comercial em 1940), a luta contra o nazismo mobilizou toda uma nação e custou muitos milhões de vidas. E a vitória contra a Alemanha nazi, celebrada esta semana, considerada a Grande Guerra Patriótica, é vista como uma das conquistas mais importantes do seu passado glorioso.

Depois da anexação da Crimeia, em 2014, a narrativa do nazismo ucraniano foi amplificada, de forma a passar internamente e recolher o apoio da população russa. Quanto mais se invocar uma glória do passado e desumanizar o inimigo, mais fácil se torna amplificar o ódio contra ele, já se sabe.

A democracia ucraniana, com um passado recente atribulado, está longe de ser madura e personificar todas as virtudes do liberalismo político e Zelensky não será um político impoluto. Sim, a Ucrânia tem, no seu seio, movimentos de extrema-direita, tal como muitos países ocidentais (financiados, aliás, pelo Kremlin), mas com apenas um deputado representado no parlamento. E, sim, o badalado Batalhão Azov, uma milícia paramilitar que foi incorporada no exército ucraniano para combater os invasores no Donbass, foi fundado e inclui elementos de ideologia neonazi, entre outros de motivações diferentes. Isto serve, no entanto, de argumento para tudo para os russos e seus apoiantes. A questão é que, de problemas identificados e de pequena expressão nacional, parte-se para a supergeneralização de 44 milhões de ucranianos, mesmo quando o seu Presidente eleito por esmagadora maioria é judeu e isso nunca foi sequer tema de campanha.

No mundo de Putin, a palavra nazismo banalizou-se e virou triste sinónimo de personificação do mal. Na propaganda russa, todos os inimigos são fascistas (quando é a própria Rússia dos dias de hoje que tem cada vez mais características totalitaristas), e todos os inimigos são apelidados de nazis (quando dentro da Rússia há também movimentos supremacistas brancos e de extrema-direita). E é assim também que se desonra um dos momentos mais negros da História da Humanidade. Repugnados, dezenas de historiadores especialistas no genocídio, nazismo e II Guerra Mundial assinaram uma carta condenando o “abuso cínico do termo genocídio pelo governo russo, a memória da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto e a equação do Estado ucraniano com o regime nazi para justificar a sua agressão não provocada”.

É uma ironia que Putin, fazendo um uso mítico da História para justificar os crimes do presente, alegue a luta contra o nazismo, quando ele próprio tende a replicar o comportamento de Hitler. Basta olhar para a anexação da Áustria, em 1938, da Polónia, em 1939, e o que se seguiu. Há o mesmo argumento da necessidade de proteger populações da sua etnia, a mesma ambição imperialista, a mesma repressão interna e o mesmo desrespeito absoluto por vidas humanas e pelas leis da guerra. Há um ditado que diz que grandes mentes pensam da mesma forma. E as grandes mentes distorcidas também.
Mafalda Anjos

Como se houvesse futuro

A campanha eleitoral apenas começou, há um longo caminho pela frente e, possivelmente, será preciso uma batalha para defender sua legitimidade.

Num quadro ainda tão embrionário, parece lirismo pensar num caminho para o Brasil pós-2022. Não se trata de um programa, muito menos de um projeto de país, como muitos não cessam de cobrar. É pretensão tratar de ambos, sobretudo porque a ideia de projeto de país pode lembrar de algo que se formule numa prancheta, quando na verdade há diante de nós uma sociedade viva e complexa. Mas também não é proibido pensar um pouco adiante. Lembro-me do passado, quando as convenções partidárias analisavam teses. Hoje, isso parece um escândalo.

Um dos grandes problemas do Iluminismo foi o projeto radical moderno de subjugar a natureza, por meio da tecnologia, para os propósitos humanos. Esse projeto desembocou numa crise profunda, com a necessidade urgente de atenuar suas trágicas consequências, como o aquecimento global.

Da mesma forma que isso está em crise, também entrou em crise a concepção cristã sobre a superioridade ou privilégio dos humanos sobre todas as outras formas de vida.

O avanço tecnológico cego pressupunha, também, que todas as culturas convergissem para uma só visão. Um projeto para o futuro precisa alterar esses termos e, sobretudo, fundar a relação com a natureza em outra base, inclusive fortalecendo as culturas que já a veem de uma forma não destrutiva.

Depreende-se daí que as fontes de inspiração para o futuro são a sustentabilidade, no campo econômico, e a diversidade, no campo cultural.

