segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Brasil dos contos macabros


Melhora econômica alimenta instinto autoritário

O populismo, inato a regimes minimamente abertos, costuma ser menos danoso quando a economia vai mal. Os rompantes de Collor, em meio à recessão, redundaram no seu isolamento.

O germe populista, reprimido no primeiro governo Lula e no curto segundo mandato de Dilma, floresceu no período intermediário, marcado por forte alta da renda.

Fernando Henrique lambuzou-se no chamado populismo cambial enquanto a população ampliava seu poder de consumo. Foram dois ou três anos suficientes para ele arrancar do Congresso a reeleição em benefício próprio.

Tudo para dizer que o desafio das instituições brasileiras de neutralizar o elemento populista e autoritário da aventura Bolsonaro vai começar para valer agora, com a perspectiva de aquecimento da atividade econômica.


“Seu Jair” vai colher os frutos de uma correção de rota que se iniciou logo após a reeleição de Dilma e envolveu esforços reformistas de três presidentes e, sobretudo, duas legislaturas na Câmara e no Senado.

A popularidade do presidente parece que, no mínimo, parou de cair. Seu apoio segue firme no Sul e no Sudeste, porção rica e populosa do país.

Não é implausível que as agressões recentes praticadas por Bolsonaro e seu círculo de lunáticos contra organizações que atuam para encabrestar a besta da tirania tenham sido animadas pelo estimulante da melhora econômica.

Daí a importância de haver reação imediata e exemplar a disparates autoritários, como a conjectura sobre a volta do AI-5.

Estoura os tímpanos o silêncio do ministro Dias Toffoli, chefe do Poder guardião dos direitos civis, a esse respeito. Também calado, o procurador-geral, Augusto Aras, reforça a imagem de docilidade ao Planalto.

Quanto mais musculoso o candidato a caudilho, maior a força que as instituições democráticas têm de fazer para mantê-lo acorrentado.

Bastidores da reportagem sobre porteiro

Há momentos em nossa vida de jornalistas em que devemos parar para celebrar nossos êxitos.

Eu me refiro à semana passada, quando um cuidadoso trabalho da editoria Rio levou ao ar no Jornal Nacional uma reportagem sobre o Caso Marielle que gerou grande repercussão. A origem da reportagem remonta ao dia 1° de outubro, quando a editoria teve acesso a uma página do livro de ocorrências do condomínio em que mora Ronnie Lessa, o acusado de matar Marielle. Ali, estava anotado que, para entrar no condomínio, o comparsa dele, Elcio Queiroz, dissera estar indo para a casa 58, residência do então deputado Jair Bolsonaro, hoje presidente da República. Isso era tudo, o ponto de partida.



Um meticuloso trabalho de investigação teve início: aquela página do livro existiu, constava de algum inquérito? No curso da investigação, a editoria confirmou que o documento existia e mais: comprovou que o porteiro que fez a anotação prestara dois depoimentos em que afirmou que ligara duas vezes para a casa 58, tendo sido atendido, nas palavras dele, pelo “seu Jair”. A investigação não parou. Onde estava o então deputado Jair Bolsonaro naquele dia? A editoria pesquisou os registros da Câmara e confirmou que o então deputado estava em Brasilia e participara de duas votações, em horários que tornavam impossível a sua presença no Rio. Pesquisou mais, e descobriu vídeos que o então deputado gravara na Câmara naquele dia e publicara em suas redes sociais. A realidade não batia com o depoimento do porteiro.

Em meio a essa apuração da Rio (que era feita de maneira sigilosa, com o conhecimento apenas de Bonner, Vinicius, as lideranças da Rio e os autores envolvidos, tudo para que a informação não vazasse para outros órgãos de imprensa), uma fonte absolutamente próxima da família do presidente Jair Bolsonaro (e que em respeito ao sigilo da fonte tem seu nome preservado), procurou nossa emissora em Brasilia para dizer que ia estourar uma grande bomba, pois a investigação do Caso Marielle esbarrara num personagem com foro privilegiado e que, por esse motivo, o caso tinha sido levado ao STF para que se decidisse se a investigação poderia ou não prosseguir. A editoria em Brasilia, àquela altura, não sabia das apurações da editoria Rio. Eu estranhei: por que uma fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao presidente? Dias depois, a mesma fonte perguntava: a matéria não vai sair?

Isso nos fez redobrar os cuidados. Mandei voltar a apuração quase à estaca zero e checar tudo novamente, ao mesmo tempo em que a Editoria Rio foi informada sobre o STF. Confirmar se o caso realmente tinha ido parar no Supremo tornava tudo mais importante, pois o conturbado Caso Marielle poderia ser paralisado. Tudo foi novamente rechecado, a editoria tratou de se cercar de ainda mais cuidados sobre a existência do documento da portaria e dos depoimentos do porteiro. Na terça-feira, dia 29 de outubro, às 19 horas, a editoria Rio confirmou, sem chance de erro, que de fato o MP estadual consultara o STF.

De posse de todas esses fatos, informamos às autoridades envolvidas nas investigações que a reportagem seria publicada naquele dia, nos termos em que foi publicada. Elas apenas ouviram e soltaram notas que diziam que a investigação estava sob sigilo. Informamos, então, ao advogado do presidente Bolsonaro, Frederick Wassef, sobre o conteúdo da reportagem e pedimos uma entrevista, que prontamente aceitou dar em São Paulo. Nela, ele desmentiu o porteiro e, confirmando o que nós já sabíamos, disse que o presidente estava em Brasília no dia do crime. Era madrugada na Arábia Saudita e em nenhum momento o advogado ofereceu entrevista com o presidente.

