sábado, 27 de março de 2021

Pensamento do Dia

 


Exaustão

São 300 mil mortos, e estamos todos exaustos. Há um ano, era previsível que chegaríamos a 300 mil mortos, e estamos todos exaustos. Em 2018, já era possível antever o horror que seria o governo de Jair Bolsonaro, e estamos todos exaustos. Temos ainda meses duros pela frente e estamos todos exaustos. A angústia nos asfixia, e estamos todos exaustos. O medo nos oprime, e estamos todos exaustos. Mas exaustão não é sinônimo de tudo poder fazer. A exaustão não implica insensibilidade. A exaustão não pode determinar como tratamos pessoas que sequer conhecemos ou que mal sabemos como são e como pensam.

Como economista, estou exausta. Exausta de alertar, junto a outras vozes, que o Brasil estava caminhando para a tragédia dos corpos empilhados e asfixiados, das covas comuns e dos contêineres para os mortos, dos entubados nos corredores amarrados às macas sem sedativos, dos parentes aos prantos nas portas dos prontos-socorros. Das pessoas que morrem sozinhas, ainda que a realidade seja a de que todos nós, um dia, também vamos morrer sozinhos. A morte não permite acompanhantes, seja em que condições for. Sei disso, vivi isso junto ao leito de morte de meu pai há 30 anos, em um hospital, segurando sua mão. Ali estava ele, sozinho.

Tudo isso é muito duro. Tudo isso resulta da combinação entre o vírus, o descaso e as políticas intencionais do governo de fazer morrer. Como já escrevi neste espaço, essas políticas incluem a pauta econômica de Paulo Guedes, a pauta que é sempre poupada perante o descalabro. Tivemos, mais uma vez, o vislumbre de como se protege a pauta mesmo diante do colapso — começou no domingo e adentrou a semana a repercussão da carta que acertou e se esquivou em igual medida.

A dureza do momento não justifica a falta de civilidade no trato, a ausência da gentileza e da empatia. Ela tampouco justifica a frieza da economia perante os mortos. A economia conforme praticada no Brasil, que resolveu até o último instante se omitir, terá de ser dissecada no futuro para que seu papel nessa catástrofe seja plenamente compreendido. Afinal, não foram poucos os economistas que se omitiram. Muitos falaram, muitos sofreram, quiçá muitos tenham perdido amigos e entes queridos. Mas a economia como praticada no Brasil hipnotiza muitos de seus praticantes e os torna zumbis do custo-benefício, do cálculo diante de uma crise humanitária. O cálculo da dívida que cresce, do déficit que engorda, da inflação que sobe. Até que esses cálculos esbarram na realidade da morte. Da morte ao lado, pois os hospitais já não têm mais leitos e o dinheiro não permite que dela se salve. A paúra.

É grande a paúra quando nos defrontamos com a inevitabilidade de nossa transitoriedade. E talvez isso explique por que a economia, tal qual praticada no Brasil, não tenha capacidade de dar conta, de fazer a conta, da morte.

Durante esses últimos 12 meses, falei da morte. Não de forma aberta, mas implícita. A chamada de atenção para a morte, ou melhor, para como evitar os falecimentos desnecessários, esteve em cada palavra que escrevi e proferi. Esteve no que disse logo no início da pandemia: será longa, será dolorosa, preparem-se. Esteve em minha defesa do auxílio emergencial como medida de saúde pública. Esteve nas repetições infindáveis das mesmas ideias, com palavras distintas a cada vez. Contudo, nada é mais forte do que um governo que não apenas não se importa com as mortes evitáveis, mas as abraça. Disso faz parte o Estado Mínimo de Guedes. Disso faz parte a recusa em renovar o auxílio emergencial no ano passado. Disso faz parte a negação de que o Brasil sofreria uma nova onda da pandemia pior do que a primeira. Disso faz parte a tentativa de desmontar o SUS e de deixá-lo subfinanciado. Disso faz parte a insistência na votação da autonomia do Banco Central antes da aprovação do auxílio. Disso faz parte a tentativa de atrelar o auxílio a uma PEC cujos problemas são muitos. Sobre isso a carta dos economistas cala.

Nestes 12 meses me senti, ao mesmo tempo, impotente e capaz. Nestes 12 meses sofri ataques e ridicularizações de colegas de profissão. Não foram discordâncias sobre o que expunha, mas adjetivos que continuam guardados: “Macroeconomista de jornal”; “Tudóloga”; “YouTuber”. Teve também “essa daí é muito burra” e afins. Estou exausta da economia no “Brasil”.

Choro pelo Brasil, mas não deixarei de escrever. Tampouco de ficar exausta por todas as pessoas que merecem minha exaustão e pelo punhado que jamais a mereceu.

O caos que nos rouba a vida

Toda sociedade precisa de sistemas técnicos e administrativos. Quanto mais complexas e diversificadas, maior a necessidade. Sociedades desiguais, como a brasileira, dependem dramaticamente deles. O Estado, poder condensado, deveria funcionar como coordenador dos sistemas, em nome da vida comunitária, das liberdades e da justiça social. O próprio mercado é um vasto universo de sistemas. A vida coletiva, a rigor, é inconcebível sem recursos sistêmicos.

