sexta-feira, 17 de julho de 2020

A questão militar contemporânea

Os militares voltam a ter visibilidade e protagonismo na vida política nacional, depois de trinta e cinco anos dedicados exclusivamente às suas funções profissionais e constitucionais. Hoje já são quase três mil ocupando cargos no governo Jair Bolsonaro, sem contar os da reserva ou o grupo palaciano de generais em postos estratégicos. A simbiose entre militares e um projeto de poder gerou uma nova questão militar, com as Forças Armadas sendo arrastadas para o centro da crise política, como evidencia o atrito entre o ministro do STF Gilmar Mendes e a cadeia de comando das três armas.

A motivo imediato do contencioso é a hipertrofia da presença dos militares em postos estratégicos do ministério da Saúde, a começar pelo próprio ministro interino. Mesmo que não venha a ter maiores desdobramentos e ao final tenhamos o general Eduardo Pazuello deixando a pasta, o episódio é por si um perigoso precedente de um conflito entre poderes com o envolvimento direto das Forças Armadas.

Fazia muito tempo que os comandantes das três armas não assinavam uma nota conjunta em um tema nitidamente político. Isso era uma prática constante durante o período da ditadura, quando o país ficava em suspense toda vez que os chefes militares se pronunciavam oficialmente sobre a vida política nacional. O espectro do episódio Márcio Moreira Alves por algum momento ressurgiu no ar. Menos mal que tenha se dissipado, mas a questão militar está posta de novo na agenda nacional.


Este imbróglio está presente na vida política do país desde o fim da guerra do Paraguai, quando o então tenente coronel Sena Madureira e o coronel Cunha Matos assumiram posições contrárias ao regime monárquico e por isso foram presos. O positivismo, com sua concepção de que o progresso só é possível de ser alcançado por meio da ordem e do conhecimento, é um traço marcante de todas as gerações de oficiais. Ironia da história que à frente do ministério da Saúde um general não se paute pela observância do conhecimento científico.

Inspirados nas ideias de Augusto Comte, desde a proclamação da República entendiam a modernização do país por meio de um governo com características autoritárias. A ideia da ditadura reformista e modernizadora os levaria a exercer o poder diretamente de 1964 a 1985. A aliança com Bolsonaro, sacramentada com a escolha do general Hamilton Mourão para vice-presidente, é um retorno ao salvacionismo positivista, no qual os militares se atribuem a missão de regenerar o país após a hecatombe das lideranças políticas e de quase todos os partidos.

Para os militares de todas as épocas, os interesses das Forças Armadas se confundem com os do país. Os primeiros a defender essa ideia foram os “jovens turcos” – primeiros militares treinados profissionalmente para o comando. Suas ideias foram expostas na primeira revista teórica voltada para os militares, A Defesa Nacional.

É ela quem teoriza um conceito que pautou a ação dos militares até a democratização de 1985 e que volta com força nos dias atuais. Segundo essa visão, a instituição não deveria se limitar apenas à defesa nacional e deveria atuar como uma espécie de partido fardado, dada a inexistência de instituições sólidas ou de uma elite política comprometida com os interesses do país. Nos anos 20/30, Oliveira Viana foi o grande teórico do papel das Forças Armadas na modernização do Estado.

Qualquer semelhança com os militares de hoje mão é mera coincidência. Como seus antepassados, entendem o federalismo com um poder central forte e, a exemplo do tenentismo dos anos 20/30 tem profundas desconfianças das elites políticas. Episódios como o mensalão e o petrolão reforçaram esse sentimento. Como a vida é cheia de ironias, foi um militar da ativa, o general de quatro estrelas Luiz Eduardo Ramos, ministro secretário de Governo, que negociou com o centrão o loteamento da máquina governamental.

A nova geração não viveu 1964, mas pagou um preço por ele. Por isso mesmo, há resistências no alto comando das Forças Armadas para avalizar a aventura de uma ruptura democrática, hipótese que ficou mais afastada com a redefinição da estratégia de Bolsonaro, a partir da prisão de Fabrício Queiroz. O presidente, que vinha apostando num confronto com os outros dois poderes, mudou de postura, com vistas à reconstrução de pontes capazes de lhe retirar do isolamento. Deixou de lado a estratégia de “guerra de movimentos” para adotar a de “guerra de posições”, passando a fazer política. Até quando, não se sabe.

