sábado, 16 de junho de 2018

O fogão de lenha eleitoral

Mais estranho que a decisão do STF, às vésperas das eleições, de vetar o voto impresso – lei aprovada em 2015, por mais de 70% do Congresso -, sob alegação de inconstitucionalidade, é o silêncio e aparente indiferença dos parlamentares em relação a essa medida.

Não foi uma decisão qualquer, mas uma interferência de um poder sobre outro, sem uma justificativa convincente. Trocando em miúdos, o STF disse ao Congresso que ele não soube legislar.

E o que justifica esse silêncio? Simples: entre a aprovação da lei, que derrubou inclusive o veto que a presidente Dilma quis lhe impor – derrubado sem piedade -, deu-se a expansão da Lava Jato.

Em 2015, ela ainda não chegara aos parlamentares; em 2018, muitos deles já estão em cana e outros preparam-se para desfrutá-la. O STF os julgará. Não se briga com o julgador.

À exceção de alguns gatos pingados, o Parlamento optou pelo silêncio, mesmo sabendo que o ato do STF não tem base legal. A Constituição não trata de urnas ou cédulas eleitorais.

Estabelece apenas que o voto será secreto. E nenhum ministro do STF demonstrou – até porque seria impossível – que o voto impresso, subsidiário ao da urna (e não seu substituto), quebra o sigilo, a não ser que se queira impô-lo ao próprio eleitor.

Os que o tentaram não convenceram; apenas reforçaram a suspeita de que há algo mais por trás dessa decisão.

Há um princípio em Direito segundo o qual “o que abunda não prejudica”. O excesso de provas ou de garantias é melhor que a escassez. O voto impresso pode até ser considerado um excesso de zelo, mas não uma violação de sigilo – e muito menos uma inconstitucionalidade. O ministro Gilmar Mendes considerou-o, à falta de melhor argumento, “um retrocesso, o retorno ao fogão de lenha”. Se assim fosse, não seria adotado em tantos países.

Na Alemanha, por exemplo, a simples e ainda que vaga suspeita do eleitorado em relação às urnas eletrônicas fez com que a Suprema Corte de lá optasse pelo voto no papel. O fogão a lenha.

O entendimento foi de que as eleições são de tal importância que não pode haver em relação a elas a mais remota suspeita. Como há, pelo menos na percepção do eleitor alemão, foram rechaçadas.

Aqui, deu-se o contrário. Quem se dispuser a buscar na internet vídeos de urnas fraudadas nas eleições de 2014, com pen-drives nas lixeiras de seções eleitorais e depoimentos de eleitores de que já tinham votado em seu nome, não perderá a viagem. Há dezenas e dezenas de registros. Isso bastaria para impugná-las.

Mas não bastou. Nem mesmo o depoimento de especialistas e os testes internacionais – diversos – que demonstram sua vulnerabilidade sensibilizaram o STF e o TSE.

Gilmar Mendes, acusado por Luiz Fux, que o sucedeu na presidência do TSE, de ter negligenciado a questão, não tomando qualquer providência em face da lei, irmanou-se a ele, Fux, na decisão infeliz, que configura mais um desserviço à democracia.

Qualquer que seja o resultado das eleições, haverá sempre a suspeita de que pode ter havido fraude, ainda que não haja. Com isso, o novo presidente, seja ele quem for, tomará posse sem que haja certeza de que era mesmo o preferido da maioria dos eleitores.

Ruy Fabiano

As renúncias

O problema do Brasil não é exatamente a carga tributária alta. Ela é alta, mas tem desconto para alguns e acaba sendo menor do que parece. A solução para o Brasil não é apenas cortar os gastos, é reduzir as despesas que são feitas em favor do beneficiário errado. É nesse ponto que o Tribunal de Contas da União (TCU) tocou. As renúncias fiscais são 30% da receita líquida, sem elas o país teria superávit.

O TCU olhou para o ponto certo do nó fiscal brasileiro e vários ministros falaram em tom forte sobre o assunto. Segundo Vital do Rego, as renúncias são de tal magnitude que afetaram o equilíbrio das contas. Para José Múcio, são “o novo vetor da desigualdade”. E na opinião de Bruno Dantas, o país tem “um encontro marcado com esses benefícios fiscais concedidos sem critério, sem análise de custo-benefício”.