Há duas possibilidades de convivência entre os indivíduos (grupos, famílias, empresas) e as estruturas sistêmicas. A primeira seria aquela em que as pessoas acumulam recursos éticos e políticos para domesticar os sistemas e forçá-los a trabalhar em seu benefício sem sobrecargas desnecessárias.

A segunda é a que tem prevalecido na vida moderna: os sistemas submetem os indivíduos, roubando-lhes espaços de autonomia e defesa. Com sua progressiva burocratização, os sistemas crescem, blindam-se com normas e procedimentos, erguem muros que os afastam dos indivíduos. Processa-se o que o filósofo alemão Jürgen Habermas chamou de “colonização da vida” pelos sistemas. Sua conclusão é que nos entregamos ao que não podemos dispensar. Um belo dia descobrimos que estamos enredados nas malhas das estruturas que nos prestam serviços.


Comunidades com boas democracias e sociedades civis ativas conseguem maior sucesso na contestação dos sistemas, modelando-os para que atendam às necessidades coletivas. Munidos de capacidade de diálogo, elaboração discursiva e interpelação política dos poderes, os cidadãos se organizam e abrem janelas que “recolonizam” os sistemas.

Especialmente quando são complexos, os sistemas tendem a fugir de comandos autoritários, que se dedicam a desorganizá-los. São energizados pelas ideias de independência e autossuficiência. Agarram-se às suas expertises e à dedicação abnegada, muitas vezes heroica, de seus profissionais, que continuam a prestar serviços, salvar vidas, cuidar e educar.

É o caso, exemplar, do SUS e da rede de hospitais, centros de saúde e UPAs, do Butantan e da Fiocruz, para ficar no terreno sanitário. Sem o esforço descomunal que despendem para cumprir sua missão estaríamos em situação muito mais dramática. São elos de uma cadeia que sofre para agir, mas não desiste, mesmo tendo pela frente uma pandemia que bate ruidosamente à porta e faz o sistema conviver com o colapso, assoberbado pela profusão de casos e carente de recursos operacionais básicos.

Com Bolsonaro o ataque aos sistemas atingiu o auge. Muitos foram sucateados, perderam parte de sua potência positiva. O presidente não preside, age para impedir que o governo governe. A inteligência desapareceu, rejeitada por uma equipe ministerial pouco qualificada e desorientada pela ausência de um plano concatenado de governo. Os sistemas foram atingidos no coração. Não só na saúde. A corrosão atinge também a educação, a cultura, a ciência e a tecnologia, o meio ambiente.

O governo atual, em vez de atuar como vértice supremo dos sistemas, age deliberadamente para desorganizá-los, recusa-se a coordenar suas peças e as impede de funcionar. Forma-se assim uma nuvem tóxica, de rara perversidade, que provoca caos sistêmico geral, impulsiona a disseminação do vírus e aumenta o número de doentes e mortos. É um crime.

Hoje olhamos para o SUS sufocado, o Ministério da Saúde cortado pela incompetência, e vemos o tamanho do estrago. A cultura está em pandarecos, o sistema educacional vive espremido entre a “guerra cultural”, a religiosidade postiça e a falação sobre homeschooling. O sistema de Justiça claudica, o sistema político funciona aos trancos, mergulhado num mar de mediocridade.

A crise provocada pela pandemia e pelo desgoverno Bolsonaro atirou o País num poço, do qual será difícil sair.

Não temos uma sociedade que “atue sobre si mesma de modo democrático”, como diz Habermas. Não estamos, como cidadãos, conseguindo nos reunir num âmbito coletivo que nos dê força para intervir. Falta-nos solidariedade cívica, sobra fragmentação política, as “dissonâncias cognitivas” nos paralisam, o palavreado tosco e agressivo de quem deveria prezar pela serenidade causa horror. Ficou muito mais difícil um agir consciente sobre o mundo.

Ao nos isolar e assustar, a pandemia explica muita coisa, mas não serve de justificativa. O Estado, hoje, no Brasil não é uma comunidade política organizada, assentada nos interesses comuns de seus integrantes. Faltam-nos elites qualificadas e boas estruturas associativas. Está submetido aos desmandos, à incompetência e à incúria perversa de um governo desqualificado, que manipula e amplia a pandemia, em vez de combatê-la com firmeza e inteligência. A demolição é abrangente: institucional, ética, política, econômica, ambiental, existencial.

A luta contra essa situação e uma resposta articulada ao caos que nos rouba a vida serão as principais tarefas dos próximos anos. Quanto antes começarmos a cumpri-las, melhor.

Um Brasil poético e solidário

Para Thomaz Souto Corrêa

Alci, Miguelzinho e Lazinho trouxeram espigas de milho, as primeiras colhidas no milharal de Ivo e Sueli, amigos e vizinhos, e Rosilene colocou na panela. Mais tarde, Alci voltou com imensa abóbora logo transformada em doce e ainda será quibebe e sopa, tudo em fogão de lenha. Neste recanto do sul de Minas, descoberto há cinco anos, conseguimos construir um pequeno refúgio. Marcia, arquiteta, decidiu que a casa teria grandes janelas e portas de vidro, abrindo para a floresta, para vales e montanhas e, do lado direito, para o Pico do Papagaio, um dos símbolos de Minas Gerais.

