terça-feira, 27 de outubro de 2020
A fila cresce na bolsopandemia
É um desastre administrativo sem precedentes. A quantidade de processos atrasados na Previdência ultrapassou 4,4 milhões. Estão pendentes mais de 3,6 milhões de perícias e 788 mil avaliações de assistência social, atestam os dados oficiais auditados no dia 30 de agosto.
Por trás das estatísticas, está uma multidão sem rosto, de pobres com algum tipo de incapacidade, dependentes das aposentadorias e pensões ainda não reconhecidas. O número de vítimas desse congestionamento no INSS já equivale a 60% dos habitantes do Rio. Supera a população da Baixada Fluminense.
A confusão nada tem a ver com falta de dinheiro. É desleixo burocrático mesmo, com limitada contribuição da pandemia — o volume de processos atrasados aumentou um terço entre março e agosto. No caos florescem interesses de corporações, como a dos médicos peritos.
É reflexo da falta de liderança. Mas isso, naturalmente, não está na agenda de Jair Bolsonaro, mais preocupado com a reeleição sob a bandeira do retrocesso secular, numa fraudulenta defesa do liberalismo. Na bolsopandemia, ele já desperdiçou dinheiro público com químicos inócuos, redefinindo o charlatanismo na política.
O filme é antigo. Foi visto há 170 anos, quando a febre amarela aportou a bordo de um navio de bandeira americana, devastando o império de Pedro II. Em abril de 1850, o senador mineiro Bernardo Pereira de Vasconcellos, defensor da escravidão, foi à tribuna do Senado para pregar a “liberdade” de ficar doente, sem interferência do governo: “Peço que me deixem curar com charlatães quando entender que me podem servir melhor do que os senhores doutores”. Morreu duas semanas depois, de febre amarela.
O presidente agora propõe uma revolta da vacina, como a de 1904. É ardil de campanha, conveniente para encobrir a tragédia de 157 mil mortes e a incapacidade de resolver problemas governamentais que se agravam, como o do INSS. No melhor cenário, estima o Tribunal de Contas da União, o último dessa fila só será atendido dentro de 34 meses, por volta de agosto de 2023. Ou seja, no próximo governo.
Por trás das estatísticas, está uma multidão sem rosto, de pobres com algum tipo de incapacidade, dependentes das aposentadorias e pensões ainda não reconhecidas. O número de vítimas desse congestionamento no INSS já equivale a 60% dos habitantes do Rio. Supera a população da Baixada Fluminense.
A confusão nada tem a ver com falta de dinheiro. É desleixo burocrático mesmo, com limitada contribuição da pandemia — o volume de processos atrasados aumentou um terço entre março e agosto. No caos florescem interesses de corporações, como a dos médicos peritos.
É reflexo da falta de liderança. Mas isso, naturalmente, não está na agenda de Jair Bolsonaro, mais preocupado com a reeleição sob a bandeira do retrocesso secular, numa fraudulenta defesa do liberalismo. Na bolsopandemia, ele já desperdiçou dinheiro público com químicos inócuos, redefinindo o charlatanismo na política.
O filme é antigo. Foi visto há 170 anos, quando a febre amarela aportou a bordo de um navio de bandeira americana, devastando o império de Pedro II. Em abril de 1850, o senador mineiro Bernardo Pereira de Vasconcellos, defensor da escravidão, foi à tribuna do Senado para pregar a “liberdade” de ficar doente, sem interferência do governo: “Peço que me deixem curar com charlatães quando entender que me podem servir melhor do que os senhores doutores”. Morreu duas semanas depois, de febre amarela.
O presidente agora propõe uma revolta da vacina, como a de 1904. É ardil de campanha, conveniente para encobrir a tragédia de 157 mil mortes e a incapacidade de resolver problemas governamentais que se agravam, como o do INSS. No melhor cenário, estima o Tribunal de Contas da União, o último dessa fila só será atendido dentro de 34 meses, por volta de agosto de 2023. Ou seja, no próximo governo.
Após a tempestade
Em tempos de imprevisibilidade, como os atuais, o remédio é se agarrar ao velho ditado “a cada dia a sua agonia”. A quarentena universal matou o presente e nublou o futuro, principalmente o econômico, mas cada um em seu quintal enfrentou de forma mais ou menos eficiente o ano que a pandemia nos roubou.