Em função disso, o relator colocou ressalvas nas contas do governo em 2017. Pode haver muitos motivos para ressalvas, mas as renúncias fiscais em sua maioria foram herdadas. Algumas têm caráter plurianual e não podem ser simplesmente extintas. O ministro Vital do Rego disse que se o governo tivesse limitado as renúncias à média de 2003 a 2008 (R$ 223 bilhões) teria tido superávit. Mas no gráfico que acompanha o voto está claro que o total das renúncias fiscais era de 3,4% do PIB em 2008 e foram para 6,7% em 2015. Quem elevou o volume dos benefícios aos empresários após 2008 foram os governos Lula e Dilma. O governo Temer reduziu os gastos tributários para 5,4% em 2017, ano que está sendo examinado, principalmente os concedidos através do BNDES. A criação da TLP reduzirá ainda mais, no futuro, o gasto com subsídios financeiros do banco.

Temer errou quando fez um Refis e não conseguiu conter sua base que aumentou as vantagens para os devedores da Receita. Errou nas concessões à bancada ruralista no perdão às dívidas do Funrural. Concessões feitas a partir da crise que atingiu seu governo com as denúncias do Ministério Público. Mas os dois governos anteriores é que realmente aumentaram o total das transferências para os empresários entre 2008 e 2015.

No Brasil, o mesmo empresário que reclama da carga tributária alta é o que pede um programa de desconto para o seu setor. Assim, o governo acaba cobrando muito de todos os contribuintes e transferindo uma parte para determinados setores, lobbies e programas. E desta forma o Estado cria desigualdades.

Acabar com isso é uma dificuldade. Na atual crise do diesel, o ministro Eduardo Guardia elegeu um desses benefícios para serem cortados: o Reintegra. O programa iniciado em 2011 concede ao exportador o benefício no valor de 2% das suas exportações. A decisão foi reduzi-lo para 0,1%. O que já aconteceu? A Justiça mandou adiar a mudança do Reintegra. Só uma única empresa de Santa Catarina acha que perderá R$ 130 mil. O setor de rochas no Espírito Santo perderá R$ 14 milhões. A soma geral do que exportadores ganhariam com a manutenção desse benefício chega a ser bilionária. Por isso já estão na Justiça à caça das liminares.

A Zona Franca de Manaus custa R$ 25 bilhões em renúncias, e se o governo resolver reduzir um só dos setores beneficiados, como aconteceu agora com bebidas, o lobby se organiza.

Os programas de benefício fiscal são uma teia de vantagens que foram sendo distribuídos como sesmarias. Pelo relatório, 85% das renúncias foram estabelecidas sem prazo de vigência e 44% não têm qualquer órgão que avalie os resultados.

Subsídio pode ser concedido. É uma decisão de política pública. Mas tem que ter objetivos e critérios. Deve ser dedicado a atividades com vantagens intangíveis, como a cultura, ou beneficiar os grupos mais vulneráveis da sociedade ou se dirigir a setores que precisam de um estímulo temporário e cujo desenvolvimento represente um ganho social. Mas qualquer renúncia fiscal é gasto, portanto precisa ser fiscalizado e avaliado constantemente. No Brasil, ocorre o oposto: eles se dirigem em geral aos mais ricos, às regiões mais desenvolvidas, não são avaliados e são concedidos de acordo com a força de cada lobby. Assim acabam aumentando as desigualdades do país.

Pensamento do Dia


Somos patriotas só na Copa?

A bandeira está em todas as partes, como ânimo e esperança. O Brasil está firme para enfrentar o que seja e, se depender do apoio e da euforia popular, os sonhos serão realidade. Os ensaios preliminares são positivos, ainda que nenhum ensaio seja prova definitiva para definir o futuro. As vergonhas de tempos atrás, porém, servem de pauta para que os grandes, que tudo decidem, não repitam o horror que causou o desalento.

Ninguém pense que me refiro ao Brasil nação. Tudo o que escrevi acima como introdução pode parecer uma referência a nossas esperanças quanto aos caminhos da economia e da política. Na verdade, porém, é somente uma síntese do que dizem os jornais, o rádio e a televisão sobre a seleção de Tite e seu desempenho na Copa da Rússia.

