segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Aquilo deu nisto

Em uma conjuntura eleitoral em que a retórica irresponsável insinua fraudes e ameaças de golpe, e se soma a mentiras em cascata, repete-se a pergunta: como chegamos a este ponto?

É que as coisas têm consequências concretas. É claro que escolhas levianas causam efeitos desastrosos. A falta da reforma política impede a renovação. O Congresso votou absurdo atrás de absurdo. O STF desencavou firula após firula para não deixar mudar nem punir poderosos. Inevitavelmente, de erro em erro, aquilo lá atrás deu nisto aqui.

Veja-se o incêndio do Museu Nacional. Não se trata de apontar culpados e crucificar o reitor ou propor a privatização das universidades, como os melindres distorceram as análises frias. Mas é impossível não atentar para prioridades equivocadas quando, como calculou a BBC, toda a verba aplicada este ano no museu daria para cobrir os gastos de 15 minutos do Congresso Nacional — ainda que ninguém esteja propondo seu fechamento. Alguma coisa está errada nisso. Que tal comparar? Que percentual coube a todos os nossos museus, em relação ao que o BNDES deu a Joesley Batista? Como não perceber que tantas carências fundamentais têm a ver com a desastrosa “nova matriz econômica” de Dilma e Mantega?

A corrupção pesa, sem dó: só o que o ex-diretor da Petrobras Pedro Barusco devolveu, como parte do acordo de delação premiada, daria para cobrir os gastos de 640 anos do museu, baseado no que recebeu em 2017.

E o atentado a Bolsonaro? Somou-se a tiros no ônibus de Lula, pedradas, truculência com manifestantes. Como se alimentou essa exacerbação das discordâncias, em nível tão hostil e raivoso? A escalada verbal corrói a política. Qualquer eleito precisa ser capaz de negociar com os perdedores, de modo a poder governar. Não é possível que cada aceno ao entendimento seja demonizado. Ou cada ideia divergente na busca de saídas gere xingamento e fúria.

Um clima desses tem consequências nefastas. Nele todos irão perder, mesmo os aparentes vencedores.

Pensamento do Dia


A vingança anunciada de Lula

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, negou pedido de seu antigo parceiro do Trio Ternura da Segunda Turma Ricardo Lewandowski, que requereu o agendamento da votação de duas ações que podem mudar a jurisprudência da autorização para prisão após condenação em segunda instância. Isso não quer dizer necessariamente que o ex-advogado de José Dirceu, do PT e da União no primeiro mandato de Lula tenha mudado de opinião sobre o tema. Ele continua firme ao lado de Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Gilmar Mendes na defesa da volta ao status quo ante, que, numa interpretação duvidosa do artigo 5.º, inciso VII, da Constituição, subordinava o começo do cumprimento de pena ao chamado “trânsito em julgado”. Ou seja, que os quase infinitos recursos sejam julgados, o que leva a pena para as calendas.

O que pode ter motivado a negativa de Toffoli, confirmando sua afirmação anterior à posse de que não agendaria a discussão para mudança da jurisprudência, deve ser certa trégua que achou conveniente propor à sociedade e aos agentes do Estado. Mas a pressa e o despudor com que o ex-revisor do mensalão agiu dão a entender que pode ser uma tentativa de servir de pretexto para que o ministro que nunca passou num concurso público para juiz se sinta estimulado a quebrar a promessa. De qualquer maneira, tanto a transferência do julgamento do recurso contra a decisão adotada em abril pelo plenário do próprio STF de não soltar Lula do plenário virtual (na prática, automático e pacificado) quanto a pressão para o agendamento das ações pedindo relaxamento de prisão de condenados em segunda instância são sinais claros de que a bancada do PT na cúpula do Judiciário quer aproveitar-se de todas as oportunidades para mandar Lula de volta ao lar, doce lar. E não está de todo afastada a hipótese de que Toffoli não ceda a essa pressão, “docemente constrangido”.