Isso não significa desprezar a tecnologia. Ao contrário, a tecnologia de informação é outra dimensão do presente e do futuro que tem de estar no centro de um projeto, ou algo parecido, para o País.


Em primeiro lugar, é por meio da tecnologia da informação que se vai avançar na produção das riquezas. Também por meio dela o Estado brasileiro pode se tornar mais barato e, simultaneamente, mais eficaz. Por meio dela a própria democracia pode se ampliar, com um governo inteligente que saiba reunir a cooperação coletiva.

A pandemia de covid-19 impulsionou essa tecnologia e mudou o panorama das grandes cidades. Ela possibilita a recuperação dos grandes centros urbanos para a moradia, uma vez que tornou obsoletos os grandes prédios de escritórios.

Da mesma forma que a pandemia impulsionou tendências já existentes, a guerra na Ucrânia torna urgente a superação da era dos combustíveis fósseis, abrindo caminho para as energias solar, eólica e o hidrogênio verde.

A covid-19 representou um trauma no processo de educação brasileiro. Ele é fundamental em qualquer projeto de país. A extrema-direita descartou o avanço digital. Por meio dele, é mais fácil transformar a educação num processo em que as pessoas consigam constantemente definir as habilidades para a realização de uma tarefa, encontrar os meios de acesso a essas habilidades. É o oposto da concepção militarizada de educação da extrema-direita.

Esses tópicos são interessantes porque mostram algo que relativiza a ideia de um projeto subjetivo. Basta apenas analisar o curso dos acontecimentos e avançar com eles. O fracasso do projeto iluminista de domar a natureza e transformá-la de acordo com a vontade humana transcende à polarização esquerda-direita. É um fenômeno praticamente universal. Um projeto brasileiro que estabeleça uma nova relação entre natureza e tecnologia pode ser a mensagem mais importante na nossa política externa.

Em primeiro lugar, é uma forma de se associar aos esforços planetários para atenuar a crise, estabelecer vínculos com os projetos de algumas grandes democracias ocidentais, como Estados Unidos e França, onde Biden e Macron parecem ver essa tarefa como central.

Pelas características brasileiras, pela riqueza de sua biodiversidade, o País teria condições de canalizar um grande investimento global. Isso é decisivo num momento em que se coloca em debate, também, a ideia de que o valor se resume à atividade humana.

De posse de seu grande tesouro, o País, com a maior biodiversidade do planeta, teria condições de iniciar um ciclo sustentável e direcionado para o futuro.

Isso não é um programa nem projeto de país. Mas tem uma ponta de ambição na medida em que trabalha com uma crítica civilizatória.

A ideia de Darcy Ribeiro de uma civilização dos trópicos sempre me pareceu um pouco romântica. No entanto, a preservação de culturas que rejeitam a destruição tecnológica ocidental e as mudanças na relação com a natureza, que, ao invés de ser violentada, é respeitada no seu curso, podem ser elementos de um pós-iluminismo, do início de uma nova era.

No entanto, mesmo sem formular um ambicioso projeto de país, é possível conversar um pouco sobre as possibilidades que se abrem.

São conversas preliminares. De nada adianta, também, formular um programa com a perspectiva apenas de tapar buracos, corrigir erros mais gritantes. É uma iniciativa respeitável, mas limitada.

São conversas vistas com ironia na política brasileira. Mas podem ser uma espécie de mensagem na garrafa quando o pragmatismo esbarrar em seus limites.

A luta de classes moderna

A luta de classes moderna está hoje invertida. Ao invés da classe trabalhadora se opor à elite por seus direitos, hoje os ricos oprimem aos pobres na supressão dos direitos para a acumulação de riqueza. O World Inequality Report mostra que nos últimos 40 anos os 50% de renda mais alta aumentaram e os 50% de renda mais baixa diminuíram sua participação no PIB nos países do mundo.

O Renascentismo e a Reforma Protestante representaram a saída da Idade Média para sociedades mais justas.Na Inglaterra, a Revolução Inglesa em 1642-1660 precedeu ao primeiro Parlamento Britânico em 1707. Nos Estados Unidos, a Revolução Americana em 1765-1791 foi feita com a melhor ideologia da época, a liberal, com a constituição “We the people” em 1789. Na França, a Revolução Francesa em 1789-1799 substituiu a aristocracia, com o lema “Liberté, Égalité, Fraternité”.