É o futebol que nos domina. As ruas estão embandeiradas e nos vestimos de amarelo, como os “raios fúlgidos” do hino. Estamos a poucos meses da eleição presidencial, mas o atual arco político é tão pobre e medíocre que nem percebemos que o nosso futuro depende disso e apostamos só na Copa do Mundo.


A eleição parece traste velho cheio de cupim, que jogamos no porão escuro, preparando a mudança para a casa nova. Mas a casa nova não existe. Os presidenciáveis repetem lugares-comuns, cada qual supera o outro ao apontar coisas iguais em idênticas bravatas, sem ir às causas profundas das incertezas.

O palavrório esqueceu-se do que é notório. A politicalha substituiu a política e votar virou apenas obrigação imposta pela lei, uma formalidade que a maioria cumpre sem o ardor cívico de antigamente, quando a urna definia posições e caminhos para o futuro.

Ou, se assim não fosse (pois os “enganadores” já existiam e a palavra enganosa já fora plantada), as demagógicas promessas fáceis apareciam como dívida. E, na eleição seguinte, cobrava-se a dívida desprezando o demagogo devedor.

Por isso, agora é tempo de bandeiras, fitinhas verde-amarelas dependuradas em bares, restaurantes, residências ou escolas, universidades e, até, hospitais. Estamos em busca de esperança. Ou de crer em algo. A orgia patriótica que reaparece a cada Copa do Mundo não se desfez sequer com o fiasco do último campeonato, quando os alemães nos meteram 7 a 1 goela abaixo (ou gol abaixo), como aqueles antigos purgantes. Amainou-se, talvez, mas o “grande astro”, hoje, é o futebol, não a eleição.

Recordo 1950, ano de eleição presidencial e da Copa do Mundo, a primeira após a 2.ª Guerra e também a primeira disputada aqui. Nada, porém, amorteceu a expectativa político-eleitoral. Ao contrário, Copa e eleição disputavam uma corrida, cada qual buscando gerar mais atração. Ainda não tínhamos sido despolitizados e desesperançados pelos escândalos (como hoje) nem os partidos (como agora) tinham virado gazua para assaltar o cofre-forte público.

Os candidatos presidenciais representavam posições, traziam um passado como credencial. Podiam ser elogiados ou criticados, ou ter adeptos e desafetos, mas Getúlio Vargas, Eduardo Gomes, Christiano Machado e João Mangabeira eram o que diziam ser. Por isto foram o núcleo das expectativas mesmo em plena Copa. Quando o Uruguai nos derrotou na partida final, nenhum deles sequer usou a tragédia como catapulta eleitoral.

Hoje, os candidatos e as candidaturas marcam a diferença de outros tempos de democracia. Por que dar atenção a palavras vãs, sem apoio no passado e sem presença no presente, quando temos a realidade dos dribles de Neymar?

Em 1950, a grande e experiente estrutura não era a do futebol, mas a dos presidenciáveis. Agora, ao contrário, neles tudo é difuso. Existe até mesmo um aprendiz de Hitler, cheio de ódio e agressividade, fantasiado de messias para sensibilizar os eleitores.

Lembram-se do “Lulinha paz e amor”, a maquiagem que o contundente líder sindical do ABC paulista usou para se mostrar amplo e compreensivo e ser eleito após três derrotas consecutivas?

Ao votar em alguém que não era aquilo que dizia ou aparentava ser, o eleitor abriu caminho a que o próprio Lula acreditasse que era outro, não ele próprio, mas alguém que ele mesmo nunca havia pensado ser. E se associou ao PP de Paulo Maluf e ao PMDB para abrir as portas da Petrobrás ao roubo despudorado, em nome da “governabilidade”. Concretizava-se o ensaio de anos antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o suborno construiu a emenda constitucional da reeleição.

Como corolário, Lula, o presidente operário, acabou se jactando de que “nunca os bancos lucraram tanto” quanto em seu governo. E a contradição absurda instalou-se na visão de governar.