Nesse panorama é que tem sido noticiada outra decisão sôfrega e trêfega do ministro do Supremo que não hesitou em rasurar a Constituição para permitir que, mesmo deposta por impeachment, Dilma Rousseff não tivesse de cumprir quarentena de oito anos sem cargo público após o julgamento dos delitos que a apearam do poder. Refiro-me ao fato de o mesmo ministro Ricardo Lewandowski haver autorizado o protagonista do habeas corpus em questão, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a conceder uma entrevista à colunista social Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo. A informação foi confirmada na sexta-feira 28 de setembro pela assessoria do magistrado à agência de notícias Reuters e foi devidamente divulgada por ampla cobertura nos meios de comunicação e redes sociais. Essa foi a primeira decisão favorável a Lula desde que ele foi preso em abril deste ano, após condenação no processo do triplex no Guarujá (SP).

O ex-presidente também teve, durante a campanha eleitoral, até ter sua candidatura ao Palácio do Planalto barrada pela Lei da Ficha Limpa, todos os pedidos anteriores para falar com a imprensa rejeitados.

O resultado final da votação para mudar, ou não, a jurisprudência em questão dependerá do fiel da balança representado pelo voto da presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rosa Weber. Ela tem votado contra o habeas corpus, negando sua convicção pessoal e apoiando a decisão do colegiado. Resta saber como votará se for posta sobre o prato da balança a possibilidade de mudar a jurisprudência com nova maioria.


Convém chamar a atenção para a proximidade do primeiro turno da eleição, marcado para o domingo 7 de outubro, para o qual o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, aparece nas pesquisas como segundo colocado e, portanto, forte candidato a passar para o segundo turno. E não será leviano imaginar como essa pressão poderá fortalecer-se caso isso venha a ocorrer e, mais, o ex-prefeito de São Paulo vença a disputa final contra o primeiro colocado agora, Jair Bolsonaro, do PSL, da extrema direita. Antes mesmo de se concretizarem tais hipóteses, convém alertar aqui, mais uma vez, para o plano de vendetta armado para aproveitar a coincidência de dois petistas no poderoso comando de dois Poderes da República: o próprio Haddad e o supracitado Toffoli.

Não é absurda a hipótese de, caso Fernando Haddad seja de fato eleito, Lula sair da cadeia e os procuradores da Lava Jato entrarem no lugar dele.

Em sua primeira entrevista como presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli disse que ”o STF sempre deu suporte à Lava Jato, vamos parar com essa lenda urbana, com esse folclore”. Mas Josias de Souza, colunista do UOL, garante que a recente tentativa de enquadramento do procurador da República Deltan Dallagnol, chefe da força tarefa da Operação Lava Jato, foi resolvida numa troca de mensagens por WhatsApp, instrumento, no mínimo, inusitado de decisões jurídicas, entre o presidente do STF e o corregedor nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel. Conforme foi noticiado pelo Estadão, este “comunicou a Dias Toffoli a abertura de Processo Administrativo Disciplinar contra o procurador Deltan Dallagnol”. Josias completou a notícia com um detalhe: numa mensagem o ministro mandou ao procurador um link com as críticas do colega deste no Paraná publicadas no jornal. Na resposta, Rochadel foi solícito ao responder também pelo celular e informar que estavam sendo tomadas as “providências pertinentes.” Toffoli respondeu: ”Grato”.

Tudo isso depois de o mesmo corregedor haver tentado censurar outro procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, recomendando que evitasse “mencionar pessoas investigadas por ele e outros membros em publicações nas redes sociais e na esfera privada”.

Segundo o site O Antagonista, que deu a informação acima, “Orlando Rochadel Moreira é amigo de Ela Wiecko e foi procurador-geral de Justiça de Sergipe, durante o governo do petista Marcelo Déda. Déda morreu em 2013, mas o petismo do censor de Carlos Fernando dos Santos Lima continua bem vivo.”