A negação da tragédia não foi exclusividade brasileira, mas sua permanência como bandeira do governo federal custou não só vidas, como também desorientou a população e deixa como única previsão possível uma derrocada econômica que se fará visível em toda a sua extensão no próximo ano.
Os dados recentes apontam 14 milhões de desempregados – um milhão a mais que o número herdado pelo atual governo. O Sebrae registra R$ 105 bilhões em débitos acumulados pelas micro e pequenas empresas e prevê uma nova onda de fechamento de empresas. O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, alerta para uma fuga de capitais em curso.
Nesse contexto é razoável raciocinar que o ano de 2021 poderá ser melhor em relação à questão sanitária, caso surja efetivamente a vacina buscada pelos cientistas. Mas o mesmo não se pode sustentar em relação à economia e aos dramas sociais. Ainda que tudo volte ao “velho normal”, os danos são de lenta recuperação.
O gerente de políticas públicas do Sebrae, Silas Santiago, em audiência pública no Congresso disse que o crédito não chegou à maior parte das micro e pequenas empresas e defendeu a suspensão do pagamento de tributos para esse segmento, o que já sugerira em vão o ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, e um parcelamento especial de débitos relativos a impostos (Refis do Simples Nacional).
O presidente do Sebrae, Carlos Melles, avalia que somente 50% das microempresas buscaram crédito, pois a outra metade não tem “receptividade” por parte dos bancos, e, das que procuraram, ele informou que somente 22% foram atendidas.
Por ironia, ou não, o diagnóstico do presidente da Confederação Nacional das Micro e Pequenas Empresas e Empreendedores Individuais (Conampe), Ercílio Santinonni, lembrou declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, na célebre reunião ministerial de abril, ao afirmar que “o “pequenininho não teve acesso ainda ao crédito”.
Guedes defendeu, na ocasião, que o governo se preocupasse com os grandes, pois com os pequenos perderia dinheiro. Criticado, disse que a frase foi mal interpretada e retirada do contexto. Bem, o contexto é o que está aí, nos dados que servem de certidão de óbito de centenas de empresas.
As reformas, principalmente a administrativa, patinam como ideias salutares, mas nem o Legislativo e nem o Executivo dão sinais efetivos de vontade política para leva-las a termo. Elas poderiam amenizar o gargalo que drena qualquer otimismo para 2021.
Tudo é incerto no contexto político, portanto, dada a precariedade da economia e o pessimismo justificado quanto à capacidade de recuperação em curto prazo. A questão sanitária, admitida a vacina, pode devolver o ânimo geral, mas o recomeço econômico não autoriza otimismo.
João Bosco Rabello
A negação da tragédia não foi exclusividade brasileira, mas sua permanência como bandeira do governo federal custou não só vidas, como também desorientou a população e deixa como única previsão possível uma derrocada econômica que se fará visível em toda a sua extensão no próximo ano.
Os dados recentes apontam 14 milhões de desempregados – um milhão a mais que o número herdado pelo atual governo. O Sebrae registra R$ 105 bilhões em débitos acumulados pelas micro e pequenas empresas e prevê uma nova onda de fechamento de empresas. O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, alerta para uma fuga de capitais em curso.
Nesse contexto é razoável raciocinar que o ano de 2021 poderá ser melhor em relação à questão sanitária, caso surja efetivamente a vacina buscada pelos cientistas. Mas o mesmo não se pode sustentar em relação à economia e aos dramas sociais. Ainda que tudo volte ao “velho normal”, os danos são de lenta recuperação.
Loyola adverte para a delicadeza da situação fiscal e apela ao Congresso Nacional para um orçamento em 2021 de respeito ao teto de gastos e com responsabilidade fiscal. “Temos grupos fortes dentro do governo que estão defendendo aumento de gastos e o rompimento do teto”, disse à agência americana Bloomberg.
O gerente de políticas públicas do Sebrae, Silas Santiago, em audiência pública no Congresso disse que o crédito não chegou à maior parte das micro e pequenas empresas e defendeu a suspensão do pagamento de tributos para esse segmento, o que já sugerira em vão o ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, e um parcelamento especial de débitos relativos a impostos (Refis do Simples Nacional).
O presidente do Sebrae, Carlos Melles, avalia que somente 50% das microempresas buscaram crédito, pois a outra metade não tem “receptividade” por parte dos bancos, e, das que procuraram, ele informou que somente 22% foram atendidas.
