segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Gargalhadas demoníacas e tirânicas

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Uma foto possui a qualidade de falar aos olhos e à mente. Ela mostra o real sentido da palavra “evidência”: o que aparece de modo insofismável. No século 20 algumas fotografias mostraram ao mundo fatos graves e ridículos, terríveis e comoventes. Recordo algumas delas: a menina que foge do napalm, no Vietnã; o beijo dos enamorados após a 2.ª Guerra Mundial, nos EUA; o vestido de Marilyn Monroe que se ergue por virtude do vento; a figura de Trotsky cortada na foto por ordem de Stalin; o horror de corpos quase mortos nos campos nazistas. Tais imagens testemunham a brutalidade humana, mas também exibem instantes de frágil ternura, inteligência ou estupidez.

Em formas televisivas ou fílmicas, além da evidência existe a vantagem das figuras em movimento, inclusive e sobretudo no campo da face. Esta última tem sido um meio de estudos filosóficos, artísticos (especialmente no teatro), políticos importantes. Em momentos pouco felizes da ciência, como nas teses avançadas por Lombroso, a cara revelaria o caráter das pessoas, suas mazelas escondidas. Em outro sentido, Diderot, pai das Luzes democráticas, utilizou muito o livro de Le Brun sobre as paixões reveladas na face. Charles Darwin tem um contributo relevante para o tema. As tentativas de velar a linguagem do rosto, desde a mais remota vida em sociedade, encontram nas máscaras o seu grande instrumento. Um capítulo essencial do clássico Massa e Poder traz análises profundas de Elias Canetti sobre a maquiavélica dissimulação permitida ao poderoso mascarado.

Os bisonhos e incultos políticos brasileiros não controlam a técnica do mascaramento. A sua maioria exibe sem nenhum pudor o que lhe vai nas entranhas, confiante na impunidade trazida pelo indecente privilégio de foro.

No dia 23 de novembro último, O Estado de S. Paulo apresentou na primeira página uma foto estarrecedora. Deputados riem às escâncaras em companhia do então ministro Geddel Vieira Lima. Este proclamara que “não havia nada de imoral” em conversar sobre assuntos privados com um colega, em proveito próprio. O quadro exibido no jornal mostra explícito deboche das leis e do povo soberano. Temos nele uma visão completa das pessoas que dominam nossas instituições políticas. Segundo Milan Kundera, “o riso é o domínio do diabo”. Nem todo riso, no entanto. Existe, diz ainda o romancista, o riso dos anjos, movido pela admiração da bela ordem dada ao universo pelo ser divino. A gargalhada demoníaca mostra a quebra daquele ordenamento, o absurdo entronizado nas coisas mundanas (O Livro do Riso e do Esquecimento). A pândega dos deputados, a zombaria e o desprezo pelos cidadãos comuns, traz o selo do Coisa Ruim, do Não-sei-que-diga. Renan Calheiros piorou a dose ao reduzir o episódio a um caso de hermenêutica. Caolha como todas as demais por ele efetivadas, sobretudo no plano da ética pública.

Certa feita a imprensa trouxe notícias bem fundadas sobre o uso, na Câmara dos Deputados, de verbas para o bem-estar de prefeitos e hóspedes de parlamentares. Entre as comodidades e os serviços, a prostituição. Na semana em que a denúncia invadiu páginas de jornais e telas da TV, apareceu outra novidade: a Mesa da Câmara providenciava nova leva de cargos em comissão para servir aos parlamentares. Sem apurar o primeiro escândalo, veio o outro, urdido em silêncio. Um jornalista da TV Record entrevistou Inocêncio de Oliveira. Este negou, rindo muito, a existência de qualquer ato visando a criar cargos. Deu adeus aos brasileiros, virou as costas e seguiu adiante, rindo. Na tela, apareceu o documento oficial criando os cargos.

A mentira e o deboche suscitaram minha indignação. Escrevi um artigo intitulado, justamente, O prostíbulo risonho. Ele me valeu muito ódio dos chamados representantes do povo. Um deles me processou, com apoio de seus iguais. Na oitiva das testemunhas, um auxiliar do acusador assim falou ao jovem magistrado: “Gosto muito do professor Roberto Romano. Mas ele abusou da escrita. Imagine, Excelência, que o professor afirmou existir corrupção no Congresso Nacional!”. Nem o juiz pôde conter o riso, agora angélico.