No século XIX, a luta de classes entra em sua forma mais acirrada. Em 1848, Marx publica o Manifesto Comunista com a luta de classes entre o proletariado e a burguesia devido à contradição entre a maneira coletiva da produção e a apropriação individual da riqueza. Em 1871 a Comuna de Paris sobre sua derrota, incorporando, entretanto, legados à Terceira República na França. Ao final da Primeira Guerra, a Revolução Russa ocorre em 1917. Após a Segunda Guerra, a Revolução Chinesa ocorre em 1949. Segue-se a Guerra Fria entre o ocidente e o socialismo, até a derrocada da União Soviética em 1991. A economia passa a ser a de mercado, com diferentes níveis de intervenção estatal, do Keynesianismo às Social-Democracias.

Hoje, aumenta a concentração da riqueza agravada pela crise ecológica que vai limitar o acesso a bens sociais. Do antigo discurso socialista contra o liberalismo, a esquerda hoje se apega ao discurso do direito e da democracia contra a concentração de riqueza e quebra da ordem institucional. A direita avança. Trump, Orban e Bolsonaro são expressões deste movimento.

Ao longo dos séculos criou-se uma classe média, tecnicamente funcional. O Supremo surge como poder moderador e regulador da lei acordada entre as partes, o Parlamento como palco das discussões. Hoje, a classe média encontra-se espremida pela inflação e emprego, já que o critério não é mais técnico, mas do poder e da riqueza. O conceito atual da “liberdade de expressão” somente expressa o afrontamento às leis para a quebra da ordem institucional. Os novos golpes de estado diferem dos anos 60 e 70, quando se colocavam tanques nas ruas. Os golpes de hoje ocorrem pela desobediência dos governantes às leis e supressão contínua do judiciário e do legislativo. O Supremo é a ser suprimido; o Parlamento diminuído.

Parece que após cinco séculos de melhoria econômica e de direitos sociais chegamos ao fim de um ciclo histórico. com o início do que poderá vir a ser a nova idade média tecnológica da modernidade opressiva e decadente. O fim das democracias.

Pensamento do Dia

 


'Sem máscara' relata bastidores do governo em meio à pandemia

“Estou passando aqui um abaixo-assinado e quero saber quais ministros estão comigo e com o presidente. Porque a gente vai para o confronto com o Supremo (STF). Ou a gente prende eles [os ministros] ou eles prendem a gente”.

Essa frase é do ex-ministro Abraham Weintraub (Educação), num momento em que o presidente Jair Bolsonaro listava os poderes que o STF havia lhe retirado, segundo seu entendimento.

E não parou aí. E seguiu, com ameaças.

“Eles estão me cercando. Vão me prender. Depois vão prender cada um de vocês. Eles querem prender o presidente. A gente tem que ir para o pau, quero ver quem está com a gente” – disse Weintraub, numa desesperada tentativa de se salvar no cargo. O episódio ocorreu três semanas antes dele deixar o país, foragido para os Estados Unidos, em junho de 2020.


As declarações de Weintraub, uma tentativa de o então ministro mobilizar o governo em sua defesa, é um dos episódios contados no livro “Sem máscara. O governo Bolsonaro e sua aposta pelo caos”, obra do jornalista Guilherme Amado, colunista do Metrópoles, que será lançado este mês pela Companhia das Letras.

O desfecho dessa história do barulhento Weintraub: o movimento do ex do MEC não foi avante. Sua tentativa de mobilização foi frustrada pelo “colega” de Esplanada Paulo Guedes (Economia), que rechaçou a ideia sem pestanejar e matou no nascedouro a “intentona” do agora ex-ministro. Com requintes cruéis.

“Weintraub, eu vou levar cigarro prá você na cadeia, vou levar guaraná, mas nem fodendo você vai interferir na democracia brasileira. O presidente representa a democracia. […] Presidente, o senhor tem que seguir a Constituição. Deixa eles saírem da Constituição. Quanto mais eles saírem, mais contundente será a perda para eles. […] Se você tá brigando com o Supremo, você paga por isso. Já vi soldado morrer por causa de general, mas general morrer por causa de soldado, nunca vi, não”.

O livro de Amado traz bastidores do governo desde a eclosão da epidemia da Covid-19, que colocou o governo de cabeça para baixo. Relata passagens dos bastidores dessa gestão que apostou no caos e não na ciência num momento crucial.