Num tempo em que a sociedade de consumo destrói toda ética, num canibalismo individualista em que o coletivo não existe, o engano passou a ser o único valor a cultivar. O “próximo” de que falam os Evangelhos já não existe. Na área pública ou privada, os que decidem agem de forma unilateral, buscando apenas o que lhes convenha.

Na ansiosa busca de votos, o único compromisso é receber votos. Na verborragia eleitoral, todos falam em “segurança pública”, como se guardassem no bolso a poção mágica do problema. Não apontam as causas profundas da violência (a ignorância como a principal) nem buscam saber por que morrem aqui, por homicídio, mais do que na carnificina da guerra civil da Síria.

É desnecessário mencionar o resto. As bandeiras nas ruas pela Copa falam também do que ocultamos. Seremos mesmo patriotas, ou apenas “pátria-otários”, escrito assim, com hífen, para mostrar que nem a palavra existe e que somos patriotas apenas na Copa?

'Os deuses devem estar loucos'

Jamie Uys lançou, em 1980, essa comédia sul-africana, que mostrava um grupo de caçadores-coletores, bandidos trapalhões de país subdesenvolvido e neuróticos de uma cidade industrializada. A ênfase era o impacto causado por uma garrafa de Coca-Cola entre bosquímanos do deserto de Kalahari. Ela foi descartada pelo piloto de um monomotor, fascinando todos, mas era um objeto indivisível; gerou, então, pela primeira vez, disputa e frustração. Eles concluíram que os deuses lhes mandaram uma coisa ruim, como se ela contivesse uma força maligna. Não pertenceria, portanto, à terra, que fora sempre muito generosa. Afinal, tinham tudo de que precisavam e sabiam resolver todos os seus problemas, pois estavam plenamente integrados a ambiente hostil e eram felizes. Assim, depois de várias tentativas para se livrarem do que havia afetado a paz do grupo, Xi, que viu primeiro a notável peça, assumiu a missão de descartá-lo no fim do mundo; para tanto, iria caminhar muito, mas não sabia que encontraria gente muito esquisita e mal-educada.

Não podemos nos restringir aos três estereótipos delineados na comédia, porque cada categoria abrange muitos tipos de organização social, moldados por diferentes processos históricos e adaptações a vários ecossistemas. Além disso, o filme é anterior à terceira revolução tecnológica, desencadeada por computadores e comunicação em tempo real. Devemos, entretanto, refletir sobre as necessidades essenciais da espécie humana e o bem-estar de uma comunidade, em situações díspares.


Povos do Oriente Médio valorizavam, 10 mil anos atrás, a apropriação privada e acumulação de bens, gerando muitas demandas que estão além da subsistência. Isso não nos garantiu harmonia nem felicidade; pelo contrário, foi sempre causa de guerras entre nações, intrigas familiares, disputas pessoais e opressão de alguns sobre muitos, com dramática divisão entre riqueza e miséria. A multiplicidade de objetos transformados em essenciais gerou desenfreada exploração do ambiente, criando um futuro nebuloso para a humanidade, pois haverá esgotamento dos recursos naturais, sendo o mais dramático a água potável.

Não podemos, de qualquer forma, imaginar que uma grande população possa viver de maneira tão simples como os !Kung do Kalahari. Para que milhões de indivíduos compartilhem um território em harmonia, são indispensáveis complexa infraestrutura, divisão social do trabalho e código de conduta imposto por uma força superior, como o Estado. Assim, as sociedades complexas da atualidade não podem refazer seu caminho, mas devem respeitar as tribos nômades que ainda existem nos cinco continentes, bem como adotar hábitos de consumo mais saudáveis, para preservar o planeta por mais tempo.

Xi viveu dramáticas experiências, mas conseguiu descartar, no “fim do mundo”, a garrafa de Coca-Cola e voltou feliz para sua aldeia, porque salvou seu povo da coisa maligna. Precisamos descobrir quais existem entre nós.