As gargalhadas dos “nossos representantes” seriam apenas ridículas se não gerassem lágrimas de famílias brasileiras aos milhares A corrupção retira da economia, das políticas públicas, da vida nacional bilhões para lucro dos que deveriam zelar pelo bem comum. Desde a Grécia, o pensamento ético e jurídico ocidental define a prática de usar os bens coletivos em proveito próprio como tirania. O governante correto “guarda a piedade, a justiça, a fé. O outro não tem nem Deus, nem fé, nem lei. Um tudo faz para servir ao bem público e manutenção dos governados. Mas o outro tudo faz para seu lucro particular, vingança ou prazer. Um se esforça por enriquecer seus governados, o outro só eleva sua casa sobre a ruína dos dirigidos (…) um se alegra ao ser avisado em toda liberdade, e sabiamente corrigido, quando falha. O outro não suporta o homem grave, livre e virtuoso (…) um busca pessoas de bem para os cargos públicos. Mas o outro só emprega os piores ladrões para os utilizar como esponjas” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, capítulo IV).

Em A República, ao desenhar a tirania Platão afirma que o péssimo governante realiza uma purga invertida no corpo político: expulsa os cidadãos livres e bons e usa os salafrários como sua base política. Heinrich Heine, poeta lúcido, disse certa feita: “Quando penso na Alemanha, à noite, choro”.

Termino citando um baiano que merece respeito. Dada a desfaçatez exibida na política brasileira, Castro Alves retomaria seus versos candentes: 
“Mas é infâmia demais! (...) Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!/ Andrada! arranca esse pendão dos ares!/ Colombo! fecha a porta dos teus mares!”.
Roberto Romano

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Porque a vida segue ... : Foto:

Da crença ao destino

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É preciso cuidar bem das crenças...

Investir na direção certa. Pequenos desvios trazem graves consequências. Nada fica impune. Nada sai de graça.

Imaginar que práticas e métodos inaceitáveis possam trazer um destino desejável é, no mínimo, intelectualmente desonesto, eticamente inviável, moralmente errado. Crença equivocada, enfim.

Crenças erradas se transformam em pensamentos tortos. Pensamentos tortos são elásticos. Pequenas transgressões intelectuais viram gigantescas desculpas para o indesculpável. Tolerar o inaceitável com a desculpa de que existe um bem maior. Os fins justificariam os meios.

É preciso cuidar bem dos pensamentos...

Pensamentos tortos se transformam em palavras nocivas. Envenenam a comunicação, a convivência, o dialogo. Desaparece a troca, o aprendizado. Sobram ignorância e confrontos verbais inúteis, estéreis, desnecessários. É o nós contra eles. Ou eles contra nós. Tanto faz a ordem. É sempre ruim.

É preciso cuidar bem das palavras...

Palavras nocivas se degeneram em ações igualmente venenosas. Desembocam na perda de tempo, energia. Desgastam. Transformam adversários em inimigos. Discussão em guerra. Vale tudo na luta pela hegemonia absoluta. Até mesmo o inacreditável, o inaceitável.

É preciso cuidar bem das ações...

Ações viram hábitos. E ações venenosas se convertem em hábitos tóxicos. De tanto fazer, não se percebe mais. Quanto mais se faz, mas gente pratica. Quanto mais gente pratica, mais normal é. E o que não pode passa a poder. O absurdo fica normal.

É preciso cuidar bem dos hábitos...

Hábitos sempre acabam virando valores. Hábitos danosos modificam valores duvidosos. Cristalizam e grudam na alma como mancha teimosa que não sai mais. Elimina critica. Mata o pensamento. Adormece a consciência. A repetição do comportamento justifica tudo. Perpetua o errado. Sem contestação. Para sempre.

É preciso cuidar bem dos valores...

Valores estabelecem limites entre o certo e o errado. Determinam o que é aceitável, individual, e coletivamente. Escrevem as linhas do pacto social. Valores podres fabricam futuros trágicos. Como a gente sabe.

Valores sempre se transformam em destino.

Se gritar pega ladrão...

A ideologia da corrupção generalizada, o toma lá dá cá, o interesse privado antes do interesse público, tudo isso virou regra no andar de cima e no andar de baixo do estrato social.