A reportagem estava pronta para ir ao ar. Tudo nela era verdadeiro: o livro da portaria, a existência dos depoimentos do porteiro, a impossibilidade de Bolsonaro ter atendido o interfone (pois ele estava em Brasilia) e, mais importante, a possibilidade de o STF paralisar as investigações de um caso tão rumoroso. É importante frisar que nenhuma de nossas fontes vislumbrava a hipótese de o telefonema não ter sido dado para a casa 58. A dúvida era somente sobre quem atendeu e só seria solucionada após a decisão do STF e depois de uma perícia longa e demorada em um arquivo com mais de um ano de registros. E isso foi dito na reportagem. Quem, de posse de informações tão relevantes, não publica uma reportagem, com todas as cautelas devidas, não faz jornalismo profissional.

Hoje sabemos que o advogado do presidente, no momento em que nos concedeu entrevista, sabia da existência do áudio que mostrava que o telefonema fora dado, não à casa do presidente, mas à casa 65, de Ronnie Lessa. No último sábado, o próprio presidente Bolsonaro disse à imprensa: “Nós pegamos, antes que fosse adulterada, ou tentasse adulterar, pegamos toda a memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano".

Por que os principais interessados em esclarecer os fatos, sabendo com detalhes da existência do áudio, sonegaram essa informação? A resposta pode estar no que aconteceu nos minutos subsequentes à publicação da reportagem do Jornal Nacional.

Patifes, canalhas e porcos foram alguns dos insultos, acompanhados de ameaças à cassação da concessão da Globo em 2022, dirigidos pelo presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, que só cumpriu a sua missão, oferecendo todas as chances aos interessados para desacreditar com mais elementos o porteiro do condomínio (já que sabiam do áudio).

Diante de uma estratégia assim, o nosso jornalismo não se vitimiza nem se intimida: segue fazendo jornalismo. É certo que em 37 anos de profissão, nunca imaginei que o jornalismo que pratico fosse usado de forma tão esquisita, mas sou daqueles que se empolgam diante de aprendizados. No dia seguinte, já não valia o sigilo em torno do assunto, alegado na véspera para não comentar a reportagem do JN antes de ela ir ao ar. Houve uma elucidativa entrevista das promotoras do caso, que divulgamos com o destaque merecido: o telefonema foi feito para a casa 65, quem o atendeu foi Ronnie Lessa, tudo isso levando as promotoras a afirmarem que o depoimento do porteiro e o registro que fez em livro não condizem com a realidade. O Jornal Nacional de quarta exibiu tudo, inclusive os ataques do presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, respondidos de forma eloquente e firme, mas também serena, pela própria Globo, que honra a sua tradição de prestigiar seus jornalistas. Estranhamente, nenhuma outra indagação da imprensa motivada por atitudes e declarações subsequentes do presidente foi respondida. O alegado sigilo voltou a prevalecer.

Mas continuamos a fazer jornalismo. Revelamos que a perícia no sistema de interfone foi feita apenas um dia depois da exibição da reportagem e num procedimento que durou somente duas horas e meia, o que tem sido alvo de críticas de diversas associações de peritos.

Conto tudo isso para dar os parabéns mais efusivos à editoria Rio. Seguiremos fazendo jornalismo, em busca da verdade. É a nossa missão. Para nós, é motivo de orgulho. Para outros, de irritação e medo.
Ali Kamel, diretor geral de jornalismo da TV Globo

O enigma chileno

Dentro da catastrófica quinzena que foi esta para a América Latina –derrota de Macri e retorno do peronismo com a senhora Kirchner na Argentina, fraude escandalosa nas eleições bolivianas que permitirá ao demagogo Evo Morales se eternizar no poder, agitações revolucionárias dos indígenas no Equador–, há um fato misterioso e surpreendente que me nego a emparelhar com os mencionados: a violenta explosão social no Chile contra a alta dos bilhetes do metrô, os saques e a destruição, os vinte mortos, os milhares de presos e, por último, a manifestação de um milhão de pessoas nas ruas protestando contra o Governo de Sebastián Piñera.

Por que misterioso e surpreendente? Por uma razão muito objetiva: o Chile é o único país latino-americano que travou uma batalha eficaz contra o subdesenvolvimento e cresceu nestes anos de maneira assombrosa. Embora eu saiba que os relatórios internacionais não comovem ninguém, recordemos que a renda per capita chilena é de 15 mil dólares anuais (e em poder aquisitivo é de 23 mil dólares, segundo órgãos como o Banco Mundial). O Chile acabou com a pobreza extrema e em nenhuma outra nação latino-americana tantos setores populares passaram a fazer parte das classes médias. Goza de pleno emprego, e os investimentos estrangeiros e o desenvolvimento notável de seu empresariado e seus técnicos fizeram com que seu nível de vida subisse velozmente, deixando muito para trás os demais países da região. No ano passado viajei pelo interior chileno e fiquei maravilhado ao ver o progresso que se manifestava em toda parte: os lugares esquecidos de trinta anos atrás são hoje cidades pujantes, modernas e com nível de vida muito alto, levando em conta os padrões do Terceiro Mundo.