Por ironia, ou não, o diagnóstico do presidente da Confederação Nacional das Micro e Pequenas Empresas e Empreendedores Individuais (Conampe), Ercílio Santinonni, lembrou declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, na célebre reunião ministerial de abril, ao afirmar que “o “pequenininho não teve acesso ainda ao crédito”.
Guedes defendeu, na ocasião, que o governo se preocupasse com os grandes, pois com os pequenos perderia dinheiro. Criticado, disse que a frase foi mal interpretada e retirada do contexto. Bem, o contexto é o que está aí, nos dados que servem de certidão de óbito de centenas de empresas.
Governo não é banco, e vice-versa, mas é do primeiro a sinalização aos agentes financeiros para o rumo a seguir. Em ambiente de medidas claras, conceitos responsáveis, método e programação, se instala a confiança que faltou para que o crédito chegasse não só aos que conseguiram manter alguma reserva, mas também para aqueles que desidrataram no deserto.
As reformas, principalmente a administrativa, patinam como ideias salutares, mas nem o Legislativo e nem o Executivo dão sinais efetivos de vontade política para leva-las a termo. Elas poderiam amenizar o gargalo que drena qualquer otimismo para 2021.
Poderia estar pior, não fosse o auxílio emergencial que chegou à sonora quantia de R$ 300 bilhões e serviu de colchão para 70 milhões do segmento de baixa renda. Mas ele tem limite e o mais provável é que passado o vendaval o poder de consumo não corresponda à oferta.
Tudo é incerto no contexto político, portanto, dada a precariedade da economia e o pessimismo justificado quanto à capacidade de recuperação em curto prazo. A questão sanitária, admitida a vacina, pode devolver o ânimo geral, mas o recomeço econômico não autoriza otimismo.
João Bosco Rabello
Versos a um Coveiro I
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!
Augusto dos Anjos
Vacina: o Queiroz do futuro
Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.
Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.
Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?
A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.
O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.
Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.
Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.
Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.
Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.
A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.
Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.
Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.
Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.
Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.
Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.
Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?
A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.
O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.
Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.
Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.
Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.
Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.
A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.
Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.
Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.
Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.
Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.
Um regime como o da Venezuela para Bolsonaro chamar de seu
Chico Rodrigues (DEM-RO), sim, o do dinheiro na cueca e entre as nádegas, foi destituído da função de vice-líder do governo no Senado porque o que ele fez poderia respingar na imagem do presidente Jair Bolsonaro. Não seria o caso, agora, e pelo mesmo motivo, de Bolsonaro destituir também Ricardo Barros (PP-PR) da função de líder do governo na Câmara dos Deputados?
Ex-ministro da Saúde do governo Michel Temer, Barros pegou carona no plebiscito do Chile que aprovou por quase 80% dos votos a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte para sugerir que algo parecido ocorresse por aqui. Para ele, a atual Constituição, em vigor desde 1988, deve ser reescrita porque é impossível governar com ela, tantos são os seus defeitos.
Trata-se, segundo o ex-ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, da “opinião de alguém que não sabe o que é Constituição, não sabe o que é política, não sabe o que é governabilidade”. Se política tem a ver com dinheiro sujo no bolso, Barros entende. Em meados do mês passado, ele foi alvo de operação que investiga crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
Ex-ministro da Saúde do governo Michel Temer, Barros pegou carona no plebiscito do Chile que aprovou por quase 80% dos votos a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte para sugerir que algo parecido ocorresse por aqui. Para ele, a atual Constituição, em vigor desde 1988, deve ser reescrita porque é impossível governar com ela, tantos são os seus defeitos.
Trata-se, segundo o ex-ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, da “opinião de alguém que não sabe o que é Constituição, não sabe o que é política, não sabe o que é governabilidade”. Se política tem a ver com dinheiro sujo no bolso, Barros entende. Em meados do mês passado, ele foi alvo de operação que investiga crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
A operação teve como base os depoimentos de dois ex-executivos do grupo Galvão que fecharam acordos de delação premiada com a Lava Jato. Segundo os delatores, Barros recebeu mais de R$ 5 milhões em propina da empresa Galvão Participações, de 2013 a 2014. Na época, ele era secretário de Indústria e Comércio do Paraná. O deputado jura que é inocente.
