domingo, 2 de junho de 2019

Pensamento do Dia


Quem fala demais

Revigorado pelas manifestações em seu favor e deixando o digladio com os contras para o seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, o presidente Jair Bolsonaro se animou. Na semana passada, reuniu-se com os poderes Legislativo e Judiciário, fez visita supresa ao Congresso, elogiou parlamentares. Pregou a cartilha das privatizações, e, no melhor estilo popularesco, foi para a rua, reservando parte da agenda em Goiás para um almoço “improvisado” com caminhoneiros.

Pessoalmente, pode ter marcado gols, com chances até de barrar a queda contínua de sua aprovação no pós-posse. Teria sido ainda melhor para ele, para o seu governo e para o país, se a empolgação não o fizesse falar demais.

Com a língua solta, abriu flancos perigosos como o da exaltação ao presidente do Supremo, Dias Toffoli, que Bolsonaro passou, sem qualquer pudor, a tratar como um aliado – “é muito bom nós termos aqui a Justiça ao nosso lado”. Por ignorância ou oportunismo, o capitão desprezou o fundamental: à Justiça não é dada a opção de ter lado. Ainda que Toffoli, o garoto de ouro do ex Lula e seu novo melhor amigo, e o próprio presidente façam pouco caso disso.
Abandonando os regulares xingamentos à imprensa, Bolsonaro atendeu jornalistas e até falou com exclusividade à revista Veja. Fez pouco do seu partido, o PSL, que para ser formado rapidamente “pegou qualquer um”. Uma desfeita aos deputados “inexperientes”, que só chegaram lá pelo apoio do candidato-presidente. Vinculou o fim da reeleição a uma reforma política que possa diminuir o número de parlamentares de 500 para 400, garantiu que vai vender os Correios. Simpático e por vezes brincalhão, até puxou as orelhas de seu guru por ele ter indicado Ricardo Vélez para a Educação sem conhecer o afilhado. “Pô, Olavo, você namorou pela internet?”

Sobre o filho Flávio, investigado pelo Ministério Público do Rio por suspeita de enriquecimento ilícito, tergiversou. Escolheu se portar como um pai preocupado e perseguido. Não negou a amizade com Fabrício Queiroz, mas, ao dizer que desconhecia os rolos do ex-assessor, usou o mesmo expediente do ex Lula, prorrogando a suada república do “eu não sabia”. Algo pouco digno para alguém que rechaça antecessores e as práticas da “velha política”.

Na sexta-feira, voltou a soltar impropriamente o verbo.

No almoço com os caminhoneiros, vangloriou-se de ter beneficiado a categoria no decreto pró-armas, estimulando-os a mandar bala. “Se tiver arma de fogo é para usar”, disse. Depois, assegurou que daqui a pouco as armas, hoje caras, vão cair de preço. A reivindicação era por mais asfalto e mais policiamento. Mas, sem oferecer qualquer alternativa diante das reclamações pela falta de infraestrutura que destrói pneus, motores, boleias, e pelos roubos de carga, Bolsonaro vaticinou: “quanto mais arma, mais segurança”.

No mesmo dia, durante um evento da Assembleia de Deus em Goiânia, defendeu a assunção de um ministro evangélico ao Supremo. Ciente do espanto que a afirmativa provocaria, o presidente lançou o verme e saiu-se com a vacina: “não me venha a imprensa dizer que quero misturar a Justiça com religião”.

Pode até vir a não fazê-lo, embora pareça querer.

Reincidente no erro, insistiu em comprometer a indicação que fará no ano que vem para o STF. Já meteu os pés pelas mãos ao confessar que barganhara a vaga futura para convencer o ex-juiz Sérgio Moro, que não é evangélico, a integrar o governo. Agora, acenou para os seus amigos de fé. Irresponsabilidade dupla.

Animado com as manifestações em seu favor, Bolsonaro falou muito e mais do que devia sobre tudo. Mas ficou mudo diante das estultices do seu ministro da Educação. Além do desrespeito a professores e alunos, que ele considera frágeis e manipuláveis, a cena patética do vídeo “Singing in the rain”, no qual Weintraub aparece rodando um guarda-chuva com a bandeira nacional ao fundo, tem eloquência própria. Mostrou-se pior ou no mínimo igual a Vélez.

Sobre isso, Bolsonaro nada disse, ficou calado. Um silêncio embalado por outra crença, a ideológica. A mesma chaga que, vinda do outro polo, ele jurava combater.