Em Roma como os romanos, já se dizia no tempo dos Césares

A Rússia é um país continental. Imenso. Espalha-se horizontalmente cobrindo nove fusos horários. É banhada por três oceanos: Ártico, Atlântico e Pacífico. É belíssimo, tem paisagens espetaculares. Sua História é muito rica, com figuras notáveis. Algumas se notabilizaram pelo terror que inspiraram, outras pelas maravilhas que realizaram. Culturalmente, é de uma riqueza extraordinária, literatura, música, arquitetura, de deixar qualquer um embasbacado. Sua capital, Moscou, tem monumentos belíssimos e museus que rivalizam com todos os museus do mundo.

É uma festa para os olhos e para o espírito. Uma megacidade, colorida, rica, espetacular! Visitar Moscou não é tarefa fácil: além do clima complicado, ou muito calor, ou muito frio, é gigantesca, com tantas e tantas coisas para ver, haja tempo e haja disposição para percorrê-la.

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso, é um velho e sábio ditado. Não é impossível imaginar que um país que cobre nove fusos horários tenha inúmeros e variados usos, inúmeros e variados fusos.

Os turistas brasileiros que vão assistir à Copa do Mundo receberam um livreto com indicações sobre como se portar em Moscou de modo a curtir bem essa oportunidade de ouro, conhecer Moscou, sem criar problemas com os moscovitas e sempre respeitando seus hábitos.

Desse modo devem agir os turistas em qualquer lugar do mundo, não é mesmo? Respeitar quem nos recebe é uma das leis universais do visitante.

Tenho ouvido muitas críticas às posturas municipais de Moscou. Fico pasma. Mal chegamos e já queremos impor o nosso modo de vida aos moscovitas? Francamente, isso é ter um ego maior que o território russo!

Em Moscou, como os Moscovitas. Assim, respeitando as pessoas que nos acolhem, teremos recordações maravilhosas de uma viagem que vai unir as alegrias que o futebol pode proporcionar, com o conhecimento in loco de monumentos que honram a história e a religião russas.

A não ser que o turista tenha tempo (e dinheiro) para ficar muito mais de um mês em Moscou, o melhor que ele faz é não perder tempo tentando provar aos russos que eles estão errados e nós certos! Conhecer essa metrópole é um prêmio que o destino nos dá. Que tal merecê-lo?

Imagem do Dia

Perast (Montenegro), Dusan Djukaric

O ódio, o medo e a mentira

O ódio e o medo são as mais sombrias emoções humanas. Quando a mentira as alimenta e elas passam a ditar opiniões e comportamentos a democracia se torna vulnerável. É o que está ocorrendo no Brasil a quatro meses das eleições presidenciais.

A polarização da sociedade entre posições extremas criou um ambiente malsão em que se torna difícil alguém formar sua opinião ou mudá-la com base em fatos e argumentos. Em uma sociedade polarizada, uns e outros só tomam como verdade o que confirma sua certeza e desqualificam como mentira tudo que pode vir a questioná-la.

De onde vem e até onde irá a agressividade selvagem e anônima, e, porque anônima, impune, que campeia nas redes sociais? Seguir o dinheiro costuma ser uma boa pista.

O marketing foi indissociável da expansão da sociedade de consumo. Pepsi ou Coca-Cola, os bruxos da publicidade não visavam, a seu tempo, a outra coisa senão canalizar as escolhas dos consumidores na direção desejada. Ninguém esqueceu que um sabão em pó lavava mais branco do que os outros.

Aplicado à política, o marketing transformou-se hoje num arma poderosa de manipulação de eleitores, que passaram a consumir políticos como sabão em pó. O custo das campanhas eleitorais subiu a cifras astronômicas, e o dinheiro sujo para pagá-las passou a circular em caixas um ou dois. Em caixas-pretas e carros-fortes. Este foi o primeiro infarto da liberdade de escolha, vítima da manipulação de consciências. Outros viriam.

As redes sociais, quando surgiram, foram louvadas como territórios liberados. Antes receptores passivos de informações, agora cada um podia se comunicar com muitos, multiplicavam-se as plataformas de discussão e acesso a notícias.

Esta visão idílica das redes teve vida curta. Big data entrou no vocabulário econômico e político. Mark Zuckerberg, inventor do Facebook, tinha o melhor produto do mundo a oferecer: informações privadas que desenham o perfil mais íntimo de cada um de nós, sob medida para induzir a compra de um livro numa livraria virtual ou um voto para a presidência da República.