Um subproduto dessa retificação da estratégia foi o arrefecimento do contencioso entre o grupo de militares palacianos e a cadeia de comando das três forças, altamente preocupada com a identificação direta entre governo, uma instituição transitória, e as Forças Armadas, uma instituição permanente de Estado. O anúncio da passagem do general Luiz Eduardo Ramos para a reserva foi um gesto para aplacar o incômodo que seu status de ministro e militar da ativa provocava na tropa.

Como militar da ativa, o general Ramos era o nome dos sonhos de Bolsonaro para substituir o atual comando do Exército, general Edson Pujol, um oficial pautado por um comportamento profissional. Isto teria o complicador de atropelar o Almanaque do Exército, pois à frente de Ramos existiam outros generais, no critério de antiguidade. Essa possibilidade deixou de existir, com passagem para a reserva do ministro secretário de Governo.

O risco de uma ruptura democrática com a participação das Forças Armadas ficou mais distante e o distencionamento serviu para fortalecer o comandante do Exército. Não gratuitamente, o vice-presidente, general Hamilton Mourão declarou que Edson Pujol deve se manter no cargo até 2023.

Isto não quer dizer, contudo, que tenha sido afastado o risco de a imagem das Forças Armadas serem duramente afetada em decorrência da forte presença de militares no governo, em cargos chaves. Isso tem reflexo na politização da tropa, germe para a quebra da disciplina e da hierarquia, como aconteceu no passado. Cada vez mais militares da reserva se manifestam pelas redes sociais, nos clubes militares e em artigos publicados em grandes jornais. Via de regra, eles repercutem o clima dos quarteis que, por uma questão de disciplina, o pessoal da ativa não pode se pronunciar.

Essa politização tem seus germes ainda na gestão do general Eduardo Villas Boas, quando o então comandante do Exército passou a ter presença ativa nas redes sociais e a se pronunciar sobre temas que fugiam do escopo profissional. O mais célebre deles foi seu pronunciamento de quando o STF ia julgar o Habeas Corpus de Lula. O mérito do general Edson Pujol é voltar a fazer o exército o grande mudo em matéria de política, como pregava o marechal Cândido Rondon.

Os estragos à imagem das Forças Armadas estão feitos e são imensos. Elas, que eram a instituição mais bem avaliada pelos brasileiros, viram sua popularidade decrescer a cada nova pesquisa. A presença do general da ativa Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde jogou a bomba da covid 19 no colo dos militares. Ela ofusca a ação positiva das três armas em operações de descontaminação e de transporte de equipamentos e insumos médicos por todo o país.

A presença de militares da ativa na administração é uma questão controversa, por falta de regulamentação. E vem de longe.

Ali nos anos 30 um certo Coronel Y escrevia na Gazeta do Rio: “para entrar na política, primeiro o militar deveria largar a farda. O militar, antes de tudo, pertence a uma classe, faz parte em promoções e conta tempo de serviço em seu benefício, passando a desempenhar função civil é militarmente lógico e individualmente honesto que ele se torne um egresso de sua classe”.

O tal do Coronel Y era o então capitão Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do período ditatorial inaugurado em 1964.

Na transição democrática de 1985 os militares foram coparticipes de uma obra de engenharia política que possibilitou seu recuo organizado para os quarteis e a reconstrução da imagem das Forças Armadas. O recente atrito com o ministro Gilmar Mendes recomenda que sua cadeia de comando reveja a estratégia de identificação direta com o governo e faça um momento de meia-volta volver, até por uma questão de autopreservação.

Leiam como se fosse um poema

Para Raul Wassermann, editor audacioso, amigo dos livros, acreditou em mim há 50 anos
Como não estarmos confusos, muitas pessoas perdidas, desanimadas, desorientadas, a esmo, de déu em déu, desarvoradas?

Antigamente havia as garotas-propaganda, mas o Brasil se tornou original ao ter o primeiro presidente-propaganda de um medicamento (exercício ilegal de medicina?) e isso provocou uma desordem na árdua luta contra a pandemia,

Hoje, cada governador, prefeito, vereador, presidente de Câmara, assessor de imprensa, de imagens, marqueteiro, servidor de café, motoboy, líder de partido político tem seu sistema.

Cada general, almirante, marechal, coronel, tenente-coronel, major, alferes, capitão, sargento, cabo (de onde vem a expressão: “Essa é de cabo de esquadra?”), cada soldado raso (haverá o soldado fundo?), taifeiro, couraceiro, arqueiro, hussardo, infante, besteiro, ou sniper, o atirador de elite tem sua artilharia.

Cada juiz, promotor, advogado, desembargador, reitor, pai de família, chefe de facção, líder de milícia, sacerdote ou pastor das mil diferentes religiões, chefe de seção em departamentos públicos, autarquias, ministérios, gabinetes (ninguém é mais prepotente do que um chefe de gabinete) tem seu processo ou planilha.