Assembleia Nacional Constituinte só faz sentido quando há uma ruptura institucional. Aqui houve quando se esgotou em 1985 a ditadura militar de 64 e o Brasil reconciliou-se com a democracia. Era preciso uma nova carta para regular o novo regime. A democracia no Chile foi restabelecida em 1990, mas o país vive até hoje sob uma Constituição herdada da ditadura.
O Congresso tem como fazer mudanças pontuais na Constituição de 1988 por meio de propostas de emendas – e muitas já foram feitas. A Constituição suportou dois processos de impeachment de presidente da República – o de Collor e o de Dilma. E tem sobrevivido incólume às investidas de Bolsonaro contra ela. Não há sequer sinais de uma ruptura institucional por estas bandas.
Então para quê reformá-la de ponta a cabeça? Para aumentar os poderes de um presidente adepto da ditadura e defensor da tortura? Era só o que faltava. Bolsonaro denuncia os males do regime venezuelano de Chávez e Maduro e, no entanto, gostaria de poder cloná-lo. É porque esse é seu sonho que ele não destituirá Barros. Se não dá agora, quem sabe em um segundo mandato?
Assembleia Nacional Constituinte só faz sentido quando há uma ruptura institucional. Aqui houve quando se esgotou em 1985 a ditadura militar de 64 e o Brasil reconciliou-se com a democracia. Era preciso uma nova carta para regular o novo regime. A democracia no Chile foi restabelecida em 1990, mas o país vive até hoje sob uma Constituição herdada da ditadura.
O Congresso tem como fazer mudanças pontuais na Constituição de 1988 por meio de propostas de emendas – e muitas já foram feitas. A Constituição suportou dois processos de impeachment de presidente da República – o de Collor e o de Dilma. E tem sobrevivido incólume às investidas de Bolsonaro contra ela. Não há sequer sinais de uma ruptura institucional por estas bandas.
Então para quê reformá-la de ponta a cabeça? Para aumentar os poderes de um presidente adepto da ditadura e defensor da tortura? Era só o que faltava. Bolsonaro denuncia os males do regime venezuelano de Chávez e Maduro e, no entanto, gostaria de poder cloná-lo. É porque esse é seu sonho que ele não destituirá Barros. Se não dá agora, quem sabe em um segundo mandato?
O golpismo disfarçado
O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.
O SUS em perigo
A pandemia de covid-19 realçou de forma dramática a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). Basta dizer que o SUS é o único refúgio para 7 em cada 10 pessoas que precisam de atendimento médico no Brasil. Não fosse a rede de atendimento do SUS em todo o País, a maior tragédia sanitária que se abateu sobre nós em mais de um século seguramente teria uma dimensão ainda mais soturna do que a registrada até o momento. Já são 5,3 milhões de casos confirmados de covid-19 e mais de 154 mil mortos.
Entre o fim de julho e o início de agosto, no período mais difícil da evolução da pandemia no Brasil, o Estado publicou uma série de editoriais que não apenas abordavam o papel central desempenhado pelo sistema público de saúde no socorro aos doentes, como também os grandes desafios impostos ao SUS pelo novo coronavírus, além, é claro, das deficiências crônicas do sistema, como a desatualização da tabela de procedimentos e a falta de investimentos. Em suma, avizinha-se uma tempestade perfeita que poderá levar o SUS ao colapso em 2021 se nada for feito para reverter essa nefasta tendência.
O Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) de 2021 prevê R$ 123,8 bilhões para a saúde. O valor representa uma queda de cerca de R$ 40 bilhões em relação ao orçamento da área aprovado para este ano, considerando no cálculo o aporte dos créditos extraordinários que foram aprovados para o combate à pandemia.
Os recursos previstos são insuficientes até mesmo para o custeio dos serviços regulares prestados pelo SUS, há muito subfinanciado. Especialistas em gestão de saúde pública ouvidos pelo jornal Valor alertaram para o fato de que a pressão sobre o SUS decorrente da pandemia ainda não cedeu por completo e a ela se somará, em breve, a retomada de atendimentos eletivos que foram sustados em 2020 pelo receio de muitos pacientes de acorrer aos hospitais e contrair o novo coronavírus. “O risco de colapso do SUS não é mais devido à covid-19 apenas, mas também pela falta de recursos para suprir demandas não atendidas este ano e que devem ter consequências no ano que vem”, alertou o médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Além desses dois problemas, que já são alarmantes por si sós – os reflexos da pandemia sobre o SUS, que ainda vão perdurar por muito tempo, e a retomada dos atendimentos represados –, outros dois não podem sair do radar de governantes e parlamentares. O primeiro é a mudança demográfica da população brasileira, que envelhece. Isso aumenta a complexidade dos atendimentos prestados no âmbito do SUS e, consequentemente, os seus custos. Outra fonte de pressão sobre o sistema público de saúde é o aumento do número de usuários em decorrência da crise econômica. É cada vez maior o número de brasileiros que deixam de pagar por um plano de saúde particular e passam a depender exclusivamente do SUS.
