Tenho um amigo que é apaixonado por cinema e me arrasta para os mais variados filmes, sendo que nos basta um olhar de soslaio para, num acordo mútuo, abandonarmos a sala. E foi assim — animados por essa possibilidade tácita de desistência — que fomos ver o biopic de Donald Trump, The Apprentice. Ficámos até ao fim.
O argumento foi escrito pelo jornalista Gabriel Sherman, da Vanity Fair, a partir das biografias de Trump e do seu advogado Roy Cohn, de vídeos e entrevistas dos anos 70 e 80. No filme, o aprendiz é Trump e o mestre é o malévolo Cohn, que lhe ensina três regras que ecoam na personagem que conhecemos hoje: “Ataca, ataca, ataca”, “nega tudo” e “nunca admitas a derrota”. Trump detesta este biopic em particular por causa da cena em que se enfurece depois da mulher Ivana insultar a sua aparência física — diz-lhe que a sua cara parece uma laranja, que está velho e careca — ao que Trump reage forçando Ivana a deitar-se no chão, violando-a.
Na vida real, Ivana, no depoimento inicial de divórcio, descreve uma situação assim, mas mais tarde retira-a e esclarece: “Tivemos relações conjugais em que ele se comportou comigo de forma muito diferente da que tinha tido durante o nosso casamento. Como mulher, senti-me violada. Mas não quero que as minhas palavras sejam interpretadas num sentido literal ou criminal.” Trump, claro, negou as alegações de Ivana.
Nas décadas de 80 e 90, a Trump — e a homens com o mesmo tipo de sede — foram dadas amplas liberdades, premiando uma atitude de macho alfa, liberal, rico e, daí, célebre. Ou era pelo menos assim que o encaravam vários shows televisivos como o de Oprah Winfrey ou o de David Letterman, cujas audiências se divertiam a bandeiras despregadas com as alarvidades que Trump dizia, do tipo: “Sim, foi um bom ano para mim — vi-me livre da minha mulher” (I unloaded the wife). Mais adiante, na mesma entrevista a Letterman, Trump insurge-se contra a condenação de Mike Tyson a seis anos de prisão por crime de violação: “A mulher estava a dançar à frente dele às oito da noite e o homem acaba seis anos preso, não percebo…”
No filme, o jovem Trump revela uma obsessão com o topo; deseja construir torres altas e profusamente decoradas, anseia ter um domínio absoluto sobre as coisas do mundo, onde inclui as mulheres, objetificando-as como materiais de edificação do seu ego. Longe de qualquer ideia de serviço público, a liberdade que os magnatas como Trump têm para lucrar milhões com a exploração de recursos naturais, materiais e humanos sobrepõem-se à ideia de irmandade, tão necessária para que as sociedades funcionem e que as democracias floresçam. Já aqui o referi, o moto de uma das principais democracias europeias — liberdade, igualdade, fraternidade — é bem o exemplo de prioridades trocadas. Num regime humano essencialmente fraterno, a liberdade é o que resulta desse devir solidário, não o que o permite. Assim sendo, parece que a liberdade garante apenas o enriquecimento de alguns, para depois serem igualmente ricos e fraternos entre si.
Um dos atuais conselheiros de Trump diz que o filme The Apprentice é “malicioso” e que o “seu destino natural é uma pilha de lixo a arder”. Não concordamos, eu e o meu amigo. Pensamos, aliás, que um dia, mais tarde, se ainda existir um tempo no qual figuremos, vai a direita, toda, do centro ao extremo, ter de pedir desculpa por ter acreditado tanto e tão erradamente na liberdade (dos mercados) como imperativo ético: Trump é tão-só um dos filhos pródigos dessa crença. Não é a economia; é a fraternidade, estúpido(s).
Alejandro Arcos foi morto e decapitado seis dias depois de se eleger prefeito de Chilpacingo, no estado mexicano de Guerrero. O crime escancarou a força de cartéis da droga, estrategicamente ali instalados, às margens do oceano Pacífico. Os estudiosos da questão debatem quando a situação saiu do controle no país. No livro "Midnight in Mexico" (Meia-Noite no México), o jornalista Alfredo Corchado narra o que chama de descida do país rumo às trevas com as mudanças das políticas do governo federal em relação às drogas –da tolerância mutuamente proveitosa entre os políticos do PRI (Partido da Revolução Institucional) e os chefões dos cartéis à fracassada guerra às drogas quando o PAN (Partido de Ação Nacional) chega ao poder. Ao mesmo tempo, o autor vai acompanhando as trágicas transformações da cidadezinha onde nasceu, na fronteira dos Estados Unidos, trazidas pela chegada do narcotráfico.
Aqui, como lá, não faltam sinais de que estamos mergulhando na treva, enquanto o crime organizado muda de escala, abrangência das suas rentáveis atividades e capacidade de desafiar governos. A eliminação do empresário que lavava dinheiro para o PCC, ao desembarcar —sob escolta— no aeroporto de Guarulhos, "é o crime dizendo que está mais poderoso que o Estado", avalia o ex-policial e deputado estadual paulista Paulo Batista do Reis (PT). Talvez não seja —ainda—, mas o recado parece ser esse.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 72 facções criminosas agem no país, algumas incidindo de norte a sul, sem falar nas suas alianças internacionais.
Hoje, as atividades do crime já não se restringem ao tráfico de drogas; abarcam também transações ilícitas com madeiras, minerais, combustíveis adulterados e até pessoas –além de lavagem de dinheiro, fraudes financeiras, administração de hotéis e postos de gasolina, comércio de armas, extorsão, segurança privada, aluguel de imóveis, fornecimento de serviços de TV e internet, apostas, golpes online e financiamento clandestino de campanhas políticas.
Um ótimo resumo da questão, dos avanços institucionais já obtidos —importantes, porém insuficientes— e dos desafios pela frente, pode ser lido em "Brasil - Experiências de (in)segurança pública em São Paulo e Rio de Janeiro", parceria da Fundação Fernando Henrique Cardoso e da Escola de Segurança Multidimensional da USP, com patrocínio do Diálogo Interamericano, respeitado think thank de Washington.
O documento tem duas qualidades. A primeira é a de trazer a discussão para a agenda progressista, na qual ela tem crônica dificuldade de se firmar. Assim, o registro de abusos policiais, a discriminação racial, os maus-tratos e a superlotação dos presídios não travam o reconhecimento de que a segurança é demanda forte e legítima da população nem bloqueiam o debate de medidas concretas para a repressão eficaz ao crime.
O segundo mérito consiste em focalizar o que realmente faz falta: a construção de mecanismos de coordenação governamental entre os três níveis da Federação, de forma a aumentar a eficiência da ação pública. Há um caminho a percorrer até que o debate se transforme em ação. Mas disputar a agenda com o populismo de direita já é um começo promissor.
Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião.
Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso.Nicolau Maquiavel, "O príncipe"
A realidade não para de desmoralizar a ficção. A ficção científica, então, nem se fala —longe vão os tempos em que, para nosso deleite e admiração, seus romancistas viajavam a planetas impossíveis, aboliam o espaço/tempo e bolavam as piores formas de destruir a Humanidade. Hoje, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert Heinlein não seriam admitidos nem como estagiários na Altair, filial da sueca Morbius dedicada à substituição dