O “você sabe com quem está falando?” é um desses surtos reveladores da presença de uma armadura autoritária e da ausência de uma conscientização que o legalismo não resolve. Pois o VSCQEF é uma objetificação de que nós, “brancos de classe média”, temos uma cabeça aristocrática e os pés fincados no mundo das pessoas comuns — do povo, de que lutamos para nos separar como “gente que se lava”.
Nesse sentido, o VSCQEF é um ritual autoritário e um exorcismo. Um livramento que usamos para deixar de seguir as normas universais e impessoais que nivelam. Ao indicar que somos superiores em ambientes igualitários como uma fila, a praça pública ou o restaurante, partejamos um reizinho (ou um desembargador) de dentro de nós; e esse fantasma aristocrático anuncia que todos — menos nós – devem seguir os preceitos cívicos. Pois, no Brasil, ser autoridade pressupõe estar acima ou fora do alcance da lei. O pior é que, quanto mais crises vivemos, mais observamos o poder de tal pressuposto. A tal ponto que nos surpreende quando autoridades comprovadamente desonestas são presas porque sabemos que logo serão anistiadas e postas em liberdade.
Ademais, os superiores devem ser reconhecidos por mais que suas demandas sejam ilícitas. O pressuposto do ritual é que, como nos tempos da escravidão, todos os “grandes” deveriam ser reconhecidos, pois ignorar a hierarquia leva à admoestação do agressivo ritual. Tal como ocorreu recentemente num restaurante e sempre acontece com quem venha a ignorar nossa pretensa importância.
Mas como é o VSCQEF quando se trata do encontro de povos, culturas e países num mundo globalizado? Um espaço com línguas, história e culturas diferentes, mas unido num mesmo palco planetário por um sistema econômico desenhado para crescer, dividido em países ricos e pobres, poderosos e fracos?
Nesse nível, o mais comum e mais bárbaro é o uso da força, e o VSCQEF é a guerra. Mas como se organiza a exclusão quando se depara com sociedades humildes — grupos tribais, “índios” — um conjunto de povos sem escrita e burocracia e, além disso, com regimes de crescimento populacional e econômico que buscam o equilíbrio, e não a riqueza ou o tal progresso que marca nossa existência? O que fazer com esses “índios” — vistos como inocentes e primitivos, mas que ocupavam estas terras muito antes de nós?
Tais encontros, como toda antropologia do contato tem revelado, desvendam uma degradante saga de exclusão cujo rumo é a depopulação e o genocídio. E, em paralelo, a guerra e o confinamento, como ocorreu nos Estados Unidos.
Pois bem. Neste Brasil de hoje — de Lula 3 —, armamos o novo marco regulatório que, sem dúvida, é nosso VSCQEF junto a essas populações. Pois esse marco erradica a propriedade de fato e anula a de direito dos nativos em relação a suas terras.
Escrevi sobre isso quando realizei pesquisas de campo com nativos da Amazônia e do Tocantins. Num caso e no outro, os nativos descobriam que suas terras não lhes pertenciam, até que fossem, como felizmente ocorreu, demarcadas. A potencial exclusão legalista que vigorará transforma o possuidor em possuído pela sociedade englobante. É o que esse novo e populesco-genocida marco territorial vai fazer. Um crime contra a Humanidade, um assalto mortal à diversidade e ao direito a ser diferente.