O próximo passo foi a utilização sub-reptícia de bots e trolls, robôs e agentes provocadores não humanos, que, disfarçados de cidadãos de carne e osso, simulam conversas, semeiam a mentira e a discórdia, instaurando um clima de guerra.

O sinal vermelho sobre a gravidade desta deriva se acendeu com a denúncia de casos de distribuição intencional de informações falsas, diluindo as fronteiras entre a verdade e a mentira. O exemplo mais notório, ainda sob investigação, é o da alegada cumplicidade entre o governo da Rússia e a campanha de Donald Trump para influenciar o resultado das eleições americanas.

Estudo patrocinado por Pierre Omidyar, fundador do eBay, sobre as mídias sociais e os riscos para a democracia revelou que grandes redes como Twitter e YouTube estão expostas à ação clandestina de líderes populistas, interessados em apoiar candidatos extremistas, difundir a intolerância e incitar à violência.

As fake news são urdidas num submundo obscuro e opaco, mas o seu impacto devastador se dá no mundo real. Os princípios da democracia e as regras do direito não têm vigência nestas dobras do mundo virtual. O anonimato nas redes torna ainda mais espinhosa a tarefa de identificar e punir os responsáveis por esses crimes.

Demagogos e populistas estão se servindo desses instrumentos para alavancar sua agenda regressiva. Essa deriva que viola a integridade do processo eleitoral e representa uma ameaça à democracia está em curso na campanha para as eleições de outubro. O TSE ordenou que o Facebook removesse, em 48 horas, cinco postagens de fake news contra a pré-candidata Marina Silva. Quantas terão passado despercebidas? Quantas mais virão?

O primeiro momento no enfrentamento de um problema é reconhecê-lo como tal. A busca de mecanismos que assegurem a lisura das campanhas eleitorais se dará no fio da navalha entre a defesa da informação responsável e a sombra ameaçadora da censura.

Da União Europeia veio um princípio norteador: “Notícia falsa é ruim, mas um Ministério da Verdade é pior”. Não estamos no temido 1984, distopia imaginada por George Orwell. Uma única fonte de verdade será sempre uma grande mentira. Não se protege nem se fortalece a democracia destruindo seus fundamentos.

A Internet é o grande enigma contemporâneo. Há que decifrá-lo antes que essa Esfinge nos devore. Afinal, se com determinação e tecnologia estancou-se a lavagem de dinheiro por que não seria possível coibir a lavagem cerebral?

Rosiska Darcy de Oliveira

O Grande Irmão está vivíssimo

O aparelho repressor do Estado é uma máquina de moer carne que inexoravelmente nos alcançará a todos; e neste país a popularidade de qualquer causa não depende dos desejos e sentimentos das pessoas, mas do que a televisão diz
Mempo Giardinel.i, "Impossível equilíbrio"

Dias Toffoli sugere um Supremo diet: 'Moderador'

Dentro de três meses, a presidência do Supremo Tribunal Federal vai trocar de mãos. Sai Cármen Lúcia, entra Dias Toffoli. Num debate realizado em Curitiba, Toffoli declarou que o Supremo deve agir como Poder moderador, não como protagonista. Manifestação esquisita. Os dicionários ensinam que moderador é o que modera, que atenua, que reduz, que restringe. Os Poderes Legislativo e Executivo apodrecem. E Toffoli sugere uma versão diet do Judiciário, batizando a novidade de Supremo moderador.


Toffoli fez uma comparação esdrúxula. “Se formos protagonistas”, disse ele, “vamos cometer o mesmo erro que as Forças Armadas cometeram em 1964.” Curioso. Há malucos pedindo a volta dos militares. Mas ainda não se viu nenhum louco clamando por um golpe do Supremo. Toffoli acrescentou: “Se quisermos ser protagonistas, vamos ser substituídos”. Ele perguntou: “E por quem?” Toffoli não quis dar entrevista. Uma pena. Não foi possível perguntar ao ministro que alucinações frequentam os seus pesadelos.