Infestação de fanáticos

O que vivemos neste início do século XXI não é um choque de civilizações, nem um conflito entre Ocidente e mundo árabe ou entre ricos e pobres. É um choque entre os fanáticos e o resto de nós. E há fanáticos de todos os tipos e inclinações políticas e religiosas
Amós Oz

Angst

Ararinha azul agora só em cativeiro 
É um nó no peito todo dia. Palavra curta, que puxa pra dentro e trava na garganta. Sentimento de aspereza universal. É o pesadelo da lama no sono mal dormido das famílias de Santa Bárbara. É a caça por esporte, o grande desmonte autorizado, leilão de terras, leilão de águas, um monte de frutas e folhas gordas criadas em agrotóxico, em três meses mais de quinhentos milhões de abelhas mortas. É uma chuva de balas disparadas dos helicópteros, chave de braço nas ruas, nos bares, dentro das casas, epidemia de dengue e de suicídio. É um boçal no poder gastando um país como quem ganhou na loteria, é o blá-blá-blá da meritocracia, tragédia com data marcada, uma agenda de calamidades, uma gente lunática emendando e remendando a lei, o dito que fica por não dito e a vontade de matar multiplicada por vinte. É uma gente orgulhosa da própria selvageria, profissional em causar medo, uma fileira de dezenove cabeças de onça sem corpo no Pará, incêndio na escola dos Pankararu, tiros contra os Guarani-Kaiowá, ameaças de morte aos Yaminawá. E no meio desse atoleiro todo, uma notícia de longe, que soa como fábula, de um ex-caçador na ilha de Sumatra, hoje guarda florestal, que um dia ouviu o choro do pássaro calau e teve vergonha do que fazia. Um ex-caçador desde que ouviu o choro do calau que não morria, quatro vezes atingido e não morria. Mas qual pássaro, se chorasse, nos envergonharia? A ararinha azul é que já não pode ser, que a ararinha azul já está extinta no Brasil.
Mariana Ianelli

Perdidos na Terra

Difícil conceber missão mais atordoante para a mente e o corpo do que a empreendida em julho de 1969 pelo americano Neil Armstrong — sair de uma nave espacial, a Apollo 11, e pisar na Lua. Na Lua, caramba! Essa experiência transcendental, tanto para o astronauta como para a humanidade, será fartamente dissecada nas homenagens previstas para o cinquentenário da epopeia. Mas vale lembrar que Armstrong, apesar de ser filho de pais devotos, nunca se considerou escolhido por Deus para realizar a monumental missão. Viveu longa e produtiva vida na Terra com o mesmo foco com que imortalizou suas pegadas no “ Mar da Tranquilidade” lunar.


Em sua 29ª semana no poder, Jair Bolsonaro ainda soa como se estivesse pisando em solo intergaláctico. Em longa entrevista concedida à revista “Veja”, o presidente se mostra atordoado com o caminho que acredita ter-lhe sido designado por Deus. “Imaginava que ia ser difícil, mas não tão difícil assim”, declarou aos jornalistas Mauricio Lima e Policarpo Júnior. “Essa cadeira aqui é como se fosse criptonita para o Super-Homem. Mas é uma missão. Entendo que Deus me deu o milagre de estar vivo”, disse, referindo-se ao atentado à faca que sofreu em setembro passado. “Nenhum analista político consegue explicar como eu cheguei aqui, mas cheguei e tenho de tocar esse barco...”

Na sexta-feira, poucas horas após a publicação da entrevista regada a lamentos e autoelogios superlativos, deu uma remada a mais no seu modo de tocar o barco. “Será que não está na hora de termos um ministro evangélico no STF?”, perguntou aos fiéis presentes à Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira, numa estocada adicional contra a criminalização da homofobia sendo julgada no Supremo.

Para quem fica algumas semanas de folga do ciclo noticioso 24/7, pousar novamente no planeta Brasil de 2019 não é banal. O país parece uma casa de espetáculos com programação múltipla, disfuncional: em Brasília há desde sessões matinais de troca de coraçõezinhos entre o presidente e a bancada parlamentar feminina até a matinê “A Praça é Nossa”, em homenagem ao apresentador Carlos Alberto de Nóbrega com aparição "impromptu" do presidente.

Mas há, sobretudo, o horror sazonal das matanças intestinas nos presídios nacionais — desta vez foram 55 os mortos esganados ou perfurados até ficarem exangues, em quatro unidades do Amazonas. Para quem tem interesse no tema, recomenda-se aqui o livro “American Prison: A Reporter’s Undercover Journey into the Business of Punishment”. Trata-se de um mergulho quase dickensiano no universo do sistema prisional americano gerido por empresas privadas. Nada a ver diretamente com a Umanizzare, empresa responsável pela gestão dos convulsionados presídios amazonenses, mas seminal. O autor é Shane Bauer, repórter investigativo da “Mother Jones”.