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O andar de cima extrapolou na gatunagem do erário público. Criou-se a ideologia do enriquecimento ilícito e a lavagem do dinheiro roubado aqui e levado para paraísos fiscais e que agora está retornando, pois até os suíços estão entregando os ladrões.
Roberto Nascimento

Tempo de Big Band

A difícil equação

A Lava Jato segue o seu inexorável curso. É como um cataclismo que se abate sobre a classe política. As delações da Odebrecht, acompanhadas de suas respectivas provas materiais, atingirão a base parlamentar do governo e muito provavelmente muitos de seus ministros. Governar será ainda mais difícil num contexto de devastação da classe política.

Entretanto, o País foi praticamente levado ao abismo pelos governos petistas, com o PIB caindo vertiginosamente, o desemprego alcançando 12 milhões de pessoas, o que equivale a 46 milhões, considerando quatro pessoas por família. As expectativas da população em geral são muito ruins. O impasse é grande.

Urge, portanto, que o governo tome medidas para tirar o País do buraco, o que pressupõe a aprovação da PEC do Teto do gasto público, a reforma da Previdência e a modernização da legislação trabalhista. Sem isso o País continuará patinando no marasmo, se não na decadência.


O problema que se apresenta consiste no timing da aprovação dessas reformas, tendo como pano de fundo o avanço da Lava Jato e o vazamento de suas investigações. As reformas devem ter prioridade, sob o risco de serem inviabilizadas. O que está em questão é o País.

A difícil equação está precisamente nessa correlação. Quanto antes essas reformas forem aprovadas, menor impacto terá a Lava Jato sobre elas; e quanto mais tardarem, mais a Lava Jato poderá atingi-las, até torná-las inviáveis, dada a desordem política daí resultante.

Como se não bastasse, os fatos que levaram à demissão do ex-ministro Geddel expõem outro flanco delicado do governo ao exibirem as complexas relações entre moral e política, sobretudo à luz do cenário atual. Suas repercussões são tanto mais graves por ocorrerem neste momento de devastação da classe política pelas operações da Lava Jato, quando a sociedade civil clama por moralidade pública.

A classe política e setores do governo parecem não ter compreendido que a sociedade brasileira já não admite a política cínica voltada para o atendimento particular de políticos e corporações dos mais diferentes tipos, sejam do funcionalismo público, sejam das corporações patronais e sindicais.

Os interesses corporativos não se podem sobrepor aos do Brasil. O Judiciário e o Ministério Público, que tão relevantes serviços têm prestado ao País, não podem, por exemplo, neste momento de crise aguda, exigir aumentos salariais e variados benefícios enquanto outros não têm o que comer.

Exige-se, hoje, uma política que siga padrões de moralidade pública. Exige-se do novo governo que ele se diferencie do anterior. Se isso não for feito, poderá ser fortalecida a percepção de que a mudança seria apenas mais do mesmo. O País poderia ser paralisado.

O fosso entre a sociedade, de um lado, e a classe política e o governo, de outro, só tende a aumentar se as brigas da corte primarem sobre o bem coletivo. Difunde-se a ideia de que o governo está se dissociando da sociedade.

Os políticos e as corporações continuam num jogo particular, pequeno, como se o precipício não estivesse logo ali. Há um ensimesmamento extremamente perigoso, pois nasce da falta de consciência da gravidade da crise.

A Nação clama por transformações e por um esforço coletivo, devendo a classe política e o governo tomar essa vanguarda. Ora, essa liderança não está sendo exercida a contento, os interesses menores prevalecem sobre os maiores.

Mostra disso está no projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados com o intuito de anistiar os crimes do caixa 2. A insensibilidade parlamentar é total, bem como sua falta de senso de oportunidade. A sociedade clama pela punição dos mais diferentes tipos de crime, enquanto a classe política procura preventivamente isentar-se dessa responsabilidade.

Mesmo que devamos distinguir entre os crimes eleitorais e os de corrupção e propina, o momento não poderia ser mais inadequado. Aos olhos da sociedade aparece essa iniciativa como uma anistia antecipada, uma precaução diante dos desdobramentos da Lava Jato.

