A motivo imediato do contencioso é a hipertrofia da presença dos militares em postos estratégicos do ministério da Saúde, a começar pelo próprio ministro interino. Mesmo que não venha a ter maiores desdobramentos e ao final tenhamos o general Eduardo Pazuello deixando a pasta, o episódio é por si um perigoso precedente de um conflito entre poderes com o envolvimento direto das Forças Armadas.
Fazia muito tempo que os comandantes das três armas não assinavam uma nota conjunta em um tema nitidamente político. Isso era uma prática constante durante o período da ditadura, quando o país ficava em suspense toda vez que os chefes militares se pronunciavam oficialmente sobre a vida política nacional. O espectro do episódio Márcio Moreira Alves por algum momento ressurgiu no ar. Menos mal que tenha se dissipado, mas a questão militar está posta de novo na agenda nacional.
Este imbróglio está presente na vida política do país desde o fim da guerra do Paraguai, quando o então tenente coronel Sena Madureira e o coronel Cunha Matos assumiram posições contrárias ao regime monárquico e por isso foram presos. O positivismo, com sua concepção de que o progresso só é possível de ser alcançado por meio da ordem e do conhecimento, é um traço marcante de todas as gerações de oficiais. Ironia da história que à frente do ministério da Saúde um general não se paute pela observância do conhecimento científico.
Inspirados nas ideias de Augusto Comte, desde a proclamação da República entendiam a modernização do país por meio de um governo com características autoritárias. A ideia da ditadura reformista e modernizadora os levaria a exercer o poder diretamente de 1964 a 1985. A aliança com Bolsonaro, sacramentada com a escolha do general Hamilton Mourão para vice-presidente, é um retorno ao salvacionismo positivista, no qual os militares se atribuem a missão de regenerar o país após a hecatombe das lideranças políticas e de quase todos os partidos.
Para os militares de todas as épocas, os interesses das Forças Armadas se confundem com os do país. Os primeiros a defender essa ideia foram os “jovens turcos” – primeiros militares treinados profissionalmente para o comando. Suas ideias foram expostas na primeira revista teórica voltada para os militares, A Defesa Nacional.
É ela quem teoriza um conceito que pautou a ação dos militares até a democratização de 1985 e que volta com força nos dias atuais. Segundo essa visão, a instituição não deveria se limitar apenas à defesa nacional e deveria atuar como uma espécie de partido fardado, dada a inexistência de instituições sólidas ou de uma elite política comprometida com os interesses do país. Nos anos 20/30, Oliveira Viana foi o grande teórico do papel das Forças Armadas na modernização do Estado.
Qualquer semelhança com os militares de hoje mão é mera coincidência. Como seus antepassados, entendem o federalismo com um poder central forte e, a exemplo do tenentismo dos anos 20/30 tem profundas desconfianças das elites políticas. Episódios como o mensalão e o petrolão reforçaram esse sentimento. Como a vida é cheia de ironias, foi um militar da ativa, o general de quatro estrelas Luiz Eduardo Ramos, ministro secretário de Governo, que negociou com o centrão o loteamento da máquina governamental.
A nova geração não viveu 1964, mas pagou um preço por ele. Por isso mesmo, há resistências no alto comando das Forças Armadas para avalizar a aventura de uma ruptura democrática, hipótese que ficou mais afastada com a redefinição da estratégia de Bolsonaro, a partir da prisão de Fabrício Queiroz. O presidente, que vinha apostando num confronto com os outros dois poderes, mudou de postura, com vistas à reconstrução de pontes capazes de lhe retirar do isolamento. Deixou de lado a estratégia de “guerra de movimentos” para adotar a de “guerra de posições”, passando a fazer política. Até quando, não se sabe.
Um subproduto dessa retificação da estratégia foi o arrefecimento do contencioso entre o grupo de militares palacianos e a cadeia de comando das três forças, altamente preocupada com a identificação direta entre governo, uma instituição transitória, e as Forças Armadas, uma instituição permanente de Estado. O anúncio da passagem do general Luiz Eduardo Ramos para a reserva foi um gesto para aplacar o incômodo que seu status de ministro e militar da ativa provocava na tropa.
Como militar da ativa, o general Ramos era o nome dos sonhos de Bolsonaro para substituir o atual comando do Exército, general Edson Pujol, um oficial pautado por um comportamento profissional. Isto teria o complicador de atropelar o Almanaque do Exército, pois à frente de Ramos existiam outros generais, no critério de antiguidade. Essa possibilidade deixou de existir, com passagem para a reserva do ministro secretário de Governo.
O risco de uma ruptura democrática com a participação das Forças Armadas ficou mais distante e o distencionamento serviu para fortalecer o comandante do Exército. Não gratuitamente, o vice-presidente, general Hamilton Mourão declarou que Edson Pujol deve se manter no cargo até 2023.
Isto não quer dizer, contudo, que tenha sido afastado o risco de a imagem das Forças Armadas serem duramente afetada em decorrência da forte presença de militares no governo, em cargos chaves. Isso tem reflexo na politização da tropa, germe para a quebra da disciplina e da hierarquia, como aconteceu no passado. Cada vez mais militares da reserva se manifestam pelas redes sociais, nos clubes militares e em artigos publicados em grandes jornais. Via de regra, eles repercutem o clima dos quarteis que, por uma questão de disciplina, o pessoal da ativa não pode se pronunciar.
Essa politização tem seus germes ainda na gestão do general Eduardo Villas Boas, quando o então comandante do Exército passou a ter presença ativa nas redes sociais e a se pronunciar sobre temas que fugiam do escopo profissional. O mais célebre deles foi seu pronunciamento de quando o STF ia julgar o Habeas Corpus de Lula. O mérito do general Edson Pujol é voltar a fazer o exército o grande mudo em matéria de política, como pregava o marechal Cândido Rondon.
Os estragos à imagem das Forças Armadas estão feitos e são imensos. Elas, que eram a instituição mais bem avaliada pelos brasileiros, viram sua popularidade decrescer a cada nova pesquisa. A presença do general da ativa Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde jogou a bomba da covid 19 no colo dos militares. Ela ofusca a ação positiva das três armas em operações de descontaminação e de transporte de equipamentos e insumos médicos por todo o país.
A presença de militares da ativa na administração é uma questão controversa, por falta de regulamentação. E vem de longe.
Ali nos anos 30 um certo Coronel Y escrevia na Gazeta do Rio: “para entrar na política, primeiro o militar deveria largar a farda. O militar, antes de tudo, pertence a uma classe, faz parte em promoções e conta tempo de serviço em seu benefício, passando a desempenhar função civil é militarmente lógico e individualmente honesto que ele se torne um egresso de sua classe”.
O tal do Coronel Y era o então capitão Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do período ditatorial inaugurado em 1964.
Na transição democrática de 1985 os militares foram coparticipes de uma obra de engenharia política que possibilitou seu recuo organizado para os quarteis e a reconstrução da imagem das Forças Armadas. O recente atrito com o ministro Gilmar Mendes recomenda que sua cadeia de comando reveja a estratégia de identificação direta com o governo e faça um momento de meia-volta volver, até por uma questão de autopreservação.