Assad Bina Khahi (Iran) |
Tal como fizeram Lenin, Stalin e Khrushchev, Putin aposta na fixação conveniente de alguns factos do passado. Em 2013, encomendou um livro de História rescrito para toda a Federação Russa, onde a brutal repressão estalinista que matou 20 milhões de pessoas era atenuada e as reformas do tirano destacadas. Em 2021, decretou a proibição de comparações entre a União Soviética e a Alemanha nazi. E em 2022, para justificar a “operação especial militar” da Ucrânia, faz uso do conceito de nazismo. “Desnazificar” a Ucrânia e lutar contra os nazis ucranianos virou slogan de guerra e mote para consumo interno na Rússia e fora dela, replicado pelos amplificadores do argumentário do Kremlin no mundo inteiro (é lembrar a declaração de Paula Santos, líder parlamentar do PCP, que disse que Zelensky “personifica um poder xenófobo e belicista, rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi”).
Tanto a técnica da desvirtuação histórica como a retórica são antigas. E, como todas as variações de propaganda, funcionam melhor se tiverem um remoto fundo de verdade. A União Soviética usou linguagem semelhante, numa tentativa de desacreditar o nacionalismo ucraniano como nazismo, chamando aos ucranianos pró-ocidentais “banderites”, referindo-se a Stefan Bandera, que colaborou com a Alemanha nazi e lutou ferozmente pela independência ucraniana nos anos 30 e 40. O tema, é um facto, ressoa bastante para os russos. Na Rússia (que chegou ela própria a assinar um entendimento – o pacto Molotov-Ribbentrop – com a Alemanha Nazi em 1939 e, depois, um acordo comercial em 1940), a luta contra o nazismo mobilizou toda uma nação e custou muitos milhões de vidas. E a vitória contra a Alemanha nazi, celebrada esta semana, considerada a Grande Guerra Patriótica, é vista como uma das conquistas mais importantes do seu passado glorioso.
Depois da anexação da Crimeia, em 2014, a narrativa do nazismo ucraniano foi amplificada, de forma a passar internamente e recolher o apoio da população russa. Quanto mais se invocar uma glória do passado e desumanizar o inimigo, mais fácil se torna amplificar o ódio contra ele, já se sabe.
A democracia ucraniana, com um passado recente atribulado, está longe de ser madura e personificar todas as virtudes do liberalismo político e Zelensky não será um político impoluto. Sim, a Ucrânia tem, no seu seio, movimentos de extrema-direita, tal como muitos países ocidentais (financiados, aliás, pelo Kremlin), mas com apenas um deputado representado no parlamento. E, sim, o badalado Batalhão Azov, uma milícia paramilitar que foi incorporada no exército ucraniano para combater os invasores no Donbass, foi fundado e inclui elementos de ideologia neonazi, entre outros de motivações diferentes. Isto serve, no entanto, de argumento para tudo para os russos e seus apoiantes. A questão é que, de problemas identificados e de pequena expressão nacional, parte-se para a supergeneralização de 44 milhões de ucranianos, mesmo quando o seu Presidente eleito por esmagadora maioria é judeu e isso nunca foi sequer tema de campanha.
No mundo de Putin, a palavra nazismo banalizou-se e virou triste sinónimo de personificação do mal. Na propaganda russa, todos os inimigos são fascistas (quando é a própria Rússia dos dias de hoje que tem cada vez mais características totalitaristas), e todos os inimigos são apelidados de nazis (quando dentro da Rússia há também movimentos supremacistas brancos e de extrema-direita). E é assim também que se desonra um dos momentos mais negros da História da Humanidade. Repugnados, dezenas de historiadores especialistas no genocídio, nazismo e II Guerra Mundial assinaram uma carta condenando o “abuso cínico do termo genocídio pelo governo russo, a memória da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto e a equação do Estado ucraniano com o regime nazi para justificar a sua agressão não provocada”.
É uma ironia que Putin, fazendo um uso mítico da História para justificar os crimes do presente, alegue a luta contra o nazismo, quando ele próprio tende a replicar o comportamento de Hitler. Basta olhar para a anexação da Áustria, em 1938, da Polónia, em 1939, e o que se seguiu. Há o mesmo argumento da necessidade de proteger populações da sua etnia, a mesma ambição imperialista, a mesma repressão interna e o mesmo desrespeito absoluto por vidas humanas e pelas leis da guerra. Há um ditado que diz que grandes mentes pensam da mesma forma. E as grandes mentes distorcidas também.
Mafalda Anjos
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