“Sem máscara” será lançado agora na segunda quinzena de maio. Tem 448 páginas. A capa do livro é de Alceu Chiesorin Nunes.

Guilherme Amado é um jornalista premiado e cobre os bastidores da política e seus arredores. Já passou pelas redações do O Globo, Época, Veja e Extra. É diretor na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Também é John S. Knight Journalism Fellow na Universidade Stanford e integra o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ).

Militares atuam como buchas de canhão para o golpismo de Bolsonaro

A estratégia que Jair Bolsonaro desenhou para chegar às eleições em condições de vencer o pleito ou melar o jogo é conhecida: criar tumulto atrás de tumulto, espalhar focos de desconfiança e dispersar a atenção dos assuntos que realmente importam. Vem sendo assim desde o começo do governo.

Toda vez que o presidente da República depara com um problema que não sabe ou não quer resolver, aciona o botão do pânico. Só que quem entra em pânico somos nós. E só continua funcionando porque sempre tem algum fardado disposto a ajudar o presidente em suas tentativas de criar o caos.


A história se repetiu na última polêmica em torno da segurança do sistema eleitoral. Bolsonaro lançou a bomba aproveitando-se da confusão criada pelo perdão presidencial ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) e da fala do ministro do STF Luís Roberto Barroso, para quem as Forças Armadas estavam sendo orientadas a atacar e desacreditar o processo eleitoral.

Em discurso no Palácio do Planalto, difundiu a ideia de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apura os votos numa sala secreta que não existe, citando uma proposta de apuração paralela pelas Forças Armadas que também nunca foi feita.

Ao mesmo tempo que TSE e interlocutores do Judiciário e do Congresso tentavam desfazer o tumulto com notas de esclarecimento e encontros a portas fechadas, outro general, Heber Portella, enviava ofícios desaforados ao TSE demandando explicações sobre supostos riscos e fragilidades no sistema eleitoral.

Embora fosse o representante dos militares na famigerada Comissão de Transparência do TSE, o general adotou um tom que a hierarquia da força não lhe autoriza:

“Os militares recomendam previsão e divulgação antecipada de consequências para o processo eleitoral, caso seja identificada alguma irregularidade na contagem dos votos da amostra utilizada no Teste de Integridade, haja vista que não foi possível visualizar medidas concretas no caso da ocorrência de referidas irregularidades”.

Desde então, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, tomou para si a interlocução com a Corte eleitoral, desautorizando Portella. O TSE explicou que parte das sugestões já havia sido implementada e outra parte era inviável, expondo a falta de conhecimento técnico do general sobre o sistema.

Os aliados do ministro da Defesa afirmam que, com seu movimento, ele busca atuar como anteparo institucional ao golpismo de Bolsonaro. Se é essa a intenção, talvez seja o caso de ele refazer o mapa do campo minado e reforçar o estoque de escudos, porque o presidente não só não gosta de anteparos, como tem por hábito implodi-los.

Não é preciso buscar algum de tantos exemplos do passado para ilustrar essa afirmação. Ontem mesmo Bolsonaro descartou um desses “escudos institucionais” ao demitir o almirante Bento Albuquerque do Ministério de Minas e Energia.

O almirante tentava conter os arroubos intervencionistas do presidente, que nunca se conformou com a política de reajuste dos combustíveis da Petrobras acompanhar as cotações do barril do petróleo e do dólar.

Por um tempo, deu certo. Até que parou de funcionar.

A razão mais evidente para a saída de Albuquerque foi o aumento de 8,9% no preço do diesel, alguns dias depois de Bolsonaro ter pedido em sua live que não houvesse mais reajustes e de ter chamado de “estupro” o lucro de R$ 44,5 bilhões da Petrobras.

Também se falou numa queda de braço com lideranças do Centrão em torno do projeto que destina R$ 100 bilhões do pré-sal à criação de uma rede de gasodutos que atenderia aos interesses do empresário Carlos Suarez.

Seja qual for a bomba que eliminou o escudo, só veio reforçar a constatação de que o presidente da República não está nem aí para a cor da farda ou para a patente que ela exibe.

Apesar de gostar de dizer que aprendeu na caserna o valor da lealdade, ou que não deixa seus homens na estrada, a verdade é que, para Bolsonaro, o militar só é útil se lhe presta obediência incondicional.