O planeta Brasil de hoje (como de ontem, aliás) parece ter um braço extraterritorial em Lisboa, Harvard, China, Jerusalém, tantas são as escapadelas individuais ou caravanas para eventos, seminários, viagens oficiais. A novidade são os desconvites — somente no mês de maio o próprio Bolsonaro achou prudente evitar Nova York e contentar-se com Dallas para receber um prêmio, enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tratou de cancelar um giro europeu (Paris, Oslo, Berlim, Londres) que tinha tudo para dar errado. Não apenas as lideranças europeias preferem manter distância da atual política de desconstrução ambiental do Brasil como o ativismo ecológico no Velho Continente está mais vibrante do que nunca — é provável que o giro de Salles teria tido um séquito interminável de protestos de rua.

Adicione-se a ideia de Bolsonaro, apresentada sem sutilezas, de transformar a Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis, numa pulsante Cancún turística. Ela consegue soar mais desvairada ainda do que a imagem do recente engarrafamento humano no topo do Everest.

Ao contrário do que se pensa, governos populistas não se diferenciam dos demais por criticarem as elites, pois apontar falhas nas altas esferas do poder é essencial a democracias. A característica dos populistas, ensina Jan-Werner Müller, professor de Teoria Política de Princeton, está em se apresentar como únicos representantes do que seria o cidadão de bem, o verdadeiro cidadão. As demais lideranças nacionais passam a ser retratadas como potencialmente corruptas, usurpadoras ilegítimas da confiança popular, e quem as apoia não seria povo.

Selecionar um povo ideal que caiba no figurino imaginado é o sonho quântico de todo populista. Para o povo real, poder contar com alguma política de educação coerente já seria milagroso.

Brasil de camisa nova


Ninguém tem culpa, nem memória

Se fossem levadas a sério as declarações dos políticos brasileiros, jamais encontraríamos uma pessoa sequer para responsabilizar pelas mazelas nacionais. O país tem 13 milhões de desempregados, mas a culpa não é do PT de Lula e Dilma, não é do MDB de Michel Temer, nem da turma nova que chegou agora com Bolsonaro. A economia não anda, ou anda para trás, mas não há culpados. Os dedos desses apontam para todos os outros. Os dedos dos outros indicam todos estes. E o país soçobra.


Sobre o desemprego, o ministro da Economia, Paulo Guedes, manda colocar na conta do PT. “Isso é coisa do passado. Vai cobrar do Lula e da Dilma”, Guedes gosta de repetir. É verdade também que nestes cinco meses de governo não se conseguiu registrar nenhum sinal alentador na economia que pudesse estimular investimentos e gerar novos empregos. Ao contrário. Do outro lado, o PT acusa o governo Bolsonaro por bater recorde de desemprego. Esqueceu que a estagnação econômica teve início no governo Dilma, chegou a melhorar sob Temer, mas voltou a degringolar. E, como se vê, ninguém tem culpa.

Ao novo governo cabe explicar por que, mesmo com o clima superfavorável pós-eleição, a economia estancou no primeiro trimestre, registrando PIB negativo. A explicação é a do dedo apontado. Para o PT. Mas, como não se conseguiu a confiança da população, e muito menos do mercado neste início de governo repleto de problemas, começam a ser discutidas soluções que o ministro Guedes diz não serem mágicas, mas são claramente emergenciais. Ele falou, por exemplo, em liberar o Fundo de Garantia para colocar R$ 20 bilhões na economia. Trata-se de medida de quem olha para frente e vê tempestade. Parece desespero. Pode não ser, mas parece.

Nas questões ambientais e rurais ocorre a mesma coisa. Nunca a floresta amazônica esteve tão desmatada, e a culpa não é do PT, nem do MDB, muito menos da turma dos novatos PSL e correlatos. Segundo eles próprios. O novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, diz que desmatamento é histórico, e o que seu governo quer fazer é abrir novas fronteiras de negócios para o Brasil. Diz isso, mas age como se fosse um representante da bancada ruralista e da indústria de agrotóxicos dentro do governo. Já a turma do passado ataca o ministro e diz que o novo governo vai destruir o que resta das florestas nacionais. Os volumes de queimadas e abate de árvores na Amazônia brasileira cresceram nos primeiros dois anos do governo Lula, em seguida caíram para voltar a crescer na gestão de Dilma.