Cada chefe de matilha, cão líder de rebanho de ovelhas, de mulas, camelos, búfalos, gado para corte, cada chefe de quadrilha de bairro, ou seja gangue, guarda-civil, vigilante noturno tem seu plano.

Cada uma dessas pessoas ou de agremiações, associações, sindicatos, grupos, associações, patentes, ou seja lá o que for, tem enfrentado a pandemia a seu modo e bel prazer, dependendo da ambição de ser eleito, enriquecer, ser promovido, ou seja lá qual é a intenção.

Enfim, cada qual vem criando uma plataforma particular, única, de combater o coronavírus, fazendo o que quer e acha melhor. E como somos 220 milhões de brasileiros batemos o recorde mundial de sistemas de combates a pandemia, epidemias, catástrofes, etc. e tal.


Vai daí que isso gera a maior mixórdia no combate ao coronavírus. Uns são contra o fechamento do comércio, outros contra a abertura do comércio, indústria e todos os serviços. Há os contra as aglomerações, enquanto outros são a favor.

Há os que querem jogos de futebol e os que não querem. Há milhões a favor da máscara e milhões contra. Dezenas não quiseram ou não souberam opinar. Dois invocaram o livre-arbítrio para nada declarar. Um preferiu se matar diante da pergunta: o que fazer?

E há e não há UTIs disponíveis. E há e não há crescimento do número de infectados. E há e não há aumento no número de mortos. Houve até quem tenha dito, jurando pela alma da mãe, que não há vírus, germe, bactéria, peçonha ou flagelo, apenas uma leve indisposição estomacal, xixi preso, um estresse suave, alergia ligeira que pode ser debelada (veja só a palavra, debelada) com bálsamos, mezinhas, orações, laxativos e – pasmem – um desinfetante.

Falando em UTIs, ninguém se comoveu, chorou, se indignou, lamentou, protestou, ninguém disse coisa alguma ao ver o vídeo de uma UTI em Roraima invadida pela chuva e a água escorrendo das luminárias em cima dos doentes, encharcando respiradouros. Jornal Nacional de segunda-feira.

Esta é a saúde do Brasil atual: a água – e a lama dos espíritos – invadindo as UTIs. Há muito elas invadiram a política, a ética, a moral, o cérebro e as consciências. Acentuou que jamais se viu a classe médica, enfermeiros, todo tipo de pessoas ligadas à saúde, tão desesperada em salvar vidas, em sofrer pelas batalhas perdidas.

Enquanto isso, o Supremo briga com os fardados, estes reagem, a população morre e o presidente diz: E daí?

No momento em que escrevo este texto, uma terça-feira, estão morrendo de 800 a mil pessoas por dia, e ultrapassamos o total dos 70 mil mortos, a população de uma cidade média. Se calcularmos que cada túmulo é uma cova de um metro de largura por dois de comprimento, quantos hectares de tumbas temos no Brasil inteiro? Qual a extensão? Dá quantos municípios ou talvez Estados? E daí?

Depois de o ministro das Comunicações dizer que a floresta amazônica é Mata Atlântica, uma lanterna brilha no fundo do túnel com um ministro da Educação que não tem currículo falsificado, possui títulos a granel e pertence a uma respeitável instituição de ensino, o Mackenzie. Só fico com a pulga atrás da orelha (e o que uma pulga vai fazer atrás de nossa orelha?) com aquela história de que ele pregou que se deve punir alunos com tapas e talvez palmatória? Fake news ministro? Pode ser, o gabinete dos perversos é mesmo... perverso.

E ainda querem que eu acredite que o presidente está com coronavírus? Eu? Aqui, ó! Fico indagando sobre coisas fúteis (ou não) na solidão desta covid. Ministros têm sido demitidos por falsidades em seus currículos. Assim, pergunto: se um dia o JB colocar no CV dele que foi presidente do Brasil não estará dando informação falsa? Até agora não governou uma só hora, um minuto, segundo, um milésimo de segundo fazendo alguma coisa por quem o elegeu. Não governou um microinstante no significado exato, amplo, democrático da palavra.

Em cartaz, no Planalto, a nova versão da Ópera do Malandro

Na hora em que se descobre em apuros, ou o presidente Jair Bolsonaro recua e dá o dito pelo não dito como já fez tantas vezes, ou jogo a culpa nos outros. Se não dá para jogá-la nas costas dos adversários de preferência, joga nas costas dos próprios auxiliares. E não se constrange em agir assim. E nem na intimidade com eles se desculpa. De corajoso não tem nada.

É como se comporta desde o seu tempo de soldado e de garimpeiro nas horas, atividade que escondeu dos seus superiores. Como deles havia escondido seu plano de detonar bombas em quartéis em defesa de melhores salários para a soldadesca. E foi por isso que acabou afastado do Exército. Certa vez, o ex-presidente Ernesto Geisel referiu-se a ele como “um mal militar”.

Em entrevista recente à GloboNews, o vice-presidente Hamilton Mourão tentou explicar por que Bolsonaro é o que é. “Ele encerrou a carreira em um posto, o de capitão, onde você é muito mais físico do que intelectual”. E acrescentou: “Quando você muda da parte do físico para a do intelectual… Ele não viveu esse momento dentro da carreira militar”. Entenderam o que Mourão quis dizer?

No prontuário de Bolsonaro guardado nos arquivos do Exército, consta que Cavalão (apelido dele na caserna) era bom de corridas a longa distância, da prática de esportes e de saltos de paraquedas. Parou por aí. Embora já tenha testado positivo duas vezes para o coronavírus, ele se apresenta como dono de uma saúde de atleta. Sobreviveu até a uma facada traiçoeira.

No mais, nunca leu um livro na vida, do que se orgulha. É só intuição, astúcia, esperteza e malandragem. Pois o malandro, presidente acidental, mandou que a Advocacia Geral da União (AGU) desse um jeito no processo que ele responde na condição de réu por ter liberado a compra de munição em quantidades três vezes maiores pelos proprietários de armas registradas.

Podia-se comprar 200 unidades de cada vez. Pode-se comprar 600. E sabem por quê? Porque Bolsonaro quer armar o povo, como disse na reunião ministerial gravada de 22 de abril último. Armá-lo para impedir a implantação de uma ditadura no país – ditadura de esquerda, naturalmente. Deu até um exemplo:

– Um prefeito faz a porra de um decreto, algema uma mulher e deixa todo mundo preso dentro de casa. Se [o povo] tivesse armado iria para a rua. Eu quero todo mundo armado!

Pouco antes, na mesma reunião, avisara em voz alta a Sérgio Moro, então ministro da Justiça, e ao general Fernando Azevedo, ministro da Defesa que a tudo ouviam calados: “Peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assinem essa portaria ainda hoje, que eu quero dar uma porra de um recado”. Missão dada pelo presidente da República, missão cumprida pelos dois ministros.

Acontece que, agora, em peça incluída nos autos do processo, a AGU alega que se existirem delito e culpa, Bolsonaro nada teve a ver com isso, nadinha. A portaria foi assinada por Moro e Azevedo, ponto. “Os atos administrativos praticados no âmbito dos dois ministérios não podem ser atribuídos pessoal e institucionalmente ao presidente da República”, ponto. Que tal?

Pura malandragem, talkey? Malandragem misturada com falta de escrúpulos (“Às favas todos os escrúpulos”), deslealdade com subordinados que obedeceram às suas ordens, e covardia. Ontem, as vítimas foram Moro, que se demitiu e denunciou Bolsonaro, e Azevedo, que enfrenta a pressão dos comandantes militares para que não se curve a todas as vontades do chefe. E amanhã?

Vida longa a Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e Eduardo Pazuello, o general especialista em logística que responde há dois meses pelo Ministério da Saúde na condição de interino. Por seguirem sem discutir as orientações de Bolsonaro, foram elogiados por ele em sua live das quintas-feiras no Facebook. Não é necessariamente um sinal de que possam respirar em paz.

Brasil dos 'inocentes'


A encruzilhada ideológica de Bolsonaro

As batalhas políticas do primeiro semestre deixaram marcas no governo Bolsonaro. Para que ele sobreviva e possa continuar com prestígio até o fim do mandato, mantendo alguma esperança de reeleição, precisará escolher com quem governar e de que modo. Caberá à Presidência escolher um caminho de governabilidade que reduza os efeitos danosos das contradições existentes entre seus apoiadores. Em poucas palavras, trata-se de uma encruzilhada entre dois conservadorismos, um de cunho revolucionário e outro, de viés tradicional. Juntar os dois por muito tempo será uma tarefa quase impossível.

A expressão conservadorismo revolucionário parece uma contradição em termos. Afinal, quando ser quer conservar, não se pretende fazer mudanças amplas e bruscas. Porém, o novo populismo de extrema-direita, presente em vários países e no bolsonarismo-raiz, tem como projeto enfraquecer ou destruir todas as instituições políticas de caráter liberal-democrático. Seus motes são a antipolítica, a luta contra o establishment globalista e a redução ao máximo da pluralidade ideológica, em especial com o aniquilamento da esquerda - os comunistas, classificação na qual cabe até George Soros.

Todas essas ideias visam à concentração do poder num líder carismático capaz de liderar uma revolução cultural baseada em valores mais conservadores (família patriarcal, religião e nacionalismo) que se somam ao culto à violência e a um individualismo darwinista, isto é, uma liberdade para os que mais fortes vençam. Esse é o ideário produzido pelos inspiradores intelectuais do bolsonarismo. É possível levar adiante esse conservadorismo revolucionário destruindo mais ou menos a democracia. De todo modo, a forma revolucionária de agir dos bolsonaristas-raiz exige que se cause turbulências contínuas no sistema político e nas principais instituições sociais, como a escola e os meios de comunicação de massa.


Os últimos seis meses foram repletos de acontecimentos políticos e sociais que colocaram a maior parte da população e as principais instituições contra Bolsonaro, limitando seus arroubos autoritários. O resultado dessa derrota bolsonarista colocou em jogo até a sobrevivência do presidente no cargo, além da forte pressão judicial contra seus filhos e apoiadores. Para manter seu mandato e continuar sendo peça-chave no tabuleiro político, Bolsonaro teve que se ancorar mais num outro grupo conservador, que é tradicional no Brasil há muito tempo.

Uma parte desse conservadorismo já estava próxima do bolsonarismo: os evangélicos, que tendem a ganhar mais prestígio daqui para diante. Mas havia uma outra parcela que estava fora do circulo mais íntimo do poder: o chamado Centrão, composto por políticos de vários partidos de direita e centro-direita. Trata-se de um bloco que varia de tamanho dependendo dos recursos que são distribuídos e do contexto político. O que os une é a combinação de fisiologismo com o realismo. Os parlamentares desse centrismo invertebrado apoiaram FHC e Lula, de modo que, embora professem valores geralmente conservadores, optam pelo apoio a quem lhes dá vantagens eleitorais. Dito de outro modo, não basta que Bolsonaro comungue das mesmas ideias morais. Será necessário entregar poder aos novos aliados e bem-estar a seus eleitores.

A convivência entre os dois conservadorismos ficará cada vez mais difícil dentro do governo Bolsonaro. É óbvio que o presidente vai tentar agradar aos dois lados, mas essa estratégia tem limites porque o grupo revolucionário é ideológico por excelência e terá dificuldades de aceitar o pragmatismo político dos conservadores tradicionais, e vice-versa. A batalha se tornará ainda mais forte porque houve um enfraquecimento do bolsonarismo-raiz e ele dificilmente responderá aos desafios do período pós-Covid-19.

Entre os fatores que enfraqueceram os conservadores revolucionários, quatro se destacam. O primeiro foi a derrota do discurso negacionista e anti-humanista frente à pandemia. A maioria da população ficou do lado da ciência, o sistema de Justiça amarrou as mãos de Bolsonaro no comando da política de Saúde e o número de mortes, que ainda se multiplicará nos próximos meses, deixará marcas em parcela importante da sociedade.

Derivado desse primeiro fator, um segundo elemento tende dificultar o uso da bússola do conservadorismo revolucionário: os eleitores, os políticos do Congresso, a comunidade internacional e mesmo os agentes do mercado local vão cobrar cada vez mais resultados das políticas públicas. Dois exemplos ilustram bem essa situação. No caso da política ambiental, o fracasso de suas ações vai ter terríveis consequências econômicas. Deixariam de vir investimentos internacionais para o país. A área de infraestrutura, que precisará da alavanca de capital estrangeiro, ficará a ver navios. E há ainda o grande risco do negacionismo ambiental impactar as exportações do país, especialmente do agronegócio.

O governo Bolsonaro terá que obter credibilidade internacional e mostrar resultados nas políticas de proteção ao meio ambiente. Para isso, terá de fortalecer decisões técnicas e se livrar dos conservadores revolucionários - que se mostraram, ademais, incompetentes. Vale frisar que além de melhorar os indicadores do país, será preciso reconquistar a confiança, algo que exigirá a criação de canais de diálogo com, pelo menos, uma parcela dos ambientalistas. Sem isso, o mundo não acreditará no Brasil. Uma mudança como essa exige pragmatismo e rechaço a ideologias.