A classe política está brincando com fogo. O povo foi às ruas, em especial a classe média, para protestar contra um governo corrupto, que se caracterizou por práticas ilícitas e imorais. O mensalão e o petrolão mostraram isso à saciedade.

As manifestações populares disseram não ao governo Dilma e indiretamente sim ao então vice-presidente Michel Temer, na expectativa de que este se mostrasse diferente do ponto de vista da moralidade. A sua biografia o respalda.

Agora poderão voltar essas manifestações enquanto expressão de aguda indignação moral, podendo elas cair no colo do próprio presidente. Seria o pior dos cenários. Deve ele, portanto, dissociar-se publicamente desse projeto de anistia, dando garantias, já, de que não o sancionará caso aprovado.

Acrescente-se que essas manifestações, caso venham a ser realizadas, teriam uma face nitidamente social, com os desempregados também delas participando. Expressariam toda a sua indignação e seu desamparo.

Juízes poderiam também juntar-se a essas manifestações, protestando contra o projeto de lei da anistia aos crimes do caixa 2, respaldados por movimentos sociais como o MBL e o Vem pra Rua.

A demissão do ministro Geddel tira um pouco o fogo do caldeirão, porém esse indigesto caldo de cultura permanece. O governo deverá avançar tanto nas reformas quanto moralmente, escutando a sociedade e apoiando-se nela. A pauta do governo não pode ser um apartamento na Bahia.

O governo deverá mostrar mais claramente que o seu diferencial consiste em ser moralmente diferente do anterior, o que exige uma reformulação das práticas políticas correntes. Não há mais tergiversação possível. É o futuro do País que está em jogo.

Sonho de 'Maluqinho'

A escola dos meus sonhos primeiro me ensinaria a ler e depois me ensinaria a gostar de ler
Ziraldo

Que país é esse?

Gostaria de ter ido a Salvador para conhecer e mostrar a Igreja de Santo Antônio da Barra, o Forte de São Diogo e o Cemitério dos Ingleses. Na igreja, você assiste à missa e contempla a Baía de Todos os Santos. O Forte de São Diogo foi erguido para defender o flanco sul da cidade, no tempo em que Salvador era a capital do Brasil.

Só que os inimigos não chegaram pelo mar. Vieram de dentro de Salvador, capitaneados por Geddel Vieira Lima. Construiriam um prédio de 30 andares, que, segundo o Iphan, arquitetos e moradores, arruinaria a paisagem.

Felizmente, a paisagem foi salva. Geddel tentou pressionar o ministro da Cultura, mas acabou perdendo a batalha. Quase continuou no cargo. O governo Temer é feito de cumplicidades pretéritas com o objetivo de escapar da Lava-Jato. Ao tentar manter Geddel no cargo, Temer queria impedir que ele caísse nas mãos de Sérgio Moro. Ele é investigado pela Lava-Jato. O apartamento de Geddel no prédio La Vue custou R$ 2,5 milhões. Ou comprou ou ganhou. Em ambas as hipóteses, aumentaria a suspeição da Lava-Jato.

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Lembro-me de Geddel ainda na década dos 1990. Antônio Carlos Magalhães divulgou um dossiê intitulado “Geddel vai às compras”. Os líderes políticos que, inutilmente, lhe deram apoio para evitar sua queda são uma espécie de Bessias, aquele mensageiro cuja missão era evitar que Lula caísse nas mãos de Moro. Não adiantaria muito tentar salvar Geddel, esconder-se nas barras das togas dos ministros do Supremo. A grande delação da Odebrecht vai colocar todo o mundo político na roda.

Existem fortes manobras para decretar uma autoanistia. Essas manobras são conduzidas por Renan Calheiros e Rodrigo Maia, mas têm o apoio de Temer. Eles acreditam que podem deter a Operação Lava-Jato através de um golpe parlamentar. Na verdade, podem aumentar a irritação popular com eles e transformar a delação da Odebrecht num genocídio da espécie.

Temer e a cúpula do PMDB, embora estejam trabalhando para estabilizar a economia, confirmam as piores suspeitas. Seu grande objetivo é desmontar a Lava-Jato. Considerei o impeachment um momento importante para atenuar a crise brasileira. Achei que era preciso dar um crédito inicial de confiança para que o desastre econômico fosse reparado. Pouco se avançou nesse campo. Mas eles andam rápido no projeto de autoblindagem.