Por todas essas razões, é absolutamente inconcebível que o SUS receba menos recursos em 2021 do que tem recebido neste ano. A menos que a destruição definitiva de uma das maiores conquistas da sociedade brasileira seja o desiderato dos que têm em suas mãos a capacidade de agir agora para evitar o pior logo adiante. Não é crível que seja este o espírito que anima homens e mulheres no Executivo e no Congresso.
Do ponto de vista material, o SUS foi bastante aparelhado durante a pandemia. De nada adiantará este legado se não houver recursos para manter os equipamentos funcionando e servindo aos pacientes. Não menos importante é o cuidado que se deve ter com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e todos os demais profissionais da área da saúde que atuam no SUS e não têm sido devidamente valorizados.
Ter um sistema público de saúde universal e gratuito foi um inequívoco desejo da sociedade, a ponto de ser inscrito na Constituição. Isso custa muito dinheiro. Mas custo ainda maior – imensurável – seria não o ter. Cabe ao Executivo e ao Legislativo encontrar as soluções para fazer valer um direito de todos os brasileiros.
Entre o fim de julho e o início de agosto, no período mais difícil da evolução da pandemia no Brasil, o Estado publicou uma série de editoriais que não apenas abordavam o papel central desempenhado pelo sistema público de saúde no socorro aos doentes, como também os grandes desafios impostos ao SUS pelo novo coronavírus, além, é claro, das deficiências crônicas do sistema, como a desatualização da tabela de procedimentos e a falta de investimentos. Em suma, avizinha-se uma tempestade perfeita que poderá levar o SUS ao colapso em 2021 se nada for feito para reverter essa nefasta tendência.
O Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) de 2021 prevê R$ 123,8 bilhões para a saúde. O valor representa uma queda de cerca de R$ 40 bilhões em relação ao orçamento da área aprovado para este ano, considerando no cálculo o aporte dos créditos extraordinários que foram aprovados para o combate à pandemia.
Os recursos previstos são insuficientes até mesmo para o custeio dos serviços regulares prestados pelo SUS, há muito subfinanciado. Especialistas em gestão de saúde pública ouvidos pelo jornal Valor alertaram para o fato de que a pressão sobre o SUS decorrente da pandemia ainda não cedeu por completo e a ela se somará, em breve, a retomada de atendimentos eletivos que foram sustados em 2020 pelo receio de muitos pacientes de acorrer aos hospitais e contrair o novo coronavírus. “O risco de colapso do SUS não é mais devido à covid-19 apenas, mas também pela falta de recursos para suprir demandas não atendidas este ano e que devem ter consequências no ano que vem”, alertou o médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Além desses dois problemas, que já são alarmantes por si sós – os reflexos da pandemia sobre o SUS, que ainda vão perdurar por muito tempo, e a retomada dos atendimentos represados –, outros dois não podem sair do radar de governantes e parlamentares. O primeiro é a mudança demográfica da população brasileira, que envelhece. Isso aumenta a complexidade dos atendimentos prestados no âmbito do SUS e, consequentemente, os seus custos. Outra fonte de pressão sobre o sistema público de saúde é o aumento do número de usuários em decorrência da crise econômica. É cada vez maior o número de brasileiros que deixam de pagar por um plano de saúde particular e passam a depender exclusivamente do SUS.
Por todas essas razões, é absolutamente inconcebível que o SUS receba menos recursos em 2021 do que tem recebido neste ano. A menos que a destruição definitiva de uma das maiores conquistas da sociedade brasileira seja o desiderato dos que têm em suas mãos a capacidade de agir agora para evitar o pior logo adiante. Não é crível que seja este o espírito que anima homens e mulheres no Executivo e no Congresso.
Do ponto de vista material, o SUS foi bastante aparelhado durante a pandemia. De nada adiantará este legado se não houver recursos para manter os equipamentos funcionando e servindo aos pacientes. Não menos importante é o cuidado que se deve ter com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e todos os demais profissionais da área da saúde que atuam no SUS e não têm sido devidamente valorizados.