A Educação é outro setor no qual o conservadorismo revolucionário só produziu destruição até agora, com efeitos na piora da qualidade e equidade do ensino que provavelmente apenas serão percebidos no médio prazo (talvez depois desse mandato), mas com efeitos políticos já de curto prazo. A lista de descontentes no atual momento é extensa. Famílias cujos filhos voltarão a escolas públicas em condições precárias; jovens que estão fazendo ou saindo do ensino médio e que ficaram descontentes com todo o processo de escolha das novas datas do Enem; integrantes das universidades públicas, que hoje combinam eleitores de classe média (professores e alunos) com uma parcela crescente advinda das cotas sociais e raciais, e das instituições privadas, onde os alunos estão abandonando cada vez mais os estudos por falta de recursos; e, finalmente, prefeitos, governadores e políticos locais de vários partidos, pois eles serão mais cobrados pela sociedade e não têm tido o apoio federal necessário.

Daqui pra frente, as falhas em políticas públicas vão ficar mais evidentes. Com um ano e meio de governo, o bolsonarismo, tomado principalmente pelo conservadorismo revolucionário, não foi capaz de melhorar ou produzir alternativas ao modelo vigente, de modo que chegará a hora e a vez dos cidadãos cobrarem mais pelos serviços públicos e pelos resultados das políticas. O Centrão sabe disso e, por isso, logo, logo, além de cargos, demandará mais pragmatismo ao presidente para continuar no seu barco.

Um terceiro fator que colocará o bolosonarismo-raiz em frágil situação serão as pressões internacionais. Elas tendem a aumentar porque o Brasil se tornou um pária para parte da comunidade internacional, por conta de seus fracassos nas áreas de saúde, meio ambiente e direitos humanos, bem como em razão de sua postura contrária às ações multilaterais. O impacto internacional sobre o conservadorismo revolucionário virá, ainda, do enfraquecimento recente da extrema-direita em vários lugares do mundo. E se Trump perder a eleição presidencial, Bolsonaro terá de dizer que nem conhece seus amigos radicais.

Mas a maior derrota do extremistas que deram base ao bolsonarismo está no campo das instituições democráticas. O projeto mais autoritário advindo daí ganhou limites fortes, embora não se possa negar que Bolsonaro ainda tentará controlar instituições importantes, como no caso do Ministério Público Federal. Só que os conflitos institucionais vão permanecer, sobretudo porque há muitos esqueletos no armário da família Bolsonaro. Desse modo, não será mais possível permanecer no poder e, principalmente, governar, sem ser pragmático em relação às principais instituições políticas.

Nesta encruzilhada ideológica, a sobrevivência do bolsonarismo parece depender de sua migração mais explicita para o conservadorismo tradicional. O discurso em relação aos valores pode ser mantido, embora deva ser expresso de uma forma mais amena, mas será necessário negociar mais e evitar o extremismo nas políticas públicas. O Centrão quer o voto do povão, e não revoluções culturais.

Abandonar o conservadorismo revolucionário não é tão simples, todavia. Essa mudança traz basicamente dois custos: a possível perda de apoiadores mais fiéis e, especialmente, o fato de que o discurso antipolítica se tornará cada vez mais “fake” junto ao eleitorado em geral. Fica a pergunta: Bolsonaro quer ser um mito para seus seguidores ou continuar governando o Brasil? Depois da pandemia, talvez seja cada vez mais difícil assumir os dois papéis, mas, conhecendo a personalidade do presidente (e de seus filhos), ainda não é possível dizer qual caminho ele irá adotar.
Fernando Abrucio

Governo militar não funciona, com ou sem eleição

A representação à PGR de Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, contra o ministro Gilmar Mendes, do STF, apelando à Lei de Segurança Nacional e ao Código Penal Militar, tem o odor inequívoco de república bananeira. É o general que sobrevoou a Praça dos Três Poderes num helicóptero de combate quando, em solo, fascistoides pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo.

Os militares decidiram sair dos quartéis para colonizar o governo. A janela se abriu com a eleição de Jair Bolsonaro à esteira da razia provocada pelos desmandos da Lava Jato. O resultado é um desastre de proporções amazônicas. A institucionalidade trincada nos conduziu à terra dos mortos --desmatada e queimada. Já fiz neste espaço, no dia 10 de maio, uma exortação: voltem para os quartéis, soldados! Agora outro convite: chega de autoengano, colegas analistas!

Muitos de nós cometeram o erro de imaginar que os militares graúdos da reserva e da ativa estão com Bolsonaro para conter sua criatividade destruidora. Os fatos desmentem a esperança, que, nesse governo, deve sempre ficar de fora.