O que não faz o medo? Se Temer, Moreira, Geddel e Padilha, o quarteto do Palácio, partem para essa luta com Renan Calheiros e Rodrigo Maia, o jovem ancião da política brasileira, eles abrem uma nova frente. Quais são seus motivos? Geddel, por exemplo, já aparece em algumas delações premiadas. Seu enriquecimento é visível. Moreira Franco, também citado cobrando propinas em obras de aeroporto, e Padilha, como Geddel, são velhos sobreviventes. ACM o chamava de Eliseu Quadrilha. O próprio Temer tem dois apelidos na delação da Odebrecht.

No momento em que abrem o jogo, não deixam outro caminho a não ser o de uma oposição implacável. Contam com um grande número de deputados e senadores, mas esses estão apenas cavando mais profundamente sua sepultura. Comandados por Renan Calheiros e o quarteto do Palácio, os políticos brasileiros temem encarar a sua batalha decisiva. Ou liberam a corrupção que sempre os alimentou ou vão para o inferno.

Na biografia de Renato Russo, há menções a Geddel Vieira Lima, que frequentava a mesma escola do cantor. Geddel chegava sempre num carro verde e dizia que seu sonho era ser político. Renato Russo o achava insuportável. O que diria hoje diante da bela paisagem que Geddel ameaçava em Salvador?

Não pude ir à Bahia porque a crise no Rio me levou aos presídios de Bangu. Agora que um ex-governador está lá dentro, vale a pena conhecer o que é aquilo. Passei uma noite em claro para documentar o esforço das famílias em visitar os presos. Existe uma visão geral de que as famílias também são culpadas e devem pagar um pouco pelos crimes de seus filhos, pais e maridos. É um equivoco. Com a prisão de Cabral, o sistema penitenciário tem dois caminhos: ou cria um regime de exceção para ele e sua família ou racionaliza a visita de todos os 26 mil presos no complexo. Parece mais fácil criar um regime de exceção. Mas com um bom aplicativo, o que leva horas de espera, pegar uma senha, poderia ser feito pelo telefone. Pelo menos, os problemas com Cabral em Bangu são mais fáceis de equacionar do que os da cúpula do PMDB.

Presos, ainda dão trabalho. Muito menos, no entanto, do que a Renan Calheiros e ao núcleo do Planalto, que mantêm o poder em Brasilia e trabalham, intensamente, numa blindagem de aço especial que consiga, simultaneamente, anular a Lava-Jato com suas evidências e a opinião pública com sua justificada fúria.

Que país é esse? Renato Russo dizia na letra da canção: “na morte eu descanso/ mas o sangue anda solto/ manchando papéis e documentos fiéis”. Como Cabral, Geddel foi às compras. Roubar uma paisagem de nada adianta, porque, na cadeia, o que se vê é o sol nascer quadrado.

O Brasil esperneia na maca

O novo está sendo gestado. Mas os primeiros sinais do seu possível nascimento bastaram para fazer o velho Brasil do compadrio e da corrupção estrebuchar na maca em desespero e desatar no choro dentro de presídios.

O mundo despediu-se de fato do século XX com a morte de Fidel Castro. Por aqui, em matéria de maus costumes políticos, o século passado ainda suspira e ameaça abortar o que se anuncia.

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Há duas semanas, no programa Roda Viva da TV Cultura, perguntei ao presidente Michel Temer o que ele achava do projeto de anistia do caixa dois em discussão na Câmara dos Deputados.

Temer respondeu, sem alongar-se sobre o assunto: “Criminalização do caixa dois é decisão do Congresso e não posso interferir. Se eu disser uma coisa ou outra vão dizer que eu estou defendendo”.

Os defensores do projeto – leia-se: a esmagadora maioria dos deputados – preferem chamá-lo de “criminalização do caixa dois”, como Temer chamou. Na verdade, trata-se de uma anistia em causa própria.

Porque se virar lei, anistiará todos os que doaram ou se beneficiaram de dinheiro não declarado à Receita e à Justiça Eleitoral. Dinheiro sujo, portanto.

Em São Paulo, na última sexta-feira, Temer confidenciou ao líder do PSD, deputado Rogério Rosso (DF), que não permitirá mais qualquer anistia.

Ontem à tarde, em Brasília, na companhia dos presidentes da Câmara e do Senado, Temer afirmou: “No caso da anistia, em dado momento viria para a presidência vetá-la ou não. É impossível sancionar matéria dessa natureza”.

Ora, ora, ora... Mudou Temer ou o Natal?

Temer mudou para sobreviver à crise política desatada com a revelação do depoimento prestado à Polícia Federal pelo ex-ministro da Cultura Marcelo Calero.

O que Temer classificara de “episódio menor”, meteu-se Palácio do Planalto adentro, subiu de elevador até o terceiro andar e arrombou a porta do gabinete presidencial. Ali, instalou-se e nem tão cedo sairá.

Calero disse à polícia que não foi só Geddel Vieira Lima, secretário do governo, que o pressionou para que recuasse no embargo à construção de um prédio de 30 andares em Salvador aonde ele comprara um apartamento.

Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, também pressionou. E, além dele, o próprio Temer. Geddel acabou perdendo o emprego. Temer tenta segurar o seu.

Por isso, deu o dito pelo não dito quanto à anistia do caixa dois e procura um novo secretário de governo com biografia impecável, à prova de futuras delações da Lava-Jato.

Certamente não o encontrará em suas vizinhanças. Temer está condenado a perder em breve para a Lava-Jato alguns dos seus auxiliares de maior confiança. Já perdeu quatro em seis meses. Continua impopular.

Este é o paradoxo Temer: a “ponte para o futuro”, pretensioso nome dado a documento do PMDB que saudou o povo e pediu passagem a uma nova ordem de coisas, é uma frágil pinguela.

Por enquanto, a nova ordem só tem a ver com uma gestão mais racional da economia em pandarecos. Em tudo o mais, é o antigo que ferido de morte esperneia para não sair de cena.

Qual é a saída? Fora da lei não há saída, não pode haver. Ela manda que Temer governe até 2018 quando se elegerá o novo presidente.

Faltam 33 dias para o fim do ano. No próximo, caberia ao Congresso escolher um substituto de Temer caso ele fosse impedido de completar o mandato.

Logo ao Congresso, depósito de todas as mazelas nacionais que se deseja varrer... E aí? Vai encarar?
Ricardo Noblat

Paisagem brasileira

Manhã, Denise Storer

O plano diabólico de Marcelo Odebrecht para enterrar a Lava Jato

Marcelo Odebrecht, presidente licenciado da empreiteira, montou uma estratégia prodigiosa que pode livrar ele da cadeia e mais os seus 70 diretores que também fizeram deleção premiada em troca de penas menores ou do perdão pelos crimes da Lava Jato. Ao denunciar mais de 200 pessoas, dos quais mais de 100 políticos, como cúmplices da sua empresa nos atos de corrupção das estatais brasileiras, Marcelo pretende travar o processo, pois sabe que o STF vai demorar muito tempo para julgar os acusados.

Ora, se a principal Corte do país precisa de anos para analisar o processo de apenas um político é de se supor que outras dezenas de anos deverão ser necessários para que o tribunal comece a julgar o primeiro da lista dos delatados pela Odebrecht. Desde o dia 31 de dezembro de 2015, primeiro ano da Lava Jato, já existem na mesa de Teori Zavascki, 7.423 processos. E em todo tribunal dormem outros 61.962. Os mais de 100 advogados da empreiteira já entregaram a defesa dos seus executivos aos procuradores em pendrive. Convertido em outra montanha de papeis, os processos vão se acumular nos porões do STF. 

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Ao oferecer ao Ministério Público a delação premiada de todos os diretores da sua empresa, Marcelo pretende engabelar os procuradores que não terão como estabelecer o critério de prioridade para ir fundo nas investigações tal a quantidade de informações recebidas. Apelidada de “Delação do fim do mundo”, esse processo da Odebrecht corre o risco de ficar na gaveta do STF até prescrever e os saqueadores das empresas públicas impunes, a exemplo de outros que estão por lá até hoje.

A papelada vai ocupar salas e mais salas do tribunal e exigir do ministro Teori Zavascki um esforço hercúleo para oferecer denúncias aos mais de 100 políticos envolvidos na caixinha da empreiteira. Antes, porém, terá que começar a ouvir as testemunhas de acusação e de defesa. Como todos conhecem a leniência do STF, é de se imaginar o longo caminho que percorrerá esse processo a ter o seu desfecho final.

Os procuradores, que acharam estar diante da maior delação do mundo, não imaginaram o tamanho do abacaxi ao aceitar que Marcelo incluísse na sua delação premiada todos os diretores da sua empresa. A esmola era grande e o cego não desconfiou. Assim, diante de tantos nomes revelados pela Odebrecht como envolvidos no esquema, é difícil saber por onde o STF deverá começar a operação do desmonte da gigantesca delação.

A estratégia de Marcelo foi traçada meticulosamente com seus advogados. Ele sabe que se entregasse apenas a cabeça dos ex-presidentes da república envolvidos na maracutaia e as dos políticos mais importantes, ainda atuantes no país, sua empresa e ele próprio estariam mais vulneráveis a retaliações, pois muitos deles não só tem mandatos como ainda dão as cartas no país. Assim é que ele decidiu embaralhar o jogo. Apresentou uma lista com centenas de nomes para dar a todos eles o mesmo peso na denúncia e distanciar também os notáveis dos julgamentos já que todos fazem parte dessa lista quilométrica.

O plano de Marcelo deu certo. Condenado a 19 anos de prisão, a sua pena deverá ser reduzida e ele irá para casa onde se submeterá a atos disciplinares até sair livremente às ruas. Pelo acordo, seus diretores não serão punidos. E muitos deles ainda receberão milhões de reais da empresa como compensação indenizatórias pela delação a pretexto de se protegerem do desemprego.

Enquanto isso, no STF, todos os processos da Lava Jato vão se acumulando até os fatos caírem no esquecimento da opinião pública. Não seria exagero dizer aqui que o processo da Lava Jato vai passar de mãos em mãos por anos a fio quando então os atuais ministros já teriam deixado o tribunal pela compulsória. Muitos dos réus jamais serão julgados, pois alguns serão beneficiados pela idade, outros pela prescrição de pena e a maioria terá seus processos arquivados.

Assim, os procuradores e o juiz Sérgio Moro, tão eficientes nas investigações da Lava Jato, um dia contarão aos seus netos que tentaram colocar o Brasil nos eixos, mas certamente esconderão dessa história a parte em que foram ludibriados por um tal Marcelo que os envolveu em um plano diabólico para transformar a operação Lava Jato em um amontoado de papeis inúteis e obsoletos.

Abominável mundo novo

Em 1960 duas imagens ocupavam a imaginação da juventude, claro que aquela com acesso às informações e açodadamente disposta a aceitar as parcelas pelo todo. Não havia uma universidade que não promovesse debates e manifestações em favor da revolução cubana, que desde 1959 registrava a onda reformista capaz de alastrar-se pelo planeta inteiro. Em especial na América Latina e na Europa, respirava-se a iminência de mudanças fundamentais na política e na economia.

Em paralelo, vinham das estepes russas, através de profundas alterações nos meios de comunicação, com ênfase para a propaganda, sinais de que a Humanidade caminhava para o socialismo. Primeiro o sputnik, depois a viagem de Iuri Gagárin ao redor do mundo, a cadelinha Laika e, mais tarde, a explosão dos jovens, de Paris para os demais quadrantes.

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Paweł Kuczyński 
Exemplos redobrados de sucesso inevitável na construção de um mundo novo eram Nikita Kruschev, Mao Tse-tung, João XXIII, John Kennedy, De Gaulle, Fidel Castro, Che Guevara e, entre nós, Jânio Quadros.

Imaginávamos uma realidade composta de diferentes matizes, até conflitantes, mas todos exprimindo o anseio irresistível de mudanças estruturais. Valia à pena viver naquele limiar de conquistas que breve estaríamos gerindo e aprimorando.

O tempo passou e com ele a inevitável lei da física, de que a cada ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. O mundo é esse aí, mesmo, entregue à miséria, a fome e à desilusão. O dia seguinte sempre consegue ficar um pouquinho pior do que a véspera.

Essas supérfluas e incompletas considerações nos fazem não perder a esperança de uma reviravolta. Quem sabe a demissão de Geddel Vieira Lima venha a marcar a passagem do abominável para o admirável?