Hoje, a principal marca do Supremo é a insegurança jurídica. Num instante, a Corte aprova a prisão na segunda instância. Noutro, ameaça rever a regra. Ora afasta Eduardo Cunha do mandato, ora delega ao Senado a palavra final sobre o afastamento de Aécio Neves. Admite a condução coercitiva por 77 anos e, de repente, proíbe o procedimento. A Primeira Turma prende. A Segunda Turma solta. É nesse ambiente que Toffoli defende o seu Supremo diet, moderador. Nada poderia ser mais equivocado. No Brasil da corrupção, exige-se do Judiciário a aplicação implacável da lei. O maior excesso que o Supremo pode cometer é o da moderação.

É mais interessante o Lula sacralizado ou o Lula profano?

Desde que Lula foi condenado e preso existe, entre seus seguidores mais fervorosos, uma campanha para sacralizá-lo. É realmente melhor e mais interessante o Lula santo que o Lula profano? Que eu saiba, o que sempre agradou no político popular foi sua humanidade, a capacidade de entender como ninguém a linguagem e os lamentos dos sem passaporte e sem futuro. Eles entendem suas metáforas sobre futebol, suas hipérboles. Eles gostam de vê-lo com seus defeitos, comendo e bebendo o que eles comem e bebem. E amar o que eles amam. Divertem-se com seus exageros e até mesmo com suas mentiras. Perdoam-no por andar entre os ricos e grandes do mundo, porque pensam que continua sendo um deles capaz de defendê-los, quando chegar a hora, contra aqueles mesmos poderosos.

Agora começou a corrida pela sacralização. É o Lula que parou de beber e está feliz e não enfurecido, porque a ira é pecado. O Lula que assiste pela televisão as missas do Santuário de Aparecida. O que recebe um terço abençoado pelo Papa Francisco, que não era assim, enquanto um grupo de evangélicos até tirou o pó das cartas que o apóstolo Paulo escreveu na prisão, mais de dois mil anos atrás, dizendo que mesmo prisioneiro “lutava contra as bestas”(1Cor.13,32).

Lula tem agora um pai espiritual a cada semana que acaba sendo um porta-voz de sua conversão na prisão, onde estaria sereno, lendo e meditando. Dá medo de que, se continuar esse processo de sacralização, logo saberemos que o ex-sindicalista capaz de competir no bar com piadas e linguagem do mais veterano dos caminhoneiros acabe recebendo alguma aparição da Virgem ou dos santos. Façam, por favor, uma pesquisa entre os eleitores fiéis de Lula e perguntem se eles o preferem santo, manso e rezando, ou gritando que se sente enjaulado e obrigado a assistir as novelas da Globo. Se o preferem pecador como todos, com suas paixões e misérias, seu gosto pelas coisas boas da vida, ou transformado em monge a caminho da santidade.

A característica de Lula que sempre impressionou fiéis e infiéis é o seu incrível talento político, sua capacidade de prever as jogadas, como acontecia com Maradona no futebol. Ser um e vários ao mesmo tempo, conhecer pela biografia e pelo instinto, as pulsações mais profundas da miséria. O Lula profano, sem dúvida, é muito mais atraente e convincente do que o dos altares em que querem colocá-lo. E demos graças que a Igreja do Vaticano ainda não canonize ninguém em vida, caso contrário, já haveria gente colhendo assinaturas para pedir sua beatificação. Para começar, já estão pedindo para ele o Prêmio Nobel da Paz.

Não é difícil imaginar o Lula que um dia tornou pública a sua capacidade de metamorfose acompanhar o jogo de seus assessores que o vestem com os hábitos da santidade, enquanto deve se divertir pensando que sim, que não se incomoda com os terços, a leitura da Bíblia e as missas pela televisão, mas seu sonho é voltar a desfrutar da liberdade perdida e das coisas boas e profanas que a prisão tomou dele, na sua opinião, de forma injusta. Não acham que tantos preferem o Lula de sempre, furioso como um leão enjaulado, maldizendo os juízes, proclamando sua inocência, sonhando em sair correndo para a rua e tomar um bom trago durante um churrasco, em vez de vê-lo de joelhos, pacificado, rezando salmos ou sonhando que o Papa Francisco lhe apareça sorrindo? Se arrancarem de Lula sua poderosa humanidade, com suas virtudes e pecados, vão transformá-lo em uma triste caricatura. Para quê?