O senador Paulo Rocha (PT-PA) ocupou a tribuna do Senado semana passada para acusar o governo Bolsonaro de ter parado a reforma agrária. Deve ser verdade, essa claramente não é questão que interesse ao novo governo. O curioso é como um parlamentar do PT, ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acusa terceiros de não fazer reforma agrária depois de 14 anos de governo petista. O partido, que deveria ter zerado o estoque de trabalhadores sem-terra, assentou menos gente no governo Dilma do que na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em 2016, Dilma assentou 1.686 famílias, contra 101 mil em 1998, no primeiro mandato de FH, ou 136 mil em 2006, no governo Lula.

A saúde no Brasil está sucateada, mas ninguém é culpado. Claro que a deterioração de hospitais e postos de saúde, umas das maiores tragédias nacionais, vem sendo operada há anos, governo após governo. O que ocorre agora é mais uma vez o festival de “não é comigo”. Petistas cobram investimentos do novo governo, mas negligenciaram da mesma forma o setor. De 2002 a 2012, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), mais de R$ 90 bilhões destinados por Orçamento para a Saúde não foram gastos pelos governos de Lula e Dilma.

Na educação, bem, na educação já sabemos que o que vinha mal seguirá mal e tem tudo para piorar. A única medida até agora anunciada pelo novo governo é o corte, ou o contingenciamento, se preferirem, nas universidades federais. E a famosa “responsabilidade não é minha” segue em frente. Todos querem fazer crer que a culpa é dos outros. Ou que ninguém tem culpa. Na verdade, o que falta nesta turma é memória. Todos são culpados.

Cadê as provas de 'coação" que MEC diz possuir?

Em vídeo divulgado na quarta-feira, o ministro Abraham Weintraub (Educação) disse estar "recebendo no MEC cartas e mensagens de muitos pais de alunos citando explicitamente que alguns professores, funcionários públicos, estão coagindo os alunos ou falando que eles serão punidos de alguma forma, caso eles não participem das manifestações. Isso é ilegal, isso não pode acontecer." Decorridos quatro dias, não há vestígio de prova nem sinal de providência adotada contra a suposta ilegalidade praticada pelos hipotéticos coatores.

No dia seguinte, quinta-feira, a rapaziada ganhou o asfalto. E Weintraub mandou sua assessoria enviar nota aos jornalistas para informar o seguinte: "Até o momento, a Ouvidoria do ministério já contabiliza 41 reclamações no órgão, além de diversas interações realizadas via Facebook do MEC e pelo Twitter do ministro Abraham Weintraub". Passados três dias, as alegadas reclamações não vieram à luz. Nenhum coator foi repreendido ou levado aos tribunais.


De duas, uma: Ou a coação de alunos é assombração que só existe na cabeça do ministro ou o chefe do MEC ignora as provas de algo que tachou de "ilegal". Na primeira hipótese, Weintraub é mentiroso e não merece permanecer no cargo.

Na segunda alternativa, o personagem comete o crime de prevaricação. Consiste em "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício". Neste caso, Weintraub precisa trocar a poltrona de ministro pelo banco dos réus, pois prevaricar é delinquência que o Código Penal Brasileiro pune com prisão —de três meses a um ano.

Noutros tempos os executivos governamentais dividiam-se apenas em dois grupos. Havia os que eram incapazes de todo —como Vélez Rodrigues, o olavete que durou menos de 100 dias no MEC. Havia também os que eram capazes de tudo. Abraham Weintraub inaugura um terceiro grupo. Reúne as duas características numa mesma pessoa.

Capaz de tudo, Weintraub empurrou o monstro para as ruas ao transformar um corriqueiro congelamento de verbas numa guerra ideológica. Incapaz de todo, imagina que pode devolver o monstro à sala de aula espetando-o com sua língua afiada. Um ministro assim corre muitos riscos, exceto o risco de dar certo.

Será que vai dar certo?

O governo Bolsonaro chegará ao final? Questão suscitada pelas tensões, idas e vindas desses cinco meses de administração. Não vislumbro resposta convincente. No limite, aponto o “Senhor Imponderável dos Anjos” como assíduo visitante em nosso roçado político-institucional.

Mas a ciência política ensina como medir a viabilidade de um governo e a possibilidade de se sustentar. Pinço as alavancas que o cientista político chileno Carlos Matus usa para apontar quatro eixos que balizam respostas à pergunta acima. São elas: a) a viabilidade política; b) a viabilidade econômica; c) a viabilidade cognitiva; e d) a viabilidade organizativa.