Fugimos de São Paulo e aqui estamos, evitando o colapso da covid. Momento exato. Minha idade me torna vulnerável e quero ainda gozar os anos que me restam. Não professo a teoria do genocida. Aqui, aos poucos, viemos penetrando na atmosfera da comunidade, lentamente porque é preciso ir com jeito. O mineiro é bom, solidário, generoso, mas confia com cautela. Marcia e Rita já apanharam o modo de eles falarem, as contrações, prêle, os termos próprios, o LI quando querem dizer ALI, e dezenas de expressões poéticas. Nossa casa é conhecida como a casa da dona Marcia e foi construída velozmente por três homens, não mais. Das fundações aos acabamentos, hidráulica, pintura, Marcinho, Geovanni e Genildo cuidaram de tudo. O muro de pedra foi erguido pelo Fortunato, que manejou pedras pesadíssimas. José Messias se encarrega da horta e ali buscamos couve, feijão, alface, almeirão, vagem macarrão, couve chinesa e já temos limão plantado. Ele é daqueles que têm mão santa, planta, germina, cresce. Os governantes não conhecem o interior do Brasil, é outro mundo distante de Brasília, ninho de escorpiões.


Véspera de Natal, fim de ano. Não resistimos, viemos com a casa inacabada. Faltavam móveis e geladeira. A loja não teve como cumprir prazos. Logo a notícia se espalhou, eu diria que aqui é uma espécie de condado com suas casas espalhadas, bistrô da Nilda, o Florença, onde se come truta fresca e se tomam boas cervejas artesanais, algumas pousadas (desertas com a pandemia), igreja, pequena vila, chamada Maria, a piscinona da Lurdes, um campo de futebol, um empório, o do Horlando, onde você encontra tudo, ou quase tudo. A mulher dele, Dalila, e a filha Camila ajudam a tomar conta e tudo é posto na caderneta, digo no computador. Ali é ponto de encontro, troca de informações, concentração dos times que jogam no domingo no campo vizinho

Todos os dias vinha a pergunta: “Chegaram os móveis da Marcia? E a geladeira?”. Os motoristas de cada caminhão que passava pelo Horlando ouviam a mesma indagação ansiosa: “Trouxe os móveis da Marcia? E a geladeira?”. As festas de final de ano chegavam. Suspense geral. Criou-se um clima, todos inquietos. A estrada de terra para nossa casa passa frente ao Horlando e um dia por ali circulou um caminhão-baú vindo de Lagoa Dourada e Camila gritou: “É a geladeira?”. O motorista respondeu: “Não, são os móveis da dona Marcia”.

Alegria. O caminhão seguiu rumo a nossa casa. Mas sendo estrada de terra, tinha chovido, a carga era pesada, em uma ladeira enlameada, ele atolou. E agora? Bem, o Miguelzinho passou por ali de moto, olhou, viu que eram os móveis, voou em busca do Alci com o trator, desencalharam o caminhão. Este chegou em casa à noite seguido por um bando de gente disposta a ajudar a descarregar. O que deveria ter durado três horas com o motorista e seu ajudante, virou menos de 40 minutos, todo mundo levando mesa, cadeiras, sofás, colchões, armários, rindo e brincando. Foi linda a solidariedade, a disposição, o companheirismo. Sentimo-nos aceitos.

Passamos o Natal sem geladeira. Certo dia, passou pelo Horlando uma caminhoneta com uma geladeira na traseira. Tomou nosso caminho. Camila deu o alerta: “Chegou a geladeira da Marcia”. Teve gente que veio verificar. Quem veio, tomou cerveja. Preciso dizer que um dia trouxe um livro meu para o Horlando. Ele tirou uma foto, ampliou, está no “shopping”, alertando que sou imortal em duas academias, a Paulista e a Brasileira. Pretendo trazer livros para todo mundo, montar uma biblioteca aqui que será cuidada pela Vitória, que adora literatura. Ah, sim acabaram de trazer amendoim e pinhões recém-colhidos. Este é um Brasil cordial que ainda existe.

Lembrem-se:

Faixa negra nas janelas no Movimento Luto pela vida.

A mitologia do mito Jair Bolsonaro

Soldados são treinados para matar, e, eventualmente, morrer pela pátria. Não têm adversários, têm inimigos a exterminar, missões a cumprir e ordens a obedecer. Foi essa a formação de Bolsonaro, que, com seu negacionismo, sua incompetência e seu autoritarismo, já ajudou a matar mais de 300 mil brasileiros. Como teve 55% do eleitorado, mais de 160 mil mortos eram seus eleitores. Esses mortos não são números, têm famílias, amigos, companheiros de trabalho, que também morrem um pouco a cada perda, atingidos pela dor individual e coletiva. Já que a realidade está insuportável, vamos estudar a mitologia do mito.