Luiz Eduardo Ramos, o general (!) da coordenação política que só agora pede passagem para a reserva, afirmou em entrevista que especular sobre golpe é "ultrajante". Mas fez uma advertência: convém não "esticar a corda". E o que seria esticá-la? Respondeu: "Um julgamento casuístico".

Em nota, presidente, vice e ministro da Defesa alertaram: "As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas" e "não aceitam (...) a tomada de poder (...) por conta de julgamentos políticos". Nos dois casos, os fardados se colocam como juízes dos juízes. Isso é ultrajante.

Acabou a tutela! A democracia não é uma concessão que militares fazem a civis. A força armada existe para nos proteger, não para nos ameaçar.

Mendes teve a serena ousadia de chamar pelo nome, ainda que num exercício hiperbólico, aquilo a que se assiste no país, segundo o que define o Estatuto de Roma, que orienta os julgamentos do Tribunal Penal Internacional: genocídio.

E o Exército "se associa", verbo empregado pelo ministro, à tragédia porque à frente da Saúde está um general da ativa --Eduardo Pazuello-- cuja incompetência se conta em cadáveres: quase 80 mil.

Para os muitos exigentes em matéria de genocídio: o morticínio em massa tem cor e classe majoritárias: preta e pobre.

E lá veio a voz surda da ameaça em notas e cochichos, a exemplo do malfadado tuíte de 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou o STF caso concedesse o habeas corpus a Lula, o que, por 6 a 5, não aconteceu, contrariando a Constituição. Os militares ganharam balda. Conseguiram, por exemplo, um dos planos de aposentadoria mais generosos do mundo mesmo nesta terra devastada, do genocídio cordial sem hipérbole.

Mendes, na verdade, defendeu a honra do Exército, que não é propriedade dessa geração do oficialato. Como instituição permanente e regular, pertence ao povo. É preciso, se for o caso, preservá-lo do erro de alguns generais que confundem sua pantomima pessoal com a história da Força.

Não haverá golpe, não é mesmo, senhores? A tragédia da Covid-19 e a crise ambiental, que tem a Amazônia como epicentro, são, antes de tudo, desastres da gestão militar. Tornam o país pária no mundo. Golpe em nome do quê? Condecorem Mendes, que não acusou o Exército de praticar genocídio. Ele cobrou que a Força não se associe ao desastre.

Só para lembrar: Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos e da máquina de guerra mais poderosa da Terra, teve a humildade de se desculpar com o povo americano por ter sido flagrado numa foto ao lado de Donald Trump, em situação política incômoda.

Quem pode se impor militarmente ao mundo se desculpa com seu povo por um ato errado. Quem é ignorado por este mesmo mundo se impõe militarmente a seu próprio povo.

Descolonizem o governo, senhores! Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às respectivas tropas. Como se nota, governo militar não funciona. Com ou sem eleição.

Quem paga o pato...



Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre
Eduardo Galeano

Os rega-bofes do Queiroz

Um dia, quando os historiadores estudarem os anos bolsonaros, algumas questões poderão embatucá-los. Exemplo: como se explica que Fabrício Queiroz, íntimo dos Bolsonaros, com paradeiro ignorado e investigado por negócios de grande interesse dos dois, pode ter sido hóspede em Atibaia por mais de um ano de Frederick Wassef, então advogado dos mesmos Bolsonaros, sem que estes soubessem? Uma simples palavra de Wassef —“Fiquem tranquilos, o homem está comigo”— os teria poupado de aflições sobre esse paradeiro, que tantas vezes disseram desconhecer.


Outra: já que nunca estranharam as transações financeiras do amigo, por que eles não o abrigaram? Não seria por falta de opções —afinal, os Bolsonaros têm uma bela carteira de propriedades em vários estados, fora os apartamentos e salas que Flávio Bolsonaro comprava e revendia horas depois com lucro de 400 por cento. Talvez porque soubessem que Queiroz seria um hóspede complicado. O próprio Wassef se queixou de que, em vez de se manter discreto, Queiroz não sossegava —vivia pulando do sítio de Atibaia para os apartamentos do advogado em São Paulo e vice-versa e até para assistir ao filho jogar pelada na longínqua Saquarema.

E tudo isso durante um delicado tratamento de câncer de cólon, que o obrigava a idas a hospitais, ocasiões que aproveitava para passar na quitanda e se equipar para os churrascos, cervejadas, réveillons e outros rega-bofes que promovia com os amigos no famoso sítio.