Ter um sistema público de saúde universal e gratuito foi um inequívoco desejo da sociedade, a ponto de ser inscrito na Constituição. Isso custa muito dinheiro. Mas custo ainda maior – imensurável – seria não o ter. Cabe ao Executivo e ao Legislativo encontrar as soluções para fazer valer um direito de todos os brasileiros.
Goleada mortal
Uma pandemia não é um futebol político. O pensamento positivo ou o desvio intencional não impedem as transmissões ou salvam vidas. O que vai salvar vidas é a ciência, soluções e solidariedadeTedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS
Um dia na vida do presidente
"O Sr. Presidente da República acorda invariavelmente às 7 da manhã e, vestido de seu rôbe de chambre, tendo à cabeça uma touca de seda preta, dirige-se para o banheiro, onde toma banho morno. Depois do banho, S. Exa. bebe um copo de leite e, pouco depois, serve-se de café, que deve ser forte, rejeitando-o quando assim não acontece. Em seguida, faz sua toalete e passa a ler os jornais, dirigindo-se depois para a sala particular de sua Exma. esposa, onde conversa algum tempo, sempre com aquele modo frio, seco e pouco expansivo. Às 11 horas, almoça e desce para a sala de despachos no palácio, onde examina os papéis e as questões que tem de decidir.
"Durante o dia conserva-se na sala de despachos, em trabalho com os ministros que o procuram, ou vem à sala de audiências conferenciar com alguma pessoa sobre assunto importante. Nas terças-feiras dá audiências públicas no Salão Jardim, de 1 às 2 da tarde. À 1h30, toma S. Exa. um copo de leite e, às 2, uma xícara de café, continuando na sala de despachos até às 6 da tarde, quando não há muito serviço.
"Durante o dia conserva-se na sala de despachos, em trabalho com os ministros que o procuram, ou vem à sala de audiências conferenciar com alguma pessoa sobre assunto importante. Nas terças-feiras dá audiências públicas no Salão Jardim, de 1 às 2 da tarde. À 1h30, toma S. Exa. um copo de leite e, às 2, uma xícara de café, continuando na sala de despachos até às 6 da tarde, quando não há muito serviço.
"Dirige-se a essa hora pela arcada interna do palácio para a sala de sua Exma. esposa e daí para a de jantar. É excessivamente sóbrio e não usa de vinhos. Depois do jantar, conversa com a família e recebe as pessoas de sua amizade, ficando às vezes até meia-noite. Nunca altera a voz e até com certa dificuldade se faz ouvir. À hora de dormir, toma um banho morno e, em seguida, um copo de leite. Etc. etc.".
O que se leu acima é parte de um texto de Ernesto Senna, o primeiro repórter brasileiro, publicado no Jornal do Comércio, sobre um dia na vida do presidente Prudente de Moraes, que governou de 1894 a 1898.
Grandes tempos. O presidente da então jovem República não tomava medidas genocidas, não agredia as instituições, não protegia filhos corruptos, não mentia para a nação. Não fazia nada. Melhor assim.
O que se leu acima é parte de um texto de Ernesto Senna, o primeiro repórter brasileiro, publicado no Jornal do Comércio, sobre um dia na vida do presidente Prudente de Moraes, que governou de 1894 a 1898.
Grandes tempos. O presidente da então jovem República não tomava medidas genocidas, não agredia as instituições, não protegia filhos corruptos, não mentia para a nação. Não fazia nada. Melhor assim.
A ideologia bolsonarista
Um aspecto da extrema direita no poder, do ponto de vista ideológico, é o desprezo pela ciência e, em decorrência, no caso brasileiro, pela saúde dos cidadãos. O que se apresenta como uma das grandes conquistas civilizatórias é relegado a mero instrumento de luta política, desaparecendo a preocupação com o bem coletivo.
É simplesmente assustador que, o País alcançando a astronômica cifra de mais de 155 mil mortos pela covid-19, o debate provocado pelo presidente e suas hostes digitais gire em torno de um combate contra a vacina. Não se discute a saúde, mas os meios de propagação da morte.