Por isso o Chile quase já deixou de ser um país subdesenvolvido e está mais perto do Primeiro Mundo que do Terceiro. Isto não se deve à ditadura feroz do general Pinochet. Deve-se ao resultado do referendo de 31 anos atrás com o qual o povo chileno pôs um ponto final à ditadura (e em que, além do mais, Piñera fez campanha contra Pinochet) e ao consenso entre a esquerda e a direita para manter uma política econômica que trouxe gigantescos progressos ao país. Em 29 anos de democracia a direita só governou cinco anos e a esquerda –ou seja, a Concertação–, 24. Não é descabido afirmar, portanto, que a esquerda contribuiu mais que ninguém para que aquela política, de defesa da propriedade e das empresas privadas, o estímulo aos investimentos estrangeiros, a integração do país nos mercados mundiais e, claro, as eleições livres e a liberdade de expressão, tivessem levado ao extraordinário desenvolvimento do Chile. Um progresso de verdade, não só econômico, como também ao mesmo tempo político e social.

Como explicar, então, o ocorrido? Para entender é imprescindível dissociar o que se passou no Chile do levantamento camponês equatoriano e das desordens bolivianas pela fraude eleitoral. A que comparar, então, a explosão chilena? Ao movimento francês dos coletes amarelos, antes melhor, e ao grande mal-estar que há na Europa denunciando que a globalização aumentou as diferenças entre pobres e ricos de modo vertiginoso e pedindo uma ação do Estado que a freie. É uma mobilização das classes médias, como a que agita boa parte da Europa, e tem pouco ou nada a ver com as erupções latino-americanas dos que se sentem excluídos do sistema. No Chile ninguém está excluído do sistema, embora, sem dúvida, a disparidade entre os que têm e os que mal começam a ter algo seja grande. Mas esta distância se reduziu muito nos últimos anos.

O que falhou, então? Acredito que um aspecto fundamental do desenvolvimento democrático que os liberais postulamos: a igualdade de oportunidades, a mobilidade social. Esta última existe no Chile, mas não de maneira tão eficaz a ponto de frear a impaciência, perfeitamente compreensível, daqueles que passaram a fazer parte da classe média e aspiram a progredir mais e mais graças a seus esforços. Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que concorra com sucesso com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida. Este não é um problema chileno, mas algo que o Chile compartilha com os países mais avançados do mundo livre. Uma sociedade admite as diferenças econômicas, os distintos níveis de vida, só quando todos têm a sensação de que o sistema, precisamente pelo quanto é aberto, permite em cada geração que haja progressos individuais e familiares notáveis, ou seja, que o êxito –ou o fracasso– esteja no destino de todos. E que isso se deva ao esforço e à contribuição feita ao conjunto da sociedade, não ao privilégio de uma pequena minoria. Esta é, provavelmente, a matéria pendente no progresso chileno, como sustenta, em um inteligente ensaio, o colombiano Carlos Granés, cujas opiniões em grande parte compartilho

A obrigação nesta crise do Governo chileno não é, portanto, de dar volta atrás em suas políticas econômicas, como pedem alguns enlouquecidos que gostariam que o Chile retrocedesse até se tornar uma segunda Venezuela, mas de completá-las e enriquecê-las com reformas na educação pública, na saúde e nas aposentadorias até dar ao grosso da população chilena –que em toda sua história nunca esteve melhor que agora– a sensação de que o desenvolvimento inclui também essa igualdade de oportunidades indispensável em um país que escolheu a legalidade e a liberdade, e rejeitou o autoritarismo. A Justiça tem que estar no coração da democracia e todos têm de sentir que a sociedade livre premia os esforços, e não as conexões e os pistolões.

O segundo homem da “revolução venezuelana”, o tenente Diosdado Cabello, teve a desfaçatez de dizer que todas as mobilizações e tumultos latino-americanos se devem a que um “terremoto chavista” está soprando sobre o continente. Não parece ter se inteirado de que quatro milhões e meio de venezuelanos fugiram de seu país para não morrer de fome, porque na Venezuela socialista destes dias só comem como se deve quem está no poder e seus comparsas, ou seja, aqueles que roubam, traficam e desfrutam dos típicos privilégios que as ditaduras e extrema esquerda (e as de direita, com frequência) concedem a seus súditos submissos. Não é impossível que agitadores venezuelanos, enviados por Maduro, tenham turvado e agravado as reivindicações dos indígenas equatorianos, e até dado uma mão a Cristina Kirchner em seu retorno ao poder, meio oculta sob o guarda-chuva do presidente Fernández, mas, no Chile, certamente que não. Que na cúpula venezuelana celebrem com champanhe francês as dores de cabeça do Governo de Piñera, dá-se como certo. Mas que seja o motor da revolta, é inconcebível, por mais que tenha sido justo a meninada quem queimou vinte e nove estações de metrô de Santiago e fez pichações em favor do socialismo do século XXI (o paradoxal é que esses moleques nem sequer pagam a passagem do metrô: sua carteirinha estudantil os exclui desse expediente).
Mario Vargas Llosa

Alerta messiânico

O que chegou às praias é uma pequena parte do que foi derramado. O pior está por vir, uma catástrofe muito maior que, ao que tudo parece, foi criminosa
Jair Bolsonaro

Bolsonaro dá o PSL como perdido

Com a ressalva que ele tem por hábito dar o dito pelo não dito, ou reformar em parte o que disse ou simplesmente a aderir a ideias opostas às que antes defendia, o presidente Jair Bolsonaro parece ter dada como perdida a guerra pelo controle do PSL.

Tem um novo plano: criar um partido para chamar unicamente de seu. Um partido onde ele possa abrigar algo como duas centenas de pessoas à sua escolha para disputar prefeituras nas eleições municipais do próximo ano.

Por se tratar de um partido novo, não terá à sua disposição a fortuna que abarrota o cofre do PSL, alimentada pelos fundos eleitoral e partidário. Por mês, o PSL abocanha cerca de R$ 12 milhões ou um pouco mais. Sem problema para Bolsonaro.