A primeira diz respeito à índole dos políticos e sua disposição de endossar ou não a agenda do Executivo; isso depende muito da articulação do governo. Imbróglios obscurecem o horizonte político. Ao dizer que não se submete à “velha política”, Bolsonaro coloca imensa barreira entre o governo e o Parlamento.

A articulação do governo é dispersa, com protagonistas múltiplos – general Santos Cruz, Onyx Lorenzoni, o próprio presidente e líderes do governo no Congresso. Afinal, quem é o responsável? A própria base governista é um amontoado sem rumo. O PSL vive em querelas constantes, enquanto o governo precisa convencer políticos (até da oposição) para aprovar as reformas.

A segunda viabilidade requer dados e contextos econômicos alinhados sob a tese que se quer demonstrar. No caso brasileiro, a recessão já dá sinais de que pode voltar. Sem a reforma da Previdência, não haverá como pagar aposentadorias. Ao contrário, com as reformas, as projeções mudam de rumo. O país cresceria de 2% a 3%, segundo o relator da PEC da Reforma Tributária, o competente ex-deputado Luiz Carlos Hauly.

Os inputs econômicos se assentam sobre base racional, e não emotiva. Sob ameaça do retorno da recessão, o risco é que o país volte às brumas do passado.

O terceiro eixo é o cognitivo, área do conhecimento sobre as matérias pautadas. Sem ampla divulgação dos temas, não haverá convencimento do corpo parlamentar. Da mesma forma, a sociedade precisa ser bem informada para que faça pressão sobre seus representantes. Conhecimento se transporta pelos meios de comunicação: interpessoais, grupais ou coletivos, reuniões, debates, rádio, TV, jornais, redes sociais etc.

Mas a comunicação do governo é falha. Há estruturas, um porta-voz general, redes usadas pelo presidente e seus filhos. A dispersão desorienta e gera balbúrdia.

Por último, a viabilidade organizativa, conjunto de meios e instrumentos – ministros, estruturas, articulação política – que influencia a circulação rápida de ideias. Sem coordenação, o fracasso ocorrerá.

Os quatro eixos devem ser ajustados para alcançar metas e objetivos. A análise acurada de cada viabilidade abrirá sinais e referências para se construir uma resposta adequada à pergunta que encabeça este texto.

Paisagem brasileira

 Yoshiya Takaoka, Ouro Preto 1968 

Conversa mole

Governantes residentes em becos sem saída costumam recorrer a soluções semelhantes, sendo o convite para a assinatura de “pactos” a mais comum delas. Jair Bolsonaro não está naquela situação extrema e, ainda assim, convidou os presidentes do Legislativo e do Judiciário para firmar um pacto, uma desgastada e falsa solução que, como de hábito, não dará em coisa alguma. Pelo motivo simples de que a tradução do governo para pacto é uma proposta de acerto para apoio incondicional, e isso o presidente não conseguirá.

A ideia de Bolsonaro obviamente foi conferir às manifestações do dia 26 um peso na ordem institucional que, de fato, não tiveram. Os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal atenderam ao pedido a que não poderiam deixar de atender, sabendo do propósito e, ao mesmo tempo, da inutilidade da convocação. Cada um dos poderes dispõe de agenda específica e todos eles buscam o melhor para si, o que nem sempre guarda relação com o mais confortável para o vizinho constitucional.

Afora isso, o presidente da República não tem se notabilizado por ser um interlocutor confiável. Num dia morde, no outro assopra e no seguinte de novo volta a morder para depois tornar a assoprar, dependendo das circunstâncias. A dinâmica obedece à lógica primária das ações presidenciais que, por isso, carecem de credibilidade e, como toda trama tosca, quedou-se devidamente desvendada em seus primeiros movimentos. Isso para dizer que os locatários de poderosos gabinetes da República não caem na conversa (fiada) de Sua Excelência.

Jair Bolsonaro aparentemente saiu ileso da convocação do protesto a favor, que poderia ter sido um erro fatal cometido nos acordes iniciais do governo. Saiu não tão intacto quanto gostaria, pois demonstrou na convocação aos pares que teme o efeito da volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar.