O mito da integridade — Foi acusado de planejar explodir bombas em quartéis por aumento de salário, chegou a ser preso, foi julgado, considerado culpado numa instância inferior e, inocentado pelo Superior Tribunal Militar, acabou na reserva. Já em seu mandato de deputado, empregou um batalhão de parentes e amigos e há indícios do esquema de rachadinha, que anos depois ganhou evidência, administrado por seu amigo de longa data Fabrício Queiroz, com seu filho.


O mito do anticorrupção — Participou do desmonte da Lava-Jato, uniu-se ao Centrão e seus inúmeros réus e investigados por corrupção. Tirou o poder, e até o nome, do Coaf. Tem obsessão por “inteligência”, informações e espionagens, não para investigar corruptos, mas para controlar seus inimigos reais e imaginários. Seu filho Flávio está sob investigação judicial justamente por rachadinha. Outros indícios de irregularidades pesam sobre seus outros filhos.

O mito da autoridade — Ele confunde autoridade com autoritarismo. Não dialoga, manda. O chefe sou eu. Sou eu que mando, porra. Ele quer ter autoridade sem assumir a responsabilidade, minimizando a pandemia e sabotando a vacinação, capaz de cancelar a compra de 46 milhões de doses da “vacina chinesa do Dória”. Ou quando ignorou propostas da Pfizer e agora tem que comprar por preço que pode ser muito mais caro e ficar no fim da fila para receber.

O mito da coragem — Tem comportamento paranoico, vê inimigos e conspiradores em toda parte, mas na verdade é covarde, abandona companheiros por futricas dos filhos, como fez com Gustavo Bebiano, e com quem ousar contrariá-lo. Sem a facada teria sido desmitificado nos debates na TV até pelo Cabo Daciolo.

O mito do líder — Depois da submissão a Trump, sem proveito para o Brasil, fala insanidades contra parceiros como a China e depois tem que desmentir tudo e mendigar vacinas. Vive dizendo que é fácil instalar uma ditadura no Brasil, mas precisa combinar com o Congresso, o Judiciário e 70% da população que não o apoia. Nenhum presidente brasileiro foi tão debochado e ridicularizado no exterior como ele. Com ele o Brasil se tornou um pária internacional — e um perigo para a América Latina.

O mito da verdade — Seu lema é “a verdade vos libertará”, mas ele é de longe o presidente mais mentiroso que o Brasil já teve, e foram muitos, é quase um requisito para o cargo. Só que mente mal, são mentiras toscas, bravatas ridículas, e todos percebem que o mito é um mitômano, que as vezes parece viver em uma realidade paralela sob efeito de alucinógenos.

Funerária Brasil

 


A segunda fase do regime militar

O Brasil tem certa vocação para a invenção. Fomos um país criado a partir de um experimento econômico: o latifúndio escravocrata primário exportador. Em nenhum outro lugar do globo tal experimento foi desenvolvido em tão larga escala. 35% de todos os sujeitos escravizados na África e direcionados às Américas aportaram aqui. Fomos também os responsáveis, no século XIX, pela junção singular entre escravismo e economia integrada ao “liberalismo concorrencial”. Mais próximo, conseguimos criar uma ditadura militar primorosa na arte de durar. A mais longa ditadura militar da América no ciclo que começa nos anos 60, capaz de entender que só duraria se preservasse algum nível de pantomima democrática. Tínhamos eleições, partido de oposição, Congresso em funcionamento na maior parte do tempo, tortura, livros de Marx vendidos nas bancas, corpos desaparecidos, estupros de opositoras, censura. Tudo ao mesmo tempo.


Há de se admirar essa engenharia brasileira do terror de Estado. Ela conseguiu preservar todas as peças do dispositivo empresarial-militar, mesmo durante trinta anos de período pós-ditadura. Ela conseguiu ainda preservar toda a força de terror administrada pelas polícias e suas milícias contra as populações vulneráveis em sua guerra civil cotidiana. Elementos fundamentais do aparato jurídico institucional criado sob ditadura continuaram vigentes. O Brasil mostra como nenhum outro país que desenvolvimento capitalista é outro nome para guerra de espoliação máxima, de medo e de depredação contra uma natureza que não se submete facilmente à condição de propriedade privada.

Dentro dessa tecnologia de poder, o Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenção, a saber, um regime militar sem golpe militar. O que temos atualmente é algo muito próximo a um regime militar que não usou golpes militares clássicos para ser implementado. Entenda-se por “clássico” nesse contexto, ocupações de poder feitas através do deslocamento de tropas e uso explícito da violência.

Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário. Por mais que a narrativa vendida seja outra, Jair Bolsonaro é a encarnação direta do ideário militar nacional. Para além dos mais de 7.000 militares na gestão do Estado, desde o Ministério da Saúde, até as Comunicações e a Petrobrás, temos o deslocamento das Forças Armadas para o centro do poder com o intuito de garantir as condições para um processo brutalizado de acumulação primitiva, de espoliação de terras e concentração de renda.