Em compensação, ele não terá dor de cabeça com candidatos a lhe implorarem por dinheiro, por comando de diretórios, por isso e por aquilo outro. A primeira e a última palavra serão dele sobre quem entrará ou não no partido.

Dos que pretendam ser admitidos, Bolsonaro exigirá alinhamento total com suas bandeiras de luta, disciplina e lealdade. Respeito à hierarquia acima de tudo. Em troca, gravará mensagens de apoio aos escolhidos e permitirá que usem a sua imagem. E é só.

Haverá tempo suficiente para criar um novo partido? Bolsonaro acha que sim. Recolherá pela internet o número necessário de assinaturas de eleitores. Para isso usará o seu e o perfil dos filhos nas redes sociais. Advogados cuidarão do resto.

Que o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, fique com o partido que foi o nono de Bolsonaro em quase 30 anos de vida política. Ele irá para o décimo. E se alguma coisa der errada, procurará outro partido ou então criará mais um. Sem problema.

Relaxe


A política como um pesadelo

Enquanto a mancha se desloca para o Sul e ameaça Abrolhos, já não sei mais se a espero no Rio ou vou ao seu encontro. De qualquer forma, tento manter o foco no desastre ambiental enquanto as loucuras na política se desdobram num ritmo vertiginoso.

No princípio da semana, pensei em dedicar as horas vagas a pensar na questão da linguagem na política, que me surpreende tanto quanto a mancha de óleo. Os deputados do PSL brigam entre si com memes e se insultam usando personagens de história infantil. Se não parasse com as crianças, de vez em quando, não saberia quem é Peppa. Uma das contendoras na luta interna foi chamada de Peppa pelos adversários. Ainda bem que eu já vi as aventuras da porquinha rechonchuda.

Pensei em refletir sobre a nova geração de políticos e como a linguagem da infância ainda está presente no seu imaginário.

Mudei de eixo à tarde. Vi imagens do depoimento de Alexandre Frota na CPI das Fake News. Ele exibiu cartazes com frases do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Era tão escandaloso que fiquei tentado a examinar o avanço da linguagem pornográfica no discurso da extrema direita.

Foi então que vi aquele vídeo das hienas cercando o leão Bolsonaro e pensei em voltar ao universo infantil. Não houve tempo. Eduardo Bolsonaro invocou o AI-5, numa entrevista a Leda Nagle. Voltei aos anos 60 e pensei até em mostrar como as coisas mudaram nesse quase meio século. Desisti desse esforço pedagógico. As pessoas que confundem épocas tão díspares não o fazem por ignorância, mas por necessidade. Constroem um enredo mental para o papel que amariam representar. No caso de Eduardo Bolsonaro, é a vontade de reviver a ditadura, com poder absoluto sobre a vida e a liberdade de expressão dos outros.

Em certas viagens a Ouro Preto, fantasio uma volta ao século XVIII. Mas só por alguns momentos, quando não há carros nem buzina.

Há tempos, quando Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco, foi preso, achei explosivo o fato de ser vizinho do homem que se tornou presidente da República. Imaginei como isso não daria um roteiro para uma série de televisão. Li que o filho mais novo do presidente namorava a filha do matador. Imaginei as possibilidades clássicas dessa história.


Vejo surgir agora um novo personagem dramático: o porteiro do condomínio Vivendas da Barra. Ele é o mais antigo dos funcionários, deve conhecer todos os moradores, seus hábitos e relações superficiais. Sua lembrança do dia da morte de Marielle Franco enriqueceu as fantasias sobre a vizinhança de Bolsonaro com Ronnie Lessa, miliciano, matador e comerciante de armas.

Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília? Por que teria anotado o número da casa buscada pelo cúmplice do matador como se fosse a casa de Bolsonaro? Como pode ter ouvido a voz de seu Jair, sem estar sintonizado com o canal da Câmara dos Deputados, onde Bolsonaro estava naquele momento?

Não vou especular sobre esse mistério, enquanto não ouvir a versão do próprio porteiro. As procuradoras do MP do Rio dizem que ele provavelmente mentiu.

Mas por que um velho e experiente porteiro confundiu duas casas? Para nós que vemos imagens aéreas, elas são todas iguais. Somos traídos pela superficialidade de nossa percepção, como os esnobes que dizem que a caatinga é monótona porque toda a vegetação é igual.

Para ele, certamente cada uma delas tem uma história, desde o tipo de visitas aos pequenos cuidados cotidianos, instalação elétrica, vazamentos, no sentido literal.

Não entendo como pode ter confundido. Mentiu e enganou? Foi induzido? Sua memória funciona bem ou já dá sinais cotidianos de pequenas confusões? Para um roteirista, é relativamente fácil cobrir essas lacunas. Para mim, no entanto, os tempos são desconcertantes. Volto a perseguir a mancha. Também é desconcertante. Mas pelo menos vejo pessoas reais, com as luvas negras de óleo, tentando limpar as praias, proteger corais e mangues.

Desenhos infantis, frases pornográficas, jovens aspirantes a ditador ou mesmo intrincados enredos policiais —tudo é uma espécie de desastre, mas pede outro tipo de voluntariado, equipamento e paciência.

Desculpas não aceitas

Por vezes, quem acompanha a ascensão e os descaminhos do presidente dos Estados Unidos em combustão na Casa Branca é acometido da sensação de déjà-vu ao se confrontar com o noticiário que brota em Brasília. Tomem-se dois exemplos recentes, pinçados do mês passado.