No Jornal Eldorado da sexta-feira 28 de setembro, comentei notícia divulgada pelo site BR18 segundo a qual, “na agenda de divulgação de seu livro, o ex-presidente do PT e ex-chefe da Casa Civil no primeiro governo de Lula, José Dirceu, passou o que talvez possa ser considerado um aviso”. Fê-lo ao responder ao diário espanhol El País sobre a possibilidade de o PT ganhar as eleição e “não levar” por causa da oposição da direita.

Reproduzo aqui a resposta de Dirceu: “Acho improvável que o Brasil caminhará para um desastre total. Na comunidade internacional isso não vai ser aceito. E dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição”. Foi, segundo ele, por essa falta de força que medidas como uma reforma tributária não foi feita nos 13 anos de governo petista. “Tem que acumular força. Eles (a direita) priorizaram a mobilização popular, deles, da classe média, durante o nosso governo”.

No comentário lembrei a semelhança da sentença do petista com frase atribuída ao então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Luiz Carlos Prestes, quando reconheceu que seus camaradas estavam no governo de João Goulart, mas ainda não estavam no poder. A frase foi, entre outros, um Leitmotiv do golpe militar, puxado por certo general Mourão Filho, que se autodenominava “vaca fardada” e mobilizou suas tropas em Minas para ocupar o Rio de Janeiro, dando início ao movimento que depôs o governo constitucional do petebista gaúcho. Não vejo hoje sinais lúgubres de ruptura institucional como a de 1964, até porque o Mourão Filho atual não comanda tropas e é mais inofensivo do que propagam os temerosos de Bolsonaro levá-lo ao poder e a um autogolpe. Mas não seria prudente descuidar do vaticínio de Dirceu.

Não seria de todo paranóico imaginar que, num eventual governo federal petista a ser empossado em 2019, algum alto funcionário dos Poderes da República e devoto do presidiário de Curitiba, gente do naipe de Haddad, Toffoli e Lewandowski, estivesse disposto a apunhalar as instituições, como Adélio Bispo de Oliveira fez com Bolsonaro em Juiz de Fora. E, em consequência, perseguisse, de forma implacável, os agentes da lei pelos quais afirmam que seu guru é perseguido. Seria o caso de prevenir, porque, com o fato consumado, não haverá remédio para ministrar.

Entre a prisão e o hospital

Do cárcere, um ex-presidente condenado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro manipula o processo político via processos ditos jurídicos, agindo por interposta pessoa, no caso, o candidato Fernando Haddad. No hospital, um candidato atacado, vítima de um ato cruel, sobreviveu e se manteve presente politicamente via redes sociais. O primeiro representa uma esquerda degenerada que descambou para o crime e para o aparelhamento dos Poderes constituídos. O segundo representa o antipetismo, tão ancorado na sociedade brasileira, seja por reação ideológica, seja pela necessidade de uma limpeza da vida pública.

Considerar, agora, uma terceira alternativa não é uma proposta séria, por partir de completo desconhecimento da realidade. Esta está dada, e atente pelo nome da oposição entre petismo e antipetismo, entre defesa da corrupção e seu combate. As artimanhas das últimas semanas, permeadas por ideias de uma terceira via, mais servem para apaziguar consciências desnorteadas que, em nome do politicamente, correto, procuram uma fuga da realidade. Para além da iniciativa tardia, imagine-se a confusão nas urnas eletrônicas, com candidatos que lá estariam e não estariam mais!



Como máscara a acobertar uma suposta “justificativa”, aparece a defesa da democracia contra o “fascismo” e outras bobagens do gênero. De repente, num toque de magia, todos se tornaram “democratas”, até mesmo aqueles cuja longa trajetória se caracterizou pela defesa das ditaduras castrista, de Chávez e de Maduro e, de modo geral, do “socialismo bolivariano”. São democratas da mais alta estirpe, certamente! Isso para não falar da corrosão das instituições democráticas, das investidas contra a Lava Jato e da apropriação de empresas públicas, sendo o caso da Petrobrás o mais emblemático.