Carlos Chagas

O inglês da Tijuca

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Monteiro Lobato tinha ideias muito adultas nos assuntos de economia, e um de seus porta-vozes mais interessantes era o personagem que dá título a este artigo. Este seu rubicundo amigo imaginário, nascido em Hull em 1872, educado em Cambridge, “pensava em linha reta e via com nitidez: daí o ser olhado de esguelha pelos que viam torto e pensavam com teias de aranha”.

Os diálogos entre Lobato e John Irving Slang (Mr. Slang) foram publicados em crônicas, depois reunidas em livro em 1927. Em 1932, o personagem reaparece na coletânea de Lobato sobre sua longa temporada nos EUA, mais agudo do nunca.

Mr. Slang transformava cada detalhe da vida brasileira em uma diatribe. Em sua primeira aparição, em 1927, somos informados que se tratava de pacato amante de orquídeas, mas, conforme corrigiu Lobato, seu interesse verdadeiro era algo assemelhado, o “parasitismo social”. A atualidade de Mr. Slang, a ver adiante em cinco passagens, é um monumento ao nosso atraso.

Primeiro exemplo: de sua varanda avistava uma velha caixa-d’água roída pela ferrugem, a propósito da qual, como se estivesse falando na PEC do Teto, observou:

— Sempre que a vejo tenho a sensação física dos orçamentos do Brasil. O orçamento do Brasil compõe-se de uma torneira como aquela, a Receita, e de uma infinidade de “ladrões” por onde a água escapa. Sabe o que é um “ladrão” em técnica hidráulica?

Segundo exemplo, a propósito de impostos, parecendo refletir sobre a sentença do Carf contra Gustavo Kuerten:

— O sistema tributário do Brasil, não contente de tomar dinheiro, toma também esforço. Cobra duas vezes, uma em moeda, outra em energia humana. Ficou ele com a mesma psicologia colonial. Daí a sua forma de castigo ao trabalho, de empeço aos movimentos livres. Não é amarrando um homem e embaraçando-lhe todos os movimentos que esse homem ganhará corridas no steeplechase (corrida de obstáculos) internacional.

Terceiro, sobre o comércio internacional, parece provocar a Fiesp:

— A humanidade somente progride dentro do respeito às leis biológicas. A concorrência é a lei biológica do progresso. E o que é o protecionismo senão essa força estranha que impede a vitória do melhor e protege o pior? O protecionismo não protege a indústria e, sim, apenas a incapacidade industrial. Que vantagem há para um país em criar no seu organismo este inchaço simulador de músculo? O protecionismo enriquece alguns indivíduos, mas empobrece a comunidade.

Quarto: sobre o velho clichê segundo o qual o Brasil é um país muito jovem, daí os erros.

— País novo! Vejo esta razão apresentada muito amiúde, como uma das fórmulas, uma das frases feitas do brasileiro. Já meditou sobre ela? O Brasil é velho, meu caro, é um dos povos mais velhos do mundo. Idade, nas pessoas e nos povos, não se calcula pelo número de anos. Dê-me um rapazola, seu patrício, que não pense com cérebro de 70 anos, e que, ao sair de uma escola superior, não aspire a entrar na vida “já aposentado”, isto é, que não aspire colocar-se num dos quadros do monstruoso parasitismo burocrático que aqui rói, como piolheira, o trabalho dos que trabalham.

Quinto: a conjuntura política era difícil em 1927, denúncias de corrupção estavam em toda parte. Referindo-se a Washington Luís, que sucede Arthur Bernardes, que tomam como desonesto, Lobato pergunta:

— Acha, Mr. Slang, que o novo presidente, sendo um valor moral, conseguirá restabelecer a moralidade no Brasil?

— Não acho. Poderá iniciá-la apenas. O trabalho reconstrutivo é lento e não cabe nas forças de um homem. Enquanto perdurar no organismo administrativo a ação dos elementos amorais, nele sistematicamente embutidos durante o período ciclônico, o Brasil não recuperará a saúde moral. Contra um mau ministro do Supremo Tribunal, com dez ou 20 anos de vida, o que poderá o senhor Washington Luís, que dentro de três e pouco não será mais governo?

Bem, o Brasil de que fala Mr. Slang é o de 1927: hoje é tudo diferente, não é mesmo?