No dia 1º de outubro, Donald Trump alardeara via Twitter que a abertura do atual inquérito passível de desembocar num pedido de impeachment não passava, na verdade, de um golpe para lhe roubar o poder — “ a COUP ”, em maiúsculas, como gritou no teclado. Uma semana depois, num de seus destemperos matinais para microfones no Palácio da Alvorada, Jair Bolsonaro subiu o tom com a imprensa que o contraria. Além dos habituais “patifaria”, “covardia”, “esgoto” com que brinda reportagens independentes, arrostou: “Vocês querem me derrubar? Eu tenho couro duro, vai ser difícil...”

A segunda cena com eco nacional ocorreu na quinta feira, 24 de outubro, quando Trump anunciou o cancelamento pela Casa Branca e todas as agências federais das milhares de assinaturas dos principais jornais do país, o “New York Times” e o “Washington Post”. Criou fato novo quando já se tornara corriqueiro ouvi-lo tratar a imprensa livre de “inimiga do povo”, “traidora da pátria” e “lixo”. Uma semana depois, na quinta 31, Bolsonaro ordenou o cancelamento de assinaturas da “Folha de S.Paulo” em todos os órgãos do seu governo, e advertiu anunciantes do jornal para “prestar atenção”. “Espero que não me acusem de censura. Quem quiser comprar a ‘Folha’, ninguém vai ser punido por isso, manda o assessor dele, vai lá na banca e [...] e se divirta”, acrescentou no habitual linguajar de quem graceja com censura e tortura.

Ultrapassou, assim, a sua média de dois ataques semanais a jornalistas e/ou meios de comunicação desde que assumiu o poder. Melhor nem reproduzir os que foram disparados sem freios de civilidade mínima.

Mal sabe Bolsonaro que quem inaugurou a palmatória simbólico-econômica contra um órgão de imprensa foi o democrata John F. Kennedy, em 1962. O então presidente americano se aborrecera com reportagens críticas do “New York Herald Tribune” e proibiu que exemplares fossem entregues na Casa Branca. Levou um baita pito de um membro do Congresso: “Decisão infantil”, ensinou o republicano Steven Derounian em discurso que consta dos Anais de Capitoll Hill. “Convém o presidente Kennedy lembrar que no dia 20 de janeiro de 1960 ele foi empossado presidente, não coroado rei”. (Detalhe: como JFK não conseguia ficar sem ler o influente matutino, e a internet ainda não existia para ele contornar a própria ordem, coube a seu secretário de Imprensa o ridículo papel de traficar exemplares comprados em bancas para dentro do Salão Oval).

Esta semana, em voo solo mas na mesma rota do pai, Eduardo Bolsonaro, o deputado federal por São Paulo e ex-quase embaixador do clã em Washington, tampouco inovou. Em Washington, Donald Trump tem falado em guerra civil na eventualidade de perder o mandato, o que incentiva seus apoiadores mais extremistas a ameaçar deputados democratas pró-impeachment com mensagens de voz cavernosa: “Já estamos começando a nos organizar... estamos nos preparando, você é meu inimigo....”. No Brasil, o filho 03 invoca o Ato Institucional mais feroz da ditadura militar brasileira como ferramenta a ser cogitada caso a voz das ruas se manifeste em moldes semelhantes às passeatas chilenas que emparedam o governo de Sebastián Piñera. Fez essas declarações em entrevista/palanque à jornalista Leda Nagle, e achou importante peitar a avalanche de reações à sua fala postando um vídeo feito às pressas no qual reafirma suas sombrias convicções. Somente a maciça condenação pública que se seguiu, somada à ameaça de sua imunidade parlamentar não ilimitada, levou o deputado a divulgar um pedido de desculpas “a qualquer tipo de pessoa que tenha se sentido ofendida”. Pelo menos neste espaço, desculpas não aceitas.

É sempre bom lembrar que, segundo o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (sim, “institucional”), a proposta de reformatar o AI-5 em caso de turbulência nas ruas não precisa ser descartada de todo. Apenas exigiria estudos, diz o militar, e precisaria passar “em um monte de lugares”.

Não, no pasará , como diz o clichê gravado pela História. Por mais que a citação ao AI-5 possa ter sido diversionismo para encrencas bolsonaristas, foi um tiro no pé. As encrencas não vão sumir nem o país vai se deixar assustar.
Dorrit Harazim

É melhor ser feliz

O presidente Jair Bolsonaro gastou a manhã de ontem para realizar um sonho de consumo: comprar uma moto. Glamourizadas por Hollywood em filmes como O Selvagem, com Marlon Brando e Lee Marvin, e Sem Destino, com Peter Fonda, Denis Hopper e Jack Nicholson, as motocicletas são símbolos de rebeldia e liberdade, além de um perigoso meio de transporte. Muitas empresas proíbem seus executivos de andarem de moto, hobby de fim de semana de muitos homens e mulheres de meia idade que querem se sentir eternamente jovens. Nas agruras do trânsito, eis o lema do motociclista: é melhor ser feliz do que ter razão.

Na política como ela é, a polêmica criada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre o Ato Institucional nº 5, cuja reedição aventou num caso de hipotética radicalização da oposição, apesar de rechaçada pelo presidente Jair Bolsonaro, aumentou o isolamento político do governo junto aos demais poderes e à sociedade. E reforçou uma polarização política com a oposição, que antecipa o debate eleitoral de 2022, embora tenhamos apenas 10 meses do primeiro mandato do presidente da República. Essa polarização, porém, é artificial. Está descolada do processo político institucional, que se desenrola em dois níveis: as articulações do Congresso para a aprovação das reformas e a preparação das eleições municipais.