O Brasil assiste a uma nova fase de concentração de renda, e a ameaça de sublevação popular que normalmente acompanha tais momentos, exige das Forças Armadas sua presença direta no Estado, a fim de intensificar a guerra civil contra populações vulneráveis. Essa concentração volta em seus moldes tradicionais, como o colonialismo interno que leva a predação da natureza, escondida sob a capa do desenvolvimento, para espaços cada vez mais amplos. Colonialismo que intensifica os incêndios contra povos originários e florestas.

Processo que, por sua vez, exige a mobilização contínua da perseguição e pressão de setores com potencial de sublevação, no que vemos a utilidade da eterna luta contra o comunismo (o único inimigo que, no século XX, efetivamente foi capaz de usar a guerra contra quem gerencia a guerra civil social). Por fim, as Forças Armadas ocupam o Estado tendo em vista a militarização da vida social, seja através da generalização extensiva de “formações militares” (segundo o projeto de paulatinamente transformar escolas públicas em escolas militares), seja através da organização armada e generalizada de grupos paramilitares de apoio.

Mas isso que nos anos sessenta obrigou a organização de um golpe clássico de Estado foi imposto agora através de uma lógica extremamente astuta de “custo menor”. São sucessões de operações relativamente regionais que, paulatinamente, deslocam o poder para o horizonte gerencial militar, fazendo com que ele avance mesmo que pareça não estar lá. Como já se disse mais de uma vez, uma das maiores astúcias do diabo é levar-nos a acreditar que ele não existe.

Primeiro, era necessário impedir que a eleição de 2018 ocorresse. O custo de uma simples suspensão de eleições presidenciais seria enorme, arcaico, desnecessário. Mas havia algo mais astuto: um tuíte, um simples tuíte das Forças Armadas ameaçando o Poder Judiciário caso o candidato indesejável pudesse concorrer. Além do tuíte, um processo jurídico “contra a corrupção” capaz até mesmo de anexar depoimentos de pessoas que nunca deram depoimento algum. Um processo incensado por setores hegemônicos da imprensa e seus interesses inconfessos pela radicalização do processo de acumulação primitiva da classe trabalhadora espoliada. Assim, a eleição estaria assegurada no bom e velho modelo da República Velha onde os embates já estavam decididos de antemão. Afinal, para que um golpe clássico se a possibilidade de preparar resultados favoráveis está à mão?

Mas a ocupação do Estado exigiria o abandono dos aliados que acreditavam que seriam convidados para sentar à mesa principal da gestão do poder. Como na ditadura militar, quando os civis descobriram que haviam se tornados atores secundários através do veto a Pedro Aleixo ocupar a presidência da República, todos aqueles que pavimentaram esse caminho foram enterrados sob o asfalto que eles mesmos esquentaram. De Eduardo Cunha aos degenerados da Lava Jato, da própria imprensa ao “centro democrático”: todos foram deixados para trás até que acordássemos em um regime militar em pleno século XXI.

Ainda na lógica do “custo menor” havia dois problemas a resolver. O primeiro era a censura. Mas “censura” é, mais uma vez, algo arcaico, custoso e, principalmente, desnecessário. O poder só procura censurar quando teme a força da palavra. Melhor seria operar através de uma “usura” da palavra. Tirar a força da palavra, criar paralisia em seu uso, ao invés de simplesmente censura-la. Uma paralisia criada pela inversão constante de seu significado. Usar “liberdade” para descrever a indiferença em relação ao genocídio de Estado diante da pior pandemia da história recente, usar “ditadura” para descrever exigências mínimas de solidariedade social diante da catástrofe, usar “coragem” quando se quer mostrar o descaso com quem não pode ter acesso ao sistema privado de saúde para sobreviver, usar “doutrinação” onde outros falam de pensamento crítico. Há de se lembrar que era George Orwell quem fazia os habitantes da Eurásia gritarem: “ignorância é força, liberdade é escravidão”.

Se 30% da população participasse dessas estratégias de usura da palavra o processo político estaria paralisado. E não seria difícil contar com esses 30%. Quem conhece a história brasileira sabe que eles nunca faltariam ao seu dever. Enquanto isto, o resto perderia seu tempo a espera de “frentes amplas” que nunca aconteceriam (basta ver quem foi apoiar o candidato do governo nas eleições para a presidência da Câmara) ou discutindo eliminações do BBB na semana em que o Banco Central ganharia sua “autonomia”, ou melhor, sua definitiva servidão aos interesses mais brutais da elite rentista, esses mesmos interesses que são a base da realidade material que sustenta o eixo das formas gerais de espoliação (imaginar que nossa emancipação viria sob formas administradas pela indústria cultural e sua estrutura monopolista articulada aos interesses maiores da elite empresarial … isso talvez explique o que ocorre quando conceitos como “indústria cultural” são abandonados em prol de práticas que se recusam a problematizar os meios de enunciação).