Os tucanos merecem um tratamento à parte. Não apenas deixaram de ser uma alternativa ao PT, mas vieram a se tornar uma força auxiliar do petismo. O candidato Geraldo Alckmin bate preferencialmente em Jair Bolsonaro, com uma propaganda caricatural e rasteira. O deputado, que sempre lutou contra o “socialismo bolivariano”, é apresentando como se um Hugo Chávez em potencial fosse! Qual foi o resultado disso? Ajudou a desacelerar o crescimento de Bolsonaro, estancou o dele mesmo, se não caiu, e favoreceu o aumento das intenções de voto em Haddad. O PT agradece e manda um forte abraço lá de Curitiba!

Aliás, o namoro do PSDB com o PT não é de hoje. Remonta a uma suposta afinidade ideológica entre os dois partidos, supostamente em torno de ideias social-democratas, embora os petistas jamais se tenham reconhecido em tal denominação. Ao contrário, não cessaram de criticar a tal da “herança maldita” do governo Fernando Henrique. E o ex-presidente tucano não cessa de lançar palavras amigáveis a Haddad, Lula e congêneres, para além de afirmações feitas realmente por Alckmin, e supostamente desmentidas, de que não votaria jamais em Bolsonaro em segundo turno. Numa eleição polarizada, criticar tão fortemente um candidato significa, evidentemente, balizar o caminho para o outro.

Lula talvez nem esperasse tanto, deve estar emocionado! Após as sucessivas tentativas de aviltar a democracia brasileira e suas instituições, além de ter conduzido o País, com a ajuda de outra “eleita” dele, Dilma Rousseff, a uma crise econômica, social e política de vulto, Lula e seu partido se colocam como“vítimas” e, para algumas “boas almas”, como representantes da democracia. Vítima é o povo brasileiro!

Afinal, quais são as credenciais petistas? O Brasil legado pelos sucessivos governos Lula e Dilma é uma verdadeira ruína. A irresponsabilidade fiscal foi tanta que até agora o PIB encontra dificuldades para crescer, após sucessivas quedas. O desemprego atingiu mais de 12 milhões de trabalhadoras e trabalhadores; a classe média ascendente, tanto alegada por seu novo status, fez o movimento inverso, após ter usufruído uma efêmera bonança.

E o pior de tudo é que esse descalabro vem sendo atribuído pelos petistas ao governo Temer, que ousou enfrentar tal situação. A irresponsabilidade é total, marcada pela completa falta de pudor! A narrativa do “golpe”, num claro artifício demagógico, foi o instrumento utilizado para debilitar as instituições democráticas. É como se Lula não fosse um cidadão qualquer, pairando por cima das leis, como se estas devessem estar a seu serviço.

O desrespeito à leis e à Constituição – só aparentemente respeitadas – conduziu o partido e os seus auxiliares na mídia televisiva e impressa a uma investida contra o Judiciário e o Ministério Público. Isso para não falar das tentativas reiteradas de desconsideração da Lei da Ficha Limpa e de levar o “caso” de Lula, julgado segundo a lei em todas as instâncias dos tribunais brasileiros, a um comitê de Direitos Humanos da ONU, como se tivesse jurisdição sobre o País. O próprio Estado Democrático de Direito foi posto em questão.

Lula e o PT jamais esconderam seus sucessivos projetos de controle da imprensa, denominada “controle social dos meios de comunicação”. Basta substituir a palavra social por petista, para que tenhamos a sua plena significação. Foram e continuam sendo defensores do “socialismo bolivariano” e de Maduro, cuja opressão contra seu povo foge de qualquer parâmetro democrático. A violência e a miséria são suas características centrais.

Neste contexto, uma vítima, convalescendo num hospital, é designada como “fascista” e “ditatorial”, numa curiosa inversão de papéis. Se Bolsonaro veio a se consolidar enquanto alternativa, isso muito se deve às mazelas e arbitrariedades petistas, em paralelo com as dubiedades e incoerências tucanas. Aliás, estes aliados “objetivos” ou escondem ou não compreenderam que a candidatura da “direita” é uma resposta à corrupção, à insegurança que grassa pelas ruas e ao politicamente correto. Estão colhendo o que plantaram.

Como era previsto...