No plano político nacional, as questões mais substantivas estão se resolvendo com a aprovação das reformas pelo Congresso, no rastro de um programa de mudanças iniciado no governo Temer (nova Lei das Estatais, Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista). A recente aprovação da reforma da Previdência pelo Congresso, abriu caminho para a reforma administrativa que o governo promete anunciar ainda nesta semana. A reforma tributária, que estava na fila para aprovação, foi engavetada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, por falta de massa crítica na própria equipe econômica sobre o que fazer.

O presidente Bolsonaro e seus filhos atuam de forma diversionista em relação à agenda que mais importa para o país. Suas polêmicas acirram a polarização direita versus esquerda; aparentemente, miram a consolidação do seu projeto de poder, no caso a reeleição, muito mais do que a necessidade de modernizar o Estado brasileiro e a nossa economia. Nesse aspecto, os políticos que lideram o Congresso, entre os quais Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, e Davi Alcolumbre (DEM-AP), atuam com mais responsabilidade, em que pese a campanha permanente dos setores que desejam desmoralizar o parlamento e defendem soluções autoritárias para os problemas nacionais.

No plano eleitoral, o eixo da disputa política direita versus esquerda é falso. O que estará em jogo não é um terceiro turno das eleições passadas, mas a gestão das prefeituras de milhares de municípios. Mesmo nas capitais, que sofrem mais influência do debate político nacional, essa polarização dificilmente ocorrerá. Quem primeiro sacou essa diferença na oposição foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo estando preso em Curitiba. O líder petista orientou seu partido a lançar candidatos em todos os lugares onde isso for possível, em vez de organizar uma frente de oposição com base nos temas nacionais. Isso reforça o velho hegemonismo petista, é verdade, porém, o futuro do PT em 2022 depende muito de seu desempenho nas próximas eleições municipais.

É difícil avaliar até que ponto a crise de Bolsonaro com o PSL, comandado por Luciano Bivar (PE), tem a ver com avaliação semelhante. O fato é que Bolsonaro não tem, ainda, uma estratégia clara para as eleições do próximo ano, mesmo nas duas cidades onde é maior a influência da política nacional. Seu rompimento com o governador fluminense Wilson Witzel, por exemplo, sinaliza um cenário adverso no Rio de Janeiro, ainda que venha a apoiar a reeleição do prefeito Marcelo Crivela (PRB). Em São Paulo, o rompimento com o senador Major Olímpio (PSDL) e a deputada Joice Hasselmann (PSDL), potenciais candidatos na capital, revela certa desorientação quanto à disputa pela prefeitura da capital.

Bolsonaro se movimenta como quem deseja ter a liberdade para apoiar candidatos com os quais se identifique ideologicamente, seu prestígio lhes garantiria a competitividade. Esse é o perfil, por exemplo, do deputado federal Hélio Negão (PSL), no Rio de Janeiro. Nesse caso, reproduziria no plano municipal a mesma estratégia que adotou na sua própria candidatura à Presidência, rejeitando alianças tradicionais para fazer uma campanha antissistema, disruptiva. Seria como adotar, nas eleições municipais, o lema do motociclista feliz. Se isso vai dar certo ou não, é outra história.

Pensamento do Dia


História da desglobalização

Está se instalando no mundo um ambiente desglobalizante. A globalização já não está na moda. As guerras comerciais não são apenas entre EUA e China, elas superam as duas superpotências e chegam à Europa. A nova diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, a búlgara Kristalina Georgieva, alertou que a escalada protecionista ameaça causar efeitos de longo prazo que poderiam frear a economia durante toda uma geração, e que pode ser erguido um “novo Muro de Berlim” digital que forçaria os países a escolher entre sistemas tecnológicos alternativos. Enquanto isso, os perdedores da globalização, que têm muita capacidade de pressão, manifestam-se nas ruas perguntando o que aconteceu com as previsões de que a liberalização comercial, a globalização das finanças e o mercado comum europeu fariam a economia crescer e melhorariam o nível de vida de todos. Não foi assim. Sentem-se enganados.


Os protestos em muitos países distantes um do outro são heterogêneos, mas em todos eles há uma dose de rebelião contra a desigualdade. Em seu novo livro, Capital et Idéologie (“capital e ideologia”), Thomas Piketty recorda que a desigualdade não é só econômica ou tecnológica, é ideológica e política. Não existem fundamentos “naturais” que a expliquem. De forma surpreendente, escreve o economista francês, as elites das diferentes sociedades, em qualquer época e em qualquer lugar, tendem a “naturalizar” a desigualdade, ou seja, procuram associá-la com fundamentos naturais e objetivos, dizem que as diferenças sociais são benéficas para os mais pobres e para a sociedade como um todo, e afirmam que, de qualquer forma, sua estrutura atual é a única possível e não pode ser modificada sem causar grandes desgraças (a “tese da perversidade” de Albert Hirschman). No entanto, as desigualdades atuais e as instituições presentes também serão expostas à mudança e à reinvenção permanente. Enquanto isso, essa desigualdade conduz ao controle político por parte dos mais ricos, um controle imprescindível para a transmissão de todas as suas vantagens (através do dinheiro ou da educação).

Neste contexto de protesto, volta a ganhar atualidade o “gráfico do elefante” do economista sérvio-americano Branko Milanovic, ex-economista-chefe do Banco Mundial. Esse gráfico chegou a ser mais famoso −e, é claro, muito mais complexo− do que a curva de Laffer desenhada em um guardanapo de papel. Milanovic trabalha com a renda familiar e com percentis de população: se unimos os percentis selecionados, aparece a figura de um elefante. Nela se vê que os dois grupos que podem ser considerados os principais ganhadores da globalização (no período 1988-2008) são os muito ricos de qualquer parte do mundo e as classes médias das economias emergentes, particularmente China, Índia, Indonésia e Brasil. Já os grandes perdedores são os cidadãos mais pobres (por exemplo, os agricultores africanos), a classe trabalhadora dos antigos países comunistas da Europa Oriental e os trabalhadores das economias ocidentais que se consideravam de classe média. É bem possível que essas tendências permaneçam as mesmas caso se amplie o período estudado e se incorpore a década da Grande Recessão, já que as classes médias dos países ricos foram muito castigadas pelo desemprego e pela desvalorização salarial.