E quais consequências seriam essas? Inúmeras, umas visíveis a olho nu, outras dependentes do decorrer dos acontecimentos. Aqui, no entanto, tratemos apenas das evidentes: reação contrária do Congresso a medidas de interesse do Planalto e consequente aumento de prestígio interno de Rodrigo Maia, má vontade do Supremo em relação à pauta de costumes defendida por Bolsonaro e incentivo a manifestações de rua em oposição a quaisquer atos do governo. É disso que Jair Bolsonaro tem medo.

Ele talvez saiba, mas se não sabe conviria tomar ciência de que quem bate releva, mas quem apanha nunca esquece. O Congresso apanhou dele, o Judiciário também, por intermédio de um dos aloprados filhos, bem como os manifestantes em prol das verbas para a Educação, chamados de “idiotas úteis”.

Não são idiotas nem inúteis os brasileiros que se manifestaram a favor de Bolsonaro. São cidadãos donos de uma opinião que por ela devem ser respeitados. Da mesma maneira merece de todos o maior respeito qualquer pessoa que proteste ou se manifeste contrariamente aos atos, palavras e decisões tomadas pelo governo que, gostemos ou não, a todos nós preside.

'Missonário'

Eu tenho uma missão de Deus, vejo dessa maneira. Foi um milagre estar vivo e outro milagre ter ganho as eleições. Deus também tem me ajudado muito na escolha dos meus ministros
Jair Bolsonaro

Política infantil, povo infantilizado

Duvido que algum país tenha um número de irresponsáveis por metro quadrado comparável ao nosso. Baseando o cálculo só no circuito institucional sediado em Brasília, excluindo o resto do País, nossa vantagem sobre o resto do mundo nesse quesito deve ser acachapante.

Para bem aquilatarmos a extensão da coisa, tanto faz começarmos pelo lado grotesco – lagostas, vinhos de qualidade, auxílio-paletó, auxílio-moradia – ou pelo lado teratológico, quero dizer, pelo contingente de 26 milhões de pessoas sem trabalho, por nosso sistema educacional, horroroso nos três níveis, pela corrupção de proporções amazônicas, pela taxa de homicídios subindo de patamar e agora, para nosso infinito espanto, pelo rompimento de barragens causando danos irreparáveis a algumas de nossas mais importantes bacias hídricas. Culpa de Deus? Não, culpa da ignorância técnica, da falta de fiscalização e do desprezo pela natureza e pela vida das coletividades que vivem nas proximidades. A verdade é uma só: a desigualdade social e o desmazelo generalizado estão nos tornando um país estúpido, violento e cruel.


Se nossa renda por habitante crescer 1,5% este ano (o que não é trivial) e essa taxa se mantiver por um longo período, levaremos 47 anos para dobrá-la e alcançar o nível que Portugal já hoje desfruta. Repito: 47 anos. Essa projeção macabra deveria ser suficiente para mudar as atitudes e padrões éticos dos donos do poder. Deveria ser uma espada de Dâmocles obrigando os três Poderes a se levarem mais a sério e a tratar com respeito os 207 milhões de habitantes deste país “abençoado por natureza”. O que vemos acontecer diuturnamente em Brasília dista anos-luz desse mandamento elementar.

Só consigo compreender a lerdeza (pirraça, fisiologismo, falta de vergonha...) com que a reforma da Previdência é tratada por grande parcela do Congresso a partir da ignorância de muitos a respeito do futuro que nos aguarda. A referida parcela simplesmente não compreende que essa reforma é apenas o primeiro passo numa dura série de mudanças que teremos que fazer, de um jeito ou de outro. De reformas muito mais drásticas do que essa que temos sobre a mesa poderá depender, quem sabe, até nossa sobrevivência como entidade nacional integrada.

Não me deterei nos prós e contras do governo Bolsonaro, assunto martelado diariamente na imprensa e nas redes sociais. Não sei se ele adotará ou não um estilo consentâneo com a magistratura a que foi alçado e com a gravidade da crise em que os governos anteriores nos meteram. Quero apenas lembrar que a eleição já passou, que os palanques já foram ou deveriam ter sido desmontados e que a presente hora tem de ser de distensão e pacificação, não de mais acirramento.

A História do Brasil não é o oito ou oitenta que tantos se comprazem em trombetear. Erramos muito, mas também acertamos bastante. Tivemos muito azar em algumas ocasiões, mas outras houve em que Deus deu realmente a impressão de ser brasileiro. Veja-se a preservação da integridade territorial, que nos proporcionou esse que talvez seja o maior dos nossos ativos: nossa dimensão continental. É certo que, em nosso caso, a unidade não foi suficiente para alicerçar um mercado interno robusto; seria demais esperar isso no nível de pobreza prevalecente quando nos livramos do regime colonial. De 1930 a 1980, nossa economia cresceu vigorosamente. Naquele período poderíamos ter constituído um mercado interno respeitável e não o fizemos, agora, sim, por uma imperdoável sequência de erros, a começar pelo modelo de crescimento concentrado no Estado, trampolim para a obscena consolidação de uma casta patrimonialista no topo da pirâmide política, reforçada pela trincheira geográfica que Brasília passou a proporcionar-lhe.