Mas havia um segundo problema a resolver. Um regime militar não aceita ser deposto. E este ponto volta agora em sua tensão efetiva, principalmente depois da possibilidade de Lula concorrer à presidência novamente. O Brasil conhece atualmente um conflito entre o que poderíamos chamar de “direita oligárquica” (a saber, esse grupo dirigente que deriva das oligarquias locais e seus representantes, a começar pela oligarquia paulista) e uma “extrema-direita popular” (que vem da longa história do fascismo brasileiro). O horizonte convergente de interesses permite a esses dois grupos sentarem-se à mesma mesa quando necessário. Mas tomado o poder, eles também entram em choque, como se mostrou ao longo da história nacional.

O deslocamento de Lula para o centro do jogo eleitoral não foi exatamente resultado de uma pressão popular irresistível, de um clamor irrefreável, mas de uma manobra arriscada de setores da direita oligárquica no poder para conter Bolsonaro em sua escalada fascista, como fizeram em junho quando Queiroz foi enfim “encontrado” em um sítio em Atibaia e o primeiro “enquadre” foi dado.

Com a vitória de Bolsonaro pelo controle da Câmara e do Senado e com sua liberdade absoluta de operação, era necessário um segundo enquadre, e ele foi dado através da ressurreição do único político com estatura eleitoral compatível com Bolsonaro e que parecia capaz de fazer, efetivamente, uma aliança de centro no Brasil com alguma estabilidade. Exatamente nesse momento, o poder Judiciário brasileiro “descobriu” que, afinal, o processo contra Lula era uma aberração jurídica e que ele nunca teve direito efetivo de defesa. Lula apareceu como o único capaz de fazer uma efetiva aliança de centro porque os outros fazem apenas acordos entre oligarcas sem muita densidade popular. Já ele opera por uma versão do “sindicalismo de resultados” que parecia poder funcionar no começo desse século. Por isso, falar em “polarização” chega a ser um desrespeito à inteligência nacional. Lula é a última figura capaz de tentar operar políticas de grande aliança no Brasil. Ele é exatamente o contrário de toda e qualquer “polarização”. Seu governo não nos deixa mentir.

No entanto, como foi dito anteriormente, um regime militar não aceita ser deposto. Em manifestações inéditas na vida política nacional, o dia seguinte ao anúncio de possibilidade de Lula concorrer foi marcado por declarações de militares dizendo ver a volta do ex-presidente como algo inaceitável. O que demonstra como caminhamos para um cenário de confronto e tensão. Quando a ditadura militar foi implementada em 1964, o “centro democrático” (sempre ele) se preparava pela eleição nos próximos anos: Juscelino era o nome principal nessa operação. Tal eleição nunca veio. Sessenta anos depois, os militares aprenderam a fazer isso muito melhor. Eles descobriram que o vocabulário da “inexistência” é muito mais sutil, se habilmente manipulado. Há de se estar preparado para isto.

Como o Judiciário brasileiro prejudica a si mesmo

Confesso que não saberia citar um único nome dos 16 juízes que compõe o Supremo Tribunal Federal (STF) alemão. Em todo caso, mal conheço juízes ou promotores públicos alemães. Há algumas exceções: autores que, paralelamente à sua atuação como juízes, escrevem livros interessantes e ensaios para jornais. Compartilho minha ignorância sobre o pessoal do sistema judiciário alemão com a maioria dos alemães, a menos que eles próprios sejam juristas. O terceiro poder costuma atuar de forma discreta e imperceptível na Alemanha, com os juízes raramente aparecendo na mídia e suas decisões raramente sendo discutidas em público. A maioria dos juízes na Alemanha traça uma linha clara entre seu trabalho jurídico e suas visões políticas. Eles atuam nos bastidores.

No Brasil é o contrário. Sei os nomes de todos os 11 juízes do STF brasileiro. Conheço suas feições, suas escolhas e seus temperamentos particulares. Isso se deve ao fato de suas decisões, muitas vezes controversas, serem discutidas quase diariamente no Brasil. Ora são aplaudidas pelo público, ora há uma manifestação contra elas. Alguns juízes recebem até ameaças pessoais.


O que chama a atenção nisso tudo é o quão inconclusivos são com frequência até mesmo os julgamentos da Suprema Corte. Um juiz dá um veredicto monocrático, mas que pode ser anulado por um plenário de juízes. Nas discussões do STF, costuma haver muita exaltação. Os juízes se atacam pessoalmente e até se tornam ofensivos. Como se fosse realizado um Fla-Flu no STF.

Mas não só os juízes do STF me são familiares, como também os membros do Judiciário brasileiro de instâncias inferiores. Por exemplo, o juiz Marcelo Bretas, que posta selfies na academia e aparece nos eventos de Jair Bolsonaro. Outro exemplo é a desembargadora do Rio Marília de Castro Neves, que ficou conhecida em todo o Brasil pelas mentiras sobre Marielle Franco, mas que já havia causado rebuliço nas redes sociais por suas posições radicais. Ou o desembargador Eduardo Siqueira, de São Paulo, flagrado ofendendo um Guarda Civil Municipal, após ser multado por não utilizar máscara. Discrição, contenção e modéstia não são os pontos fortes do Judiciário brasileiro. A Justiça do país tem pouco decoro.