Em 2013, Milanovic ampliou sua análise e chegou à conclusão de que no último período ocorreu a primeira queda média da desigualdade de renda dos cidadãos do mundo desde a Revolução Industrial. Embora dentro dos países desenvolvidos tenha havido um aumento da desigualdade de renda, se for feita uma análise mais abrangente, em escala mundial, a globalização teria reduzido a desigualdade ao tirar da pobreza estrutural bilhões de pessoas dos lugares citados. Na verdade, o gráfico do elefante de Milanovic reflete um enorme sucesso econômico em uma parte muito grande do mundo. Muitas vezes se toma a parte pelo todo.

Advertência

As mídias não estão alijadas da lamentável mudança de forma da política. De uma parte, os políticos se deixam seduzir pela suave pressão das mídias, fazendo encenações de curto fôlego. De outra parte, a configuração dos programas da própria mídia se deixa contaminar pela ânsia de ocasionalismo.

Os (as) moderadores (as) animados (as) dos numerosos talk shows servem, com suas personagens sempre iguais, um mingau de opiniões que priva até o último espectador da esperança de que possa haver ainda razões que contem no tocante a temas políticos
Jürgen Habermas

De repente, querem mudar a História sobre 1955 e o revólver do almirante

Alto, desengonçado, mal ajeitado, um dos melhores repórteres da história da imprensa mineira, Felipe Henriot Drummond chegou à porta da suíte presidencial do Hotel Financial, em Belo Horizonte. Dois seguranças de preto e mal encarados pediram os documentos. Felipe mostrou a carteira do “Estado de Minas”. Aprovada. Tocou a campainha.

A porta abriu e lá de dentro uma voz esganiçada gritou: – Entre!

Felipe entrou. Não viu ninguém. Atrás da porta, um homem baixinho, fardado, apontava um revolver para as costas dele:

– Sente-se ali. Por que chegou antes, se a entrevista é às 12 horas?

Felipe não sabia se dava uma risada ou ia embora. Daí a pouco, fomos chegando nós, outros jornalistas, para a entrevista coletiva do almirante Penna Botto, presidente da Cruzada Brasileira Anticomunista, que foi a Minas fazer campanha contra a posse de Juscelino e João Goulart na presidência da República, eleitos dias antes, em 3 de outubro de 55.

Logo no dia 5, Penna Boto tinha dado entrevista ao “Globo”: – “É indispensável impedir que Juscelino e Goulart tomem posse dos cargos para que foram indevidamente eleitos”.

A entrevista a nós foi uma palhaçada. O atarracado almirante queria nos convencer de que o Partido Comunista estava criando um “Soviet” no Triangulo Mineiro, que iria instalar-se logo que JK tomasse posse.

Não houve “soviet” mas por pouco não houve a posse. Nas redações, passávamos madrugadas agarrados às rádios do Rio, que transmitiam a crise ininterruptamente. Até que o presidente Café Filho teve (ou fingiu) um infarto, passou o governo para o presidente da Câmara, Carlos Luz, víbora gorda do PSD mineiro que, no dia 10 de novembro, demitiu do ministério da Guerra o marechal Lott, vermelhão, olho azul, mais Caxias do que Caxias, e o substituiu pelo general udenista-golpista Fiúza de Castro, numa ação articulada para impedir a posse de Juscelino e Jango.


De madrugada, Lott e Denis, comandante do Iº Exercito, fizeram o “11 de novembro” (terça-feira faz 53 anos), “retorno aos quadros constitucionais vigentes”: puseram os tanques na rua, a Câmara votou o impeachment de Carlos Luz e entregou o governo ao presidente do Senado, Nereu Ramos.

Em Minas, quando a notícia chegou ao amanhecer, corremos para o palácio da Liberdade. Juscelino, presidente eleito, já estava lá, trancado com seu vice, o governador Clovis Salgado, e o comandante da região, general Jaime de Almeida. Os dois tentaram de todo jeito segurar Juscelino, mas ele resolveu ir de qualquer forma para o Rio. Abre-se a porta e ele sai:

– Bom dia, vocês já aqui? Vou agora mesmo para o Rio.
 “Mas, presidente, há notícias de que a Aeronáutica está ao lado de Carlos Luz, que foi para Santos com Lacerda no “Tamandaré”, comandado pelo Penna Boto, e o brigadeiro Eduardo Gomes já chegou lá para tentar a resistência com a cobertura do governador Jânio Quadros. Como é que o senhor vai descer no Santos Dumont ou no Galeão? Derrubam o avião…”

– Já discutimos tudo, eu, o governador e o general. Eles estão contra, mas a decisão é minha e já a tomei. Vou a qualquer risco.

Entrou em um carro e disparou para o aeroporto. Fomos atrás, repórteres e fotógrafos. Lá, uma cena dramática. Juscelino dava ordens, aos gritos, a João Milton Prates e outro piloto, queridos amigos seus, para levantarem voo em um pequeno avião particular. Mas havia uma ordem definitiva da Aeronáutica: ninguém podia decolar.

Impedido, encostou os dois cotovelos no balcão do aeroporto, cobriu o rosto com as mãos trêmulas e chorou de sacudir. Era o choro da audácia impotente: – “Meu Deus, isso não pode acontecer. Preciso assumir”!