Agora em prisão domiciliar, Queiroz será dispensado desses atropelos e poderá se dedicar melhor ao tratamento. Sua mulher, Márcia, cuidará dele, o que não pôde fazer enquanto também ficou fora do ar.

Os futuros historiadores só estranharão por que o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha, não convidou o casal para sua cerimônia de posse no STF na vaga de Celso de Mello.
Ruy Castro

Efeitos colaterais do excesso de militares no governo

O presidente Jair Bolsonaro está calado, depois da prisão de Fabrício Queiroz e isolado, depois de infectado pelo coronavírus. As duas coisas deram uma trégua na sucessão de crises diárias criadas por Bolsonaro, inesperadamente rompido por frase desajuizada de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal. “O Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável”, disse, referindo-se ao morticínio provocado pelo coronavírus -mais de 74 mil vítimas até ontem. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, em nota assinada pela primeira vez no atual governo pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, criticou a fala de Gilmar e encaminhou representação contra ele na Procuradoria Geral da República, o caminho institucional, por instigação de animosidade contra as Forças Armadas e crime contra a honra.

O alvo específico da crítica do ministro do STF foi a militarização do Ministério da Saúde, há dois meses sem titular e comandado interinamente pelo general da ativa Eduardo Pazuello, que para lá levou mais 28 militares. Pazuello não tem formação médica, assim como a maior parte de seus auxiliares fardados. Durante seu interinato, as mortes ultrapassaram o nível de 1 mil por dia e se mantêm nesse patamar.


Pazuello, especializado em logística, foi enfiado goela abaixo do então ministro Nelson Teich, que chegou, viu o ambiente e saiu correndo do pandemônio do ministério em menos de um mês. Bolsonaro disse em junho que Pazuello faz um trabalho “excepcional” e justificou seu ingresso ao lado de Teich: “um médico dificilmente é gestor”. Com igual razão, um gestor não é um médico e militares cumprem ordens. As ordens vieram de cima, do presidente da República e condenaram o ministério a se tornar irrelevante quando ele era mais necessário no combate à pandemia. As ordens foram cumpridas à risca.

Pazuello estreou no lugar de Teich propondo nova forma de contabilizar vítimas e infectados, suspendendo a divulgação de relatórios diários, regular até então. Atendeu às manias do chefe e criou um novo protocolo recomendando o uso da cloroquina desde a fase inicial da infecção, quando não há qualquer comprovação científica da eficácia do remédio, mas várias sobre seus males.

Bolsonaro se opôs ao distanciamento social, ao trabalho de coordenação necessário executado por Luiz Mandetta e há pouco usou sua caneta para vetar que o uso de máscara seja obrigatório no comércio, igrejas etc. Pazuello é um aplicado cumpridor desta estratégia, que levou a Saúde à nulidade durante a maior crise sanitária em décadas e eliminou qualquer expectativa de que possa ter o mínimo papel positivo durante a pandemia. O presidente é o artífice e responsável pelo desastre.

De desastre, desprezo pela vida humana e incompetência até o genocídio, porém, há um oceano. Mas Gilmar, a rigor, não colocou o Exército como sujeito e autor do inexistente genocídio, mas advertiu-o a não ser um coadjuvante de uma política aberrante e mortífera. Com a cautela que não teve na primeira vez, Gilmar afirmou em nota na terça que refutava “a decisão de se recrutarem militares para a formulação e execução de uma política de saúde que não tem se mostrado eficaz para evitar a morte de milhares de brasileiros”.

Bolsonaro não promoveu a revoada de militares da reserva e da ativa para seu governo à toa. O presidente radicaliza seus ataques às instituições sugerindo que têm o apoio fardado. Como comandante-em-chefe das Forças Armadas, não pode ser desobedecido ou contestado. O ministro da Defesa e os comandantes militares não se distanciaram dessa armadilha, assim como não ficaram quietos sobre as barbaridades políticas cometidas pelo presidente. Mas estão vigilantes e crispados exatamente diante de críticas ao comportamento provocador de Bolsonaro. O ministro da Defesa sobrevoou uma manifestação contra a democracia ao lado do presidente.

Há este recado implícito na forma errada com que Mendes usou para apelar aos militares. Eles estão se associando demais aos ataques contra a democracia e demais atos destrutivos de Bolsonaro. Por isso, poderão colher os frutos amargos com a depreciação de seu prestígio junto ao público, que demorou décadas para ser construído. As surpresas que a Justiça pode trazer nos casos Queiroz, milícias, rachadinhas e Flavio Bolsonaro, desaconselham vivamente a identificação com o governo.