Mas de onde vem a postura triunfante de muitos juízes e o papel de destaque que eles acham que devem desempenhar em público? Na minha opinião, tem a ver com privilégios. Até ao momento, ninguém soube me explicar, por exemplo, por que é que os juízes, com seus salários já suntuosos, também recebem auxílio-moradia. Em um país com salário mensal médio de R$ 1.900 líquidos, esse privilégio contradiz qualquer bom senso. No Brasil, juízes (mas também deputados e senadores) são tratados como nobres. Como resultado, alguns deles se comportam como nobres.

Também chama a atenção que muitos juízes e promotores não façam uma distinção clara entre seu trabalho jurídico e político. Isso ficou extremamente evidente durante a investigação da Lava Jato contra Lula e os veredictos finais contra ele. É difícil negar que o promotor Deltan Dallagnol e o juiz Sérgio Moro queriam colocar Lula atrás das grades antes da eleição presidencial de 2018. Dallagnol e Moro contribuíram para o fato de Bolsonaro ser hoje presidente.

E não é apenas no caso Lula que a afinidade política parece ser o fator decisivo nos veredictos de alguns juízes. Por exemplo,o presidente do STJ, João Otávio de Noronha, atendeu aos interesses do governo Bolsonaro em 87,5% das suas decisões individuais. Sob sua liderança, o STJ invalidou, por exemplo, a decisão do juiz Flávio Itabaiana contra Flávio Bolsonaro por considerá-la sucinta.

O aparecimento quase diário de juízes e suas decisões na mídia sugere duas coisas. Em primeiro lugar, a politização do Judiciário brasileiro. O STF, em particular, tornou-se um ator no cenário político polarizado do país. Isso foi possível porque sua função não está claramente definida. E isso não é bom para o STF, nem para a confiança na Justiça brasileira.

Em segundo lugar, muitas vezes me parece que as leis são tão mal feitas que podem significar qualquer coisa. É claro que as leis sempre estão sujeitas à interpretação, mas no Brasil parece que, para cada parágrafo, há um parágrafo diferente que significa exatamente o contrário. É como na Bíblia, que no Antigo Testamento diz "olho por olho", mas no Novo Testamento, Jesus ensina a oferecer a outra face quando se é agredido. O Judiciário brasileiro atua de forma semelhante. Cada um escolhe o que quer. É muito difícil fazer o público entender isso.

É completamente incompreensível para mim, por exemplo, por que o juiz Edson Fachin só percebeu depois de vários anos que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era o foro competente para julgar Lula. Mas completamente absurdo é o fato de essa decisão de Fachin ainda poder ser revogada por um plenário de cinco juízes – por que este mesmo plenário não decide de uma vez? Isso mina a autoridade que deveria emanar de uma Suprema Corte.

Em última análise, o Judiciário brasileiro prejudica sobretudo a si mesmo com os privilégios aristocráticos de alguns de seus representantes e a falta de clareza de suas decisões. E assim, contribui para a perda de confiança dos cidadãos no Estado.
Philipp Lichterbeck

A cara do fascismo digital

Há um aspecto da composição do governo Jair Bolsonaro muito pouco discutido. É como, na linguagem que usa para se apresentar ao mundo digital, transmite uma ideologia neofascista. O motivo por que se fala tão pouco desse lado é porque esses códigos são realmente pouco conhecidos. Mas é também porque parte da lógica da extrema-direita digital está, paradoxalmente, em se disfarçar enquanto se apresenta com clareza. É o que, na internet, se chama trollagem. E é o que o assessor Filipe Martins fez esta semana no Senado Federal, durante a sabatina do chanceler Ernesto Araújo.

Essa cultura se construiu ao longo das últimas décadas nos muitos fóruns em que jovens de direita, principalmente de extrema direita, se encontram na internet. Um deles, o mais célebre, é o 4chan. Sua versão radicalizada é o 8chan. Há redes sociais exclusivas da direita, caso da Gab. E há, claro, o submundo da internet — a Deep Web. Não foi nesses ambientes que a cultura troll nasceu. Mas foi neles que ela se desenvolveu.

O comportamento do troll é uma tentativa de humor. Ele ironiza alguém, ataca alguém, faz piada na cara de alguém — mas esse alguém não percebe. Quem percebe são os outros trolls em volta. É algo particularmente masculino, tipicamente adolescente. A piada interna que os amigos entendem, quem está em volta não percebe. O jogo ganha escala quando alguém de fora acusa ter compreendido a mensagem. Nesse momento, o troll nega. Diz que é delírio.

A diferença entre o adolescente e a extrema-direita é que a mensagem do neofascismo é xenófoba, é violenta, é antidemocrática. O gesto de Filipe Martins, o símbolo de O.k. americano apresentado de cabeça para baixo, quer dizer White Power. Poder Branco. É o grito da Ku Klux Klan contemporânea. Os outros supremacistas brancos conhecem o código e sabem do que se trata. Mas é um gesto tão parecido com o de um O.k. que, quando flagrado, o troll logo diz que era só um movimento de mãos inocente.