Foi no dia seguinte. Em 31 de janeiro, o presidente era JK. Assumiu, mas só depois de Café Filho sumir, também impichado. O cruzador “Tamandaré”, comandado pelo pequenininho Penna Boto, levou três tiros de festim do Forte de Copacabana e seguiu para São Paulo, onde Jânio não quis nada com eles e voltou de rabo (popa e proa) entre as pernas.

Lacerda foi direto para a embaixada de Cuba, asilado pelo ditador Fulgêncio Batista.

A tentativa de golpe não conseguira apagar os milhões de votos de Juscelino. Mais uma vez o golpe de 50, 54 e 55 fora adiado para 64.

Há alguns dias, “O Globo” informava que “o Instituto Histórico e Geográfico homenageou (sic) o almirante Penna Boto pelos 53 anos do bombardeio (sic) sofrido pelo cruzador Tamandaré, em 55, ao tentar sair da baia da Guanabara”…

Ao que parece, querem mudar a história.

Outros tempos

A gente devia agradecer aos meninos da família Bolsonaro pelo serviço que eles prestam à pobrezinha da nossa democracia. Com os absurdos que eles vivem sugerindo, o país está sempre testando e, em geral, confirmando nosso carinho pela coitadinha. O que o Brasil democrático precisa e quer é sempre o contrário do que eles propõem em diferentes circunstâncias. Agora, por exemplo, só pensam em reeleição. E já partiu a campanha.

O direito do presidente da República à reeleição foi um mal que Fernando Henrique Cardoso prestou ao país. O primeiro mandato de FHC foi um enorme sucesso. Para ele e seus apoiadores, como para o país todo. FHC não só tinha criado e montado o Plano Real, enquanto ministro de Itamar Franco, como o consolidou definitivamente em seu próprio governo. Isso já bastaria para o aplauso da nação, que recuperava a confiança em nossa moeda, devolvendo-nos orgulho e serenidade em nossos projetos de vida. Mas, além disso, FHC preparou com muita dedicação o sucesso de seu ingrato sucessor.

Seria preferível que FHC tivesse ficado no poder por cinco ou talvez seis anos (como na França), num mandato único, sem direito à extensão, do que lhe permitir a reeleição. Mas o mistério dessa atração é tão profundo, esse amor pela continuidade do poder é tão intenso, que mesmo Bolsonaro, que passou toda a campanha eleitoral falando mal da reeleição e jurando que não se aproveitaria dela, em alguns meses de governo já estava se lançando candidato a um repeteco.

Acho até natural que um presidente que gosta de seu "job" acabe cedendo ao gosto por ele. Mas a reeleição é o que há de pior para uma democracia ainda frágil como a nossa. O presidente em exercício dificilmente resiste a passar seus anos de primeiro mandato preparando, de modo lícito ou ilícito, os anos do segundo ato. No fundo, é essa necessidade visceral de repetir os anos de prazer, seu e de seus pares, que os leva a aspirar à reeleição. No fundo, foi a reeleição que inventou a reeleição.

Não devemos nos esquecer de que a pior liderança que o país teve nesses últimos anos, a presidente Dilma Rousseff, a mãe de todos os males sofridos por nós e que nos emperram até hoje, conseguiu se reeleger. Mesmo seu partido podendo optar por Lula, candidato infinitamente mais popular, bem-sucedido num passado recente. Mas não foi por aqueles males que o então deputado Bolsonaro votou pelo impeachment de Dilma. Quem consultar os vídeos da Câmara verá que seu voto foi acompanhado do elogio mais radical ao mais destacado torturador da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Embora mentindo, a prometer o que nem ameaçou cumprir nos poucos meses de seu segundo mandato, Dilma ganhou de alguém que, na época, considerávamos um sujeito de respeito, mais preparado, um idealista. A trajetória política do cara, quando finalmente revelada, é mais um argumento a favor do fim da reeleição — e se Aécio tivesse sido eleito em 2014? Com a disposição que ele tinha e a reeleição à disposição dele, íamos certamente alimentar a farsa até 2022. Quem sabe, ele seria capaz de fazer, com o óleo nas praias, o mesmo que esse Ricardo Salles tentou, pensando que todo brasileiro é idiota — transformar o desastre ecológico em desastre com viés ideológico.

Está mais do que na hora de nos prepararmos para um outro futuro, que não é nenhum desses para os quais os dois lados polarizados tentam nos conquistar. A disputa maior, em futuro muito próximo, não será mais entre a esquerda e a direita, formas de pensar que tratam as pessoas e o mundo de modo parecido. Às vezes parecido demais, dependendo apenas do assunto e dos livros que lemos a propósito dele. Isso não faz mais nenhum sentido, num mundo vivendo o tempo do homem ou do Antropoceno, acelerado desde a segunda metade do século XX. As ideias e as doutrinas podem ser diferentes. Mas a aplicação delas, sua ação e os males que produzem são mais ou menos os mesmos. Só mudam os gurus.

A disputa do futuro será entre barbárie e civilização. O paradoxo é que, se as coisas continuarem no ritmo atual, com a disputa ideológica radicalizada infantilmente, o progresso vai se tornar um fator de barbárie. E, entre a barbárie e a civilização, para que o mundo e o ser humano existam por mais um pouco, devemos ficar sempre com a civilização. Que me desculpe o senhor presidente, mas quem está sugerindo um novo AI-5 no país não está apenas sonhando. Está provocando um pesadelo do qual já sabemos que é difícil acordar. Mas o Brasil não vai mais cair nessa.
Cacá Diegues