Parece-me, pois, que o alfa e o ômega da irresponsabilidade política brasileira é essa incapacidade infantil de perceber o inferno a que inexoravelmente chegaremos se reformas drásticas não forem efetivadas. Um ponto de partida conveniente para quem tiver ânimo e coragem para abrir os olhos é relembrar o que aconteceu nas três últimas décadas do século 19 nos três casos clássicos de “industrialização tardia” – ou seja, na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos. Firmar a unidade territorial e construir um poder central digno de respeito foram a condição sine qua non para constituir o mercado interno, base do crescimento industrial acelerado que esses três países conheceram. A Alemanha, além de uma reforma administrativa admirável, iniciada no começo do século 19, levou a cabo a unificação em 1870. Sob a égide da Prússia e a liderança de Bismarck, os 40 principados então existentes se uniram no que viria a ser uma formidável potência industrial. No Japão, a restauração da dinastia Meiji levou ao poder uma nova elite que rapidamente quebrou o sistema feudal, desarmou a corporação dos samurais, padronizou o sistema educacional em nível nacional e abriu rapidamente o país para o exterior, em busca de tecnologia. Não menos impressionante, nos Estados Unidos a drástica reorientação do sistema educacional no sentido tecnológico, por meio dos land-grant colleges, e a sangrentíssima guerra de 1861-1865 contra o sul escravocrata fincaram os pilares do espetacular crescimento econômico na quarta parte do século.

No Brasil, a dificuldade é escolher qual o melhor exemplo de infantilidade e irresponsabilidade. Minha inclinação é a organização partidária. A proliferação desabrida não seria tão grave se o resultado dela fosse apenas nominal, mas não é o caso: analisada como um número de partidos efetivos, nossa estrutura partidária é, nada mais e nada menos, a mais fragmentada do planeta.

Vinte e seis milhões de pessoas sem trabalho ficam sem saber se é para rir ou para chorar.

O populismo mexicano

No auditório da Universidade de Guadalajara, sob o espetacular mural de José Clemente Orozco contra o fanatismo ideológico, acabam de ser realizadas três mesas-redondas com a participação de 15 intelectuais mexicanos – talvez os mais eminentes do país –, que, diferenças entre eles à parte, manifestaram sua preocupação com guinada que a política mexicana vem dando desde que Andrés Manuel López Obrador assumiu a presidência.

Héctor Aguilar Camín, escritor, jornalista e diretor da revista Nexos, advertiu que, tanto em suas iniciativas como em suas intenções, o mandatário parece ter posto em marcha a construção de uma estrutura mais pessoal e permanente, que as instituições democráticas mexicanas, recentes e frágeis, não estão em condições de resistir. E o historiador Enrique Krauze, diretor da Letras Livres, que foi vítima de uma recente campanha de descrédito e intimidação por suas críticas ao Governo, insistiu no risco de que “o messias tropical” – assim chamou o novo presidente em um célebre ensaio – esteja operando de tal modo que possa cruzar as linhas vermelhas da democracia mexicana para continuar no poder, por via direta ou por pessoa interposta, uma vez terminado seu mandato (a Constituição do México não permite a reeleição.)

Fernando Vicente
Este temor acabou sendo longamente compartilhado, com muitos matizes de diferença, pelos participantes, entre os quais havia escritores, juristas, políticos e defensores dos direitos humanos, incluindo várias mulheres, como Lisa Sánchez, que em uma aplaudida intervenção defendeu a sociedade civil e suas mobilizações em prol dos direitos das mulheres e da igualdade de oportunidades.

Talvez o mais claro e taxativo tenha sido o crítico literário Christopher Domínguez Michael, para quem a deterioração da democracia mexicana já é um fato irrebatível, que só poderá se agravar com o poder quase total dado pelos eleitores ao seu novo presidente, que obteve a maioria absoluta no Congresso e mantém uma enorme popularidade, da qual se serve para tomar decisões pessoais nos campos econômico, político e cultural que frequentemente surpreendem seus próprios ministros e assessores. Tudo isso, afirmou, deixa entrever um futuro inquietante para o país que tem mais falantes de espanhol no mundo inteiro. E outro crítico, ensaísta e professor universitário, Guillermo Sheridan, ofereceu sutis interpretações dessas mesmas críticas.