A alt-right digital está cravada de códigos assim. O ato de beber leite, por exemplo. Há uma característica genética de caucasianos que torna, para eles, mais fácil digerir lactose quando adultos. Daí que, quando vários homens adultos bebem leite juntos, nos círculos dessa alt-right, estão celebrando ser brancos. Numa de suas lives no ano passado, o presidente Jair Bolsonaro e seus assessores beberam leite juntos. Quando questionados, negaram a simbologia, fizeram troça. Mas, nos círculos da extrema-direita, aquilo foi interpretado como o que é: o sinal de que “é um de nós”.

Filipe Martins é pródigo nesse comportamento. Num tuíte recente para o vereador Carlos Bolsonaro, falou espanhol. “¡Ya hemos pasao!” — a expressão que os soldados franquistas usavam em resposta ao grito comunista de “¡No passarán!” durante a Guerra Civil. Mais de uma vez citou o mote latino “Oderint dum metuant”, lema do grupo neonazista britânico Combat 18 — “Que nos odeiem, desde que nos temam”. Na imagem principal de seu perfil de Twitter, estão os versos do grande poeta galês Dylan Thomas: “Do not go gentle into that good night”. Não mergulhe docilmente naquela boa noite. É a frase com que um velho frequentador do 8chan, o terrorista que matou mais de uma dezena na Nova Zelândia há dois anos, abriu seu manifesto.

Não há acidente em tanta frequência. Não quando vem de um especialista em comunicação digital, que passou a juventude enfurnado nos cantos da direita on-line e conviveu num ambiente de trolls. Parte da maneira como o governo Bolsonaro escolhe se comunicar on-line é esta. A dos símbolos do fascismo cibernético.

A peste e a supremacia

O enfrentamento da pandemia tem uma orientação ideológica. Gestos de supremacia podem indicar o código para atos praticados deliberadamente. Nascida no século XIX, em um momento rudimentar do cientificismo, a ideia de uma raça biologicamente mais forte, que deve dominar os demais e levá-los à morte quanto antes, gerou estudos falsos e movimentos genocidas como o Nazismo. Machado de Assis ridiculariza esta ideologia supremacista na figura de Quincas Borba (título de seu romance de 1891), personagem que cria a teoria do Humanitismo, ironicamente o inverso do Humanismo. Diz o filósofo ensandecido: “Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição [...]. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. A frase final, famosa, guarda a ideia de um grupo que, pela destruição do outro, vai garantir a sua sobrevivência em momento de escassez.


Mais premonitória impossível do que esta teoria. Durante o nazismo, prevendo falta de alimentos, e movido pelo desejo sem traumas de destruir os judeus, Hitler criou os guetos, prendendo neles o maior número possível de pessoas. Os guetos foram o primeiro sistema de extermínio em massa. Neles, a população vivia a fome, a falta de batatas, e sofria todos os tipos de doenças, principalmente o tifo. Populações inteiras foram dizimadas assim, “espontaneamente”, dando aos vencedores nazistas, naquele momento, o acesso às batatas. Só depois, para aumentar a escala da destruição, se criaram os campos de concentração e os terríveis campos de extermínio em escala industrial.

O tratamento dado à pandemia do coronavírus pelo Governo Federal parece reproduzir a máquina názi. Deixar a população mais frágil desassistida, sem vacinas, sem campanhas de conscientização e de isolamento, expostas à contaminação num país que virou um grande gueto, principalmente para a classe trabalhadora ou em estado de rua, não deixa de ser um projeto consciente. Os mais fortes sobreviveriam, pois têm “históricos de atleta” ou podem usar o sistema de saúde ou ainda fazer o isolamento, enquanto os mais fracos serão ceifados pela doença. Não se trata de negligência por parte do governo federal e de seus apoiadores, nem mesmo de uma falta de capacidade de gestão. É a atitude que se assemelha a um projeto eugênico de eliminação do outro. A pandemia teria sido instrumentalizada para fazer a “limpeza” dos mais fracos.

Em seu romance A Peste (1947), o francês Albert Camus diz que o nazismo era o vírus que destruiu a Europa, tendo este movimento ficado conhecido entre os franceses como “a peste marrom”. O Nobel sul-africano J.M. Coetzee, em Ensaios Recentes (Carambaia, 2020), lembra a “facilidade com que uma comunidade pode ser infectada por uma ideologia que atua como algum bacilo” . O que vivemos, sob a disseminação da Covid-19 não apenas consentida mas incentivada pelo Governo Federal, com mudanças de narrativas para não fazer o investimento em vacinas, encaixa-se como projeto de extermínio de populações identificadas como uma força humana e política inimiga. A perda de controle deste suposto projeto supremacista, uma vez que todo o espectro social e biológico (jovens e idosos) acabou atingido, tem levado a tentativas de correção de rotas.

Durante o período das ditaduras da direita na Europa, o Brasil criou um movimento similar, o integralismo, versão tupiniquim do nazifascismo. É este bacilo, a peste verde-amarela, que tomou de assalto o país com seus delírios de supremacia racial.