Os exemplos são inúmeros deste teatro da doença e de sua aceleração, o Brasil ostentando um dos maiores índices de mortandade por milhão de habitantes. Um campeonato mundial que deveria ser motivo de vergonha, não de júbilo. Tudo está invertido, como se a perversão dos valores devesse ser a regra. A cloroquina é talvez o mais aberrante, graças à propaganda utilizada, quando é um medicamento, para esses fins, comprovadamente inútil, ineficaz. Na escassez de recursos, no entanto, milhões foram gastos por simples ordem presidencial, com o apoio de Donald Trump, que fez uma “doação” ao Brasil. Signo de “amizade”, dizia-se, quando é, na verdade, exposição de falta de consideração. O que não serve lá foi enviado para cá. Desculpem a expressão, fomos tratados como uma república bananeira.
O recente episódio da vacina Sinovac-Butantan é mais um desta ópera-bufa, que está se tornando trágica. O presidente Bolsonaro, por ato arbitrário, decide sem nenhum fundamento não comprar a vacina “chinesa”, por esta supostamente contrariar não se sabe bem lá o quê, senão o seu interesse pessoal. Vacinas são imunizações contra doenças importantes para o bem da população, não devem, de forma alguma, ser objeto de disputa política. Politizar a vacina significa menosprezar os brasileiros. Não há vacina chinesa, não há vacina do Doria, não há vacina do Bolsonaro, mas um potente instrumento de combate à doença. Se nome deveria receber, seria o dos cientistas que a descobriram. O resto é pura demagogia.
Acontece que o bolsonarismo, enquanto ideologia, introduziu a (falsa) discussão sobre a vacina num contexto de teoria da conspiração, seja contra os “chineses”, seja contra o governador de São Paulo. Tornar os chineses objeto de opróbrio, como se fosse o inimigo, atenta contra o bom senso e os interesses nacionais. A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e deve ser tratada com todo o respeito e reconhecimento que essa posição lhe confere. Os chineses são os maiores importadores do agronegócio e investidores no País. Do ponto de vista dos nossos interesses, a posição presidencial pode estar causando um sério prejuízo. Além do mais, se esse desprezo pela China fosse coerente, o bolsonarismo deveria estar advogando pelo não uso de tênis, roupas, computadores e utensílios eletrônicos, cuja boa parte dos componentes é lá produzida. Deveriam abandonar a comunicação digital e as redes sociais. Ganhariam em credibilidade. E o País agradeceria.
Ainda quanto ao agronegócio, por boas e más razões a imagem do País no estrangeiro é péssima. Boas razões: a comunicação social é muito ruim e a política do ataque só nos tem prejudicado. Más razões: muitas ONGs e países estrangeiros querem prejudicar o Brasil, reduzindo a competitividade do setor e favorecendo grandes empresas e grupos estrangeiros. Acontece que a percepção é que conduz negócios e protagonismo político. Imaginem, agora, se a imagem de não combate à covid-19 no Brasil vier acoplada a uma imagem ambiental ruim? A confluência dessas duas imagens pode trazer graves prejuízos às exportações brasileiras e aos investimentos no País.
Quanto ao governador João Doria, está simplesmente fazendo o trabalho dele à frente de um Estado pujante, industrializado e inovador na área científica. Se isso lhe propiciar dividendos políticos, direito dele, por estar colaborando diretamente para a saúde dos paulistas e dos brasileiros. Ademais, a atitude do presidente Bolsonaro pode estar causando imenso prejuízo ao seu candidato à Prefeitura paulistana, Celso Russomanno, que pode ficar indiretamente com a pecha de ser contra a vacina, contra a saúde dos paulistanos. Defende ele os habitantes de sua cidade ou as diatribes do presidente? A vida ou a morte?
A ideologia bolsonarista não se caracteriza apenas por seus traços autoritários, mas também pela arbitrariedade. Não necessariamente um presidente autoritário ou um tirano faz um mau governo. Xenofonte, na Grécia, já ensinava que tiranos podem governar segundo noções de bem, até mesmo para sua permanência no poder e pelo reconhecimento dos súditos. O problema do autoritarismo é que resvala facilmente para o arbítrio, não podendo o governante ser substituído em eleições. Ora, os atos do presidente estão mostrando, nesta luta contra a vacina, um traço fundamentalmente arbitrário, para além de autoritário.
É simplesmente assustador que, o País alcançando a astronômica cifra de mais de 155 mil mortos pela covid-19, o debate provocado pelo presidente e suas hostes digitais gire em torno de um combate contra a vacina. Não se discute a saúde, mas os meios de propagação da morte.