Falavam devagar, sem se alterar, guardando as formas, e eram escutados com uma atenção rigorosa por um público que lotava a sala e no qual abundavam os estudantes universitários. O bacharel Raúl Padilla, inventor da grande Feira do Livro que ocorre nesta cidade todos os anos e que pôs o nome de Guadalajara no mundo inteiro, nos tinha advertido de que talvez houvesse incidentes. Mas não houve nenhum, e as nove horas do fórum transcorreram em absoluta paz. “Isto é a civilização”, pensei muitas vezes, “um mundo de ideias e razões, tão diferente do que estamos acostumados em outras partes, das banalidades e lugares-comuns de que costuma estar cada vez mais trufada a política em nossos dias”.

As inquietações dos intelectuais mexicanos com seu novo Governo me parecem justificadas. O passado de López Obrador e suas campanhas políticas delatam um dirigente impregnado de populismo, algo que não teve o cuidado de dissimular desde que está no poder. A cada manhã, durante duas horas seguidas, oferece uma entrevista coletiva em que os jornalistas presentes costumam ser mais servis que independentes. Suas decisões ele costuma tomar de improviso, prescindindo dos marcos legais, mediante ukazy que, depois, seus funcionários ajeitam, não sem dificuldade, para lhes dar cobertura legal. E todas suas iniciativas parecem guiadas por um instinto ou palpite do momento, mais que de acordo com um programa, embora tenha tido um em sua campanha, mas pareça ter dele se esquecido. Assim ocorreu com a construção do novo aeroporto na Cidade do México, que cancelou de maneira arbitrária e que provocou seu primeiro atrito com o empresariado mexicano. É verdade que sua enorme popularidade o defende contra todas as críticas, mas isto parece ter agudizado no personagem o que estes intelectuais observam nele: a presença do caudilho tradicional latino-americano, voluntarista e despótico, que, precisamente por ser muito popular, acredita estar acima das leis e normas democráticas.

Não há censura de imprensa por uma razão que explicou, com afiada lucidez, o ex-ministro mexicano de Relações Exteriores Jorge Castañeda, ensaísta e professor universitário atualmente nos Estados Unidos. Os anunciantes de mais peso, empresários importantes, recebem um telefonema do próprio presidente ou de um intermediário de confiança, aconselhando-os ou rogando-lhes que reduzam ou cancelem seus anúncios no jornal (como poderia ter ocorrido com o Reforma, o grande jornal do México, que, por acolher as críticas de seus colunistas ou as formular ele mesmo, caiu em desgraça com o poder e viu sua publicidade diminuir de maneira dramática). Os empresários, que querem levar a vida em paz, ainda mais com um governo populista, não hesitam em acatar a sugestão. Deste modo, os meios ameaçados moderam suas críticas, ou correm o risco de quebrar. Assim se instala a censura atual nos países democráticos: asfixiando-se economicamente a imprensa –leia-se rádios e redes de televisão – independente ou díscola.

O México é um grande país e, com todos os defeitos de seu velho sistema político, desde que o ex-presidente Zedillo permitiu eleições realmente livres, no ano 2000, viveu um processo democratizante indiscutível, do qual tanto as elites como a população comum participaram com entusiasmo. Os Governos destas últimas décadas foram escolhidos em eleições genuínas, e sua política internacional correspondeu nestes anos à do chamado Grupo de Lima, que, em casos como os da Venezuela e Nicarágua – dois regimes autoritários e corruptos –, manteve uma posição impecável, exigindo eleições livres e defendendo a oposição que é vítima de maus tratos, encarceramentos, torturas e assassinatos. Desde que López Obrador está no poder, o México optou por uma “neutralidade” que equivale à cumplicidade com ambas as ditaduras (como se se pudesse ser neutro perante a peste bubônica).

Estas jornadas que tiveram lugar na Universidade de Guadalajara mostram que não será fácil para o Governo atual retroceder todo o avançado no México, e que à frente desta resistência estão intelectuais com espírito crítico, como os participantes deste fórum. O povo que aplaude e continua encantado pelos desplantes do presidente López Obrador compreenderá – tomara que antes cedo do que tarde – que a era dos caudilhos deve ficar para trás, e para sempre, em uma América Latina onde a liberdade e a democracia vão substituindo as tiranias populistas que lhe causaram tanto dano.