Se resolver priorizar os interesses nacionais ou o respeito às instituições da República em vez de criar o caos, o sujeito estará fora. Será igualmente descartado assim que o tumulto da vez for superado.

A esta altura, o mais incrível não é nem que seja assim. Impressiona é que ainda haja militares que acreditam ser capazes de conter de forma civilizada os impulsos destruidores do presidente. Não percebem que, em vez de anteparos, o que são é bucha de canhão.

Exército sob Bolsonaro

Jair Bolsonaro lembra aqueles meninos covardes que chamam alguém para a briga e, quando o outro topa, fogem correndo para o irmão mais velho, chorando e pedindo que ele brigue em seu lugar. É o que vem fazendo desde o dia em que tomou posse —chamando as instituições para brigar e, quando estas se cansam de ser provocadas e reagem, ele induz as Forças Armadas a promover desfile de canhão, sobrevoo da capital e bravatas de oficiais sem compostura. Entre uma e outra ameaça, cavalga motocicletas, jet skis e cavalos propriamente ditos, sempre em turma e contando com o apoio armado.

O Exército Nacional já foi mais exigente. Os generais do regime militar, com tudo o que nos custaram, eram pelo menos ciosos de três coisas: o crescimento econômico, a Petrobras e a Amazônia. Exatamente o que Bolsonaro detesta. Certa ou errada, eles tinham uma ideia de desenvolvimento e de modernização do Brasil. Sob Bolsonaro, ao contrário, já estamos perto do crescimento zero, da desmoralização da estatal e da destruição da floresta --programas que, com um segundo mandato, ele completará. Falta-me cultura política para entender o que o país ganha com isso e por que o pessoal fardado o aprova.

Imagino o que Castello Branco, Costa e Silva, Médici e Figueiredo diriam de Bolsonaro. De Geisel não precisamos imaginar. Em seu longo depoimento a Maria Celina d'Araujo e Celso Castro, que resultou no livro "Ernesto Geisel" (Editora FGV, 1997), lê-se às páginas 112-113:

"Neste momento, há muitos dizendo: 'Temos que dar um golpe! Temos que voltar à ditadura militar!'. E não é só o Bolsonaro, não. [...] [Mas] Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar."

Geisel declarou isso em 1993. Bolsonaro era só um deputado marca barbante. Sorte do general, que não viveu para ver a quem as Forças Armadas têm hoje de obedecer.

Povo armado para defender a Amazônia

Bolsonaro queria que o Brasil fosse como a Venezuela para que ele governasse como faz Nicolás Maduro, o ditador daquele país travestido de presidente da República.

Maduro chegou ao poder por meio de eleições, assim como Bolsonaro, associou-se aos militares, assim como Bolsonaro, e tenta espelhar-se no presidente russo Vladimir Putin.

O espelho de Bolsonaro foi Donald Trump, que retribuiu festejando-o como o Trump tropical, um tanto caricatural, é verdade. Trump deu-lhe guarida e também aos seus filhos Zero.

Mas Trump foi derrotado. Então, Bolsonaro, à procura de um novo modelo, descobriu Putin e visitou-o para prestar solidariedade à Rússia a poucos dias de ela invadir a Ucrânia já cercada.


“O povo armado jamais será escravo de ninguém”. Quem disse essa frase? Caberia na boca de Maduro, que de comunista não tem nada. Caberia na boca de Putin, que no passado foi comunista.

Quem disse a frase, porém, foi Bolsonaro, que, na feira agropecuária de Maringá, no Paraná, onde esteve à caça de votos que lhe faltam para se reeleger, repetiu-a sob nova versão:

“Somente os ditadores temem o povo armado. Eu quero que todo cidadão de bem possua sua arma de fogo para resistir, se for o caso, à tentação de um ditador de plantão.”

Não é para isso que ele quer o povo armado. Quer que parte dele organizado como milícias se arme para ajudá-lo a melar as eleições de outubro se as perder.

Para disfarçar suas intenções, depois de acenar com o fantasma do comunismo para meter medo nos seus seguidores, Bolsonaro justificou seu apelo às armas:

“O Brasil tem uma área muito cobiçada que é a Amazônica. E para vocês, família brasileira, a arma de fogo é uma defesa da mesma e um reforço para as nossas Forças Armadas”.

E segue o baile. Ou dito de outra forma: e o golpe avança. Passe adiante.