Os exemplos são inúmeros deste teatro da doença e de sua aceleração, o Brasil ostentando um dos maiores índices de mortandade por milhão de habitantes. Um campeonato mundial que deveria ser motivo de vergonha, não de júbilo. Tudo está invertido, como se a perversão dos valores devesse ser a regra. A cloroquina é talvez o mais aberrante, graças à propaganda utilizada, quando é um medicamento, para esses fins, comprovadamente inútil, ineficaz. Na escassez de recursos, no entanto, milhões foram gastos por simples ordem presidencial, com o apoio de Donald Trump, que fez uma “doação” ao Brasil. Signo de “amizade”, dizia-se, quando é, na verdade, exposição de falta de consideração. O que não serve lá foi enviado para cá. Desculpem a expressão, fomos tratados como uma república bananeira.
O recente episódio da vacina Sinovac-Butantan é mais um desta ópera-bufa, que está se tornando trágica. O presidente Bolsonaro, por ato arbitrário, decide sem nenhum fundamento não comprar a vacina “chinesa”, por esta supostamente contrariar não se sabe bem lá o quê, senão o seu interesse pessoal. Vacinas são imunizações contra doenças importantes para o bem da população, não devem, de forma alguma, ser objeto de disputa política. Politizar a vacina significa menosprezar os brasileiros. Não há vacina chinesa, não há vacina do Doria, não há vacina do Bolsonaro, mas um potente instrumento de combate à doença. Se nome deveria receber, seria o dos cientistas que a descobriram. O resto é pura demagogia.
Acontece que o bolsonarismo, enquanto ideologia, introduziu a (falsa) discussão sobre a vacina num contexto de teoria da conspiração, seja contra os “chineses”, seja contra o governador de São Paulo. Tornar os chineses objeto de opróbrio, como se fosse o inimigo, atenta contra o bom senso e os interesses nacionais. A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e deve ser tratada com todo o respeito e reconhecimento que essa posição lhe confere. Os chineses são os maiores importadores do agronegócio e investidores no País. Do ponto de vista dos nossos interesses, a posição presidencial pode estar causando um sério prejuízo. Além do mais, se esse desprezo pela China fosse coerente, o bolsonarismo deveria estar advogando pelo não uso de tênis, roupas, computadores e utensílios eletrônicos, cuja boa parte dos componentes é lá produzida. Deveriam abandonar a comunicação digital e as redes sociais. Ganhariam em credibilidade. E o País agradeceria.
Ainda quanto ao agronegócio, por boas e más razões a imagem do País no estrangeiro é péssima. Boas razões: a comunicação social é muito ruim e a política do ataque só nos tem prejudicado. Más razões: muitas ONGs e países estrangeiros querem prejudicar o Brasil, reduzindo a competitividade do setor e favorecendo grandes empresas e grupos estrangeiros. Acontece que a percepção é que conduz negócios e protagonismo político. Imaginem, agora, se a imagem de não combate à covid-19 no Brasil vier acoplada a uma imagem ambiental ruim? A confluência dessas duas imagens pode trazer graves prejuízos às exportações brasileiras e aos investimentos no País.
Quanto ao governador João Doria, está simplesmente fazendo o trabalho dele à frente de um Estado pujante, industrializado e inovador na área científica. Se isso lhe propiciar dividendos políticos, direito dele, por estar colaborando diretamente para a saúde dos paulistas e dos brasileiros. Ademais, a atitude do presidente Bolsonaro pode estar causando imenso prejuízo ao seu candidato à Prefeitura paulistana, Celso Russomanno, que pode ficar indiretamente com a pecha de ser contra a vacina, contra a saúde dos paulistanos. Defende ele os habitantes de sua cidade ou as diatribes do presidente? A vida ou a morte?
A ideologia bolsonarista não se caracteriza apenas por seus traços autoritários, mas também pela arbitrariedade. Não necessariamente um presidente autoritário ou um tirano faz um mau governo. Xenofonte, na Grécia, já ensinava que tiranos podem governar segundo noções de bem, até mesmo para sua permanência no poder e pelo reconhecimento dos súditos. O problema do autoritarismo é que resvala facilmente para o arbítrio, não podendo o governante ser substituído em eleições. Ora, os atos do presidente estão mostrando, nesta luta contra a vacina, um traço fundamentalmente arbitrário, para além de autoritário.
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