Devia tirar todos os poderes do Supremo e ser só Corte Constitucional. O Judiciário não é um poder da República. Nossa Constituição estabeleceu três poderes, mas só existem dois poderes – dos eleitos, que têm soberania popular, do Legislativo e do Executivo

Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

Fernando Sabino

Paisagem brasileira

Paisagem (1944), Edgar Walter

A marcha do golpismo

O cenário eleitoral protagonizado pelos dois líderes nas pesquisas de opinião, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), um pouco pela soberba de ambos, muito pela ideologia, às vésperas do pleito, ganha características cada vez mais disruptivas, que questionam a ordem democrática do país. Na sexta-feira, em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, Bolsonaro disse que não aceita um resultado no qual não seja o vencedor, afirmou que o Plano B do PT é fraudar o resultado das eleições; em Goiânia, com sinal trocado, Haddad disse que, tão logo seja eleito, convocará uma Constituinte exclusiva para redigir uma nova Constituição. São duas propostas golpistas.


A Constituição de 1988, com todos os seus defeitos, é um pacto político construído para que houvesse uma transição pacífica do regime militar à democracia. Foi obra de muitas mãos, entre as quais as de Ulysses Guimarães. Resultou do esforço de políticos que sobreviveram ao autoritarismo e lideraram o MDB na luta contra o fascismo e a tentativa de “mexicanização” do país por meio da antiga Arena. Essa história é bem conhecida, dispensa maiores comentários. O que importa é registrar que as forças que teceram essa transição se exauriram pela morte da maioria de seus líderes, pelo desgaste e fricção da luta política e em razão do desmantelo revelado pela Operação Lava-Jato.

Hoje, o protagonismo está com quem se opôs ao pacto celebrado na Constituição de 1988. De um lado, o PT, cujos fundadores gostariam que a queda da ditadura se confundisse com a tomada do poder, quiçá uma revolução socialista; de outro, as forças que pretendiam institucionalizar o regime autoritário, com a eleição de um presidente civil no colégio eleitoral, no caso, o então deputado Paulo Maluf. Graças à Constituição de 1988, em nenhum momento essas forças conseguiram impor seus desejos às instituições democráticas. As tentativas nessa direção foram frustradas pelo Congresso. A primeira foi com Collor de Mello, que renunciou ao mandato para evitar o impeachment; a segunda, com Dilma Rousseff, que também foi apeada do poder.

Até agora, a radicalização política no Brasil foi contida por um movimento pendular da sociedade e da elite política, mas nunca houve uma situação de tanta fragilidade do Congresso e da Suprema Corte do país desde a redemocratização. As causas são as mais diversas, da crise da democracia representativa e seus partidos à desmoralização de suas principais lideranças em razão dos escândalos nos quais estão envolvidos. Acrescente-se a isso as mudanças em curso no mundo e a sociedade líquida que emerge com as novas tecnologias, as redes sociais e a substituição da verdade pelas falsas narrativas fake news. É nesse contexto que devemos examinar e nos precaver em relação ao que dizem os candidatos que possam afrontar a democracia.

Bolsonaro joga suas fichas numa decisão de primeiro turno, mas já anuncia que, para ele, a eleição somente terá validade se for o vencedor no segundo turno. Se isso não ocorrer, não aceitará o resultado. Alega que havia uma decisão do Congresso para que o voto fosse impresso, como a segunda via de um cartão de crédito, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) não aceitou a medida. Deduz daí que haverá fraude nas urnas eletrônicas, fato sem precedentes, porque é impossível uma operação dessa envergadura: as urnas são auditáveis, e os votos, computados em cada seção eleitoral, o que exigiria uma rede de cumplicidade gigantesca. A totalização dos votos pode ser checada urna por urna. É impossível rackear todas, simultaneamente, porque funcionam de forma estanque. Esse discurso só tem uma lógica: legitimar uma intervenção militar, a ser comandada pelos generais que compõem seu estado-maior de campanha, o que seria uma quartelada. A proposta de nova Constituição redigida por notáveis, sugerida pelo general Mourão, imposta goela abaixo no Legislativo e no Judiciário, tem tudo a ver com essa visão golpista.

