São 300 mil mortos, e estamos todos exaustos. Há um ano, era previsível que chegaríamos a 300 mil mortos, e estamos todos exaustos. Em 2018, já era possível antever o horror que seria o governo de Jair Bolsonaro, e estamos todos exaustos. Temos ainda meses duros pela frente e estamos todos exaustos. A angústia nos asfixia, e estamos todos exaustos. O medo nos oprime, e estamos todos exaustos. Mas exaustão não é sinônimo de tudo poder fazer. A exaustão não implica insensibilidade. A exaustão não pode determinar como tratamos pessoas que sequer conhecemos ou que mal sabemos como são e como pensam.
Como economista, estou exausta. Exausta de alertar, junto a outras vozes, que o Brasil estava caminhando para a tragédia dos corpos empilhados e asfixiados, das covas comuns e dos contêineres para os mortos, dos entubados nos corredores amarrados às macas sem sedativos, dos parentes aos prantos nas portas dos prontos-socorros. Das pessoas que morrem sozinhas, ainda que a realidade seja a de que todos nós, um dia, também vamos morrer sozinhos. A morte não permite acompanhantes, seja em que condições for. Sei disso, vivi isso junto ao leito de morte de meu pai há 30 anos, em um hospital, segurando sua mão. Ali estava ele, sozinho.
Tudo isso é muito duro. Tudo isso resulta da combinação entre o vírus, o descaso e as políticas intencionais do governo de fazer morrer. Como já escrevi neste espaço, essas políticas incluem a pauta econômica de Paulo Guedes, a pauta que é sempre poupada perante o descalabro. Tivemos, mais uma vez, o vislumbre de como se protege a pauta mesmo diante do colapso — começou no domingo e adentrou a semana a repercussão da carta que acertou e se esquivou em igual medida.
A dureza do momento não justifica a falta de civilidade no trato, a ausência da gentileza e da empatia. Ela tampouco justifica a frieza da economia perante os mortos. A economia conforme praticada no Brasil, que resolveu até o último instante se omitir, terá de ser dissecada no futuro para que seu papel nessa catástrofe seja plenamente compreendido. Afinal, não foram poucos os economistas que se omitiram. Muitos falaram, muitos sofreram, quiçá muitos tenham perdido amigos e entes queridos. Mas a economia como praticada no Brasil hipnotiza muitos de seus praticantes e os torna zumbis do custo-benefício, do cálculo diante de uma crise humanitária. O cálculo da dívida que cresce, do déficit que engorda, da inflação que sobe. Até que esses cálculos esbarram na realidade da morte. Da morte ao lado, pois os hospitais já não têm mais leitos e o dinheiro não permite que dela se salve. A paúra.
É grande a paúra quando nos defrontamos com a inevitabilidade de nossa transitoriedade. E talvez isso explique por que a economia, tal qual praticada no Brasil, não tenha capacidade de dar conta, de fazer a conta, da morte.
Durante esses últimos 12 meses, falei da morte. Não de forma aberta, mas implícita. A chamada de atenção para a morte, ou melhor, para como evitar os falecimentos desnecessários, esteve em cada palavra que escrevi e proferi. Esteve no que disse logo no início da pandemia: será longa, será dolorosa, preparem-se. Esteve em minha defesa do auxílio emergencial como medida de saúde pública. Esteve nas repetições infindáveis das mesmas ideias, com palavras distintas a cada vez. Contudo, nada é mais forte do que um governo que não apenas não se importa com as mortes evitáveis, mas as abraça. Disso faz parte o Estado Mínimo de Guedes. Disso faz parte a recusa em renovar o auxílio emergencial no ano passado. Disso faz parte a negação de que o Brasil sofreria uma nova onda da pandemia pior do que a primeira. Disso faz parte a tentativa de desmontar o SUS e de deixá-lo subfinanciado. Disso faz parte a insistência na votação da autonomia do Banco Central antes da aprovação do auxílio. Disso faz parte a tentativa de atrelar o auxílio a uma PEC cujos problemas são muitos. Sobre isso a carta dos economistas cala.
Nestes 12 meses me senti, ao mesmo tempo, impotente e capaz. Nestes 12 meses sofri ataques e ridicularizações de colegas de profissão. Não foram discordâncias sobre o que expunha, mas adjetivos que continuam guardados: “Macroeconomista de jornal”; “Tudóloga”; “YouTuber”. Teve também “essa daí é muito burra” e afins. Estou exausta da economia no “Brasil”.
Choro pelo Brasil, mas não deixarei de escrever. Tampouco de ficar exausta por todas as pessoas que merecem minha exaustão e pelo punhado que jamais a mereceu.
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