A proposta de Haddad joga lenha na fogueira. Por que convocar uma Constituinte exclusiva quando estamos elegendo os 513 deputados que compõem a Câmara e 54 dos 81 senadores, todos com poder de emendar a Constituição? Eis a razão: o PT não terá maioria no Congresso, cuja renovação não será maior por causa da contrarreforma aprovada pelos grandes partidos, tendo um petista como relator. Não pode mudar as regras de composição dos tribunais superiores, cuja maioria dos membros, diga-se de passagem, foi indicada pelos presidentes petistas. Não terá maioria para estabelecer o controle dos meios de comunicação, interferir nas promoções dos oficiais de alta patente das Forças Armadas, restabelecer o monopólio nacional do petróleo, reverter a reforma trabalhista e mudar as regras das eleições. O golpismo da Constituinte exclusiva está na dualidade de poderes com o Congresso, parecida com a que existe hoje na Venezuela, onde o regime autoritário de Nicolás Maduro convocou uma Constituinte popular porque perdeu as eleições para a Assembleia Nacional.

O caminho do meio

Conquista das liberdades humanas não se pode realizar no desentendimento ou "guerra" dos sexos, nem no preconceito da superioridade total de um sobre o outro, mas na lealdade, na aceitação das responsabilidades em comum, no sofrimento alegremente compartilhado
José Rodrigues Miguéis," É proibido apontar"

Desafio de Bolsonaro e Haddad é sair do gueto

Confirmando-se o cenário esboçado nas pesquisas para o segundo turno da disputa presidencial, Jair Bolsonaro e Fernando Haddad terão um desafio comum. Ambos precisarão retirar suas candidaturas dos respectivos guetos. No tira-teima final, prevalecerá quem for capaz de atrair um pedaço maior do eleitorado que ainda não aderiu à polarização que contrapõe o projeto militar-pentecostal de Bolsonaro ao modelo petista-sindical representado por Haddad.


Bolsonaro e Haddad são os adversários dos sonhos um do outro. Ao incorporar o coro anticorrupção ao repertório de sua banda marcial, o capitão firmou-se como novo polo anti-PT, exonerando o PSDB da função que exercia há seis sucessões. Lula e seu preposto devem tratar a chapa verde-oliva encabeçada por Bolsonaro como uma ameaça à própria democracia. Nessa formulação, o risco da volta dos militares seria mais assustador do que o fantasma do retorno do PT e de suas práticas. Como se o roubo e a compra de apoio legislativo também não ameaçassem o regime.

Surgem sinais de divergência nos dois guetos. Parte do comitê de Bolsonaro acha que seria útil formalizar alianças nos Estados com candidatos a governador identificados com o antipetismo. Menciona-se o caso do tucano João Doria, em São Paulo. Outro grupo avalia que o gesto interessa mais aos potenciais aliados do que a Bolsonaro, que faz da crítica aos conchavos políticos e ao toma-lá-dá-cá uma marca de sua retórica.

No extremo oposto, o pedaço do PT que não morre de amores por Haddad gostaria de impor limites para os entendimentos de segundo turno. O marco fronteiriço seria um flerte com o PDT de Ciro Gomes. Entretanto, teme-se que o preferido de Lula, a pretexto de se firmar como candidato do “campo democrático”, obtenha na cela de Curitiba autorização para ampliar o horizonte da negocição, achegando-se até ao tucanato. Haddad mantém com Fernando Henrique Cardoso relações cordiais.

Embora seja inevitável, a coreografia da negociação interpartidária de segundo turno tende a surtir efeitos limitados nesta disputa de 2018. Num contexto em que a imagem dos partidos está estilhaçada, o que conta é a capacidade do candidato de atrair novos eleitores mesmo sem a intermediação de partidos ou de presenciáveis derrotados. Se o eleitor está sinalizando alguma coisa nesta eleição é que já não se dispõe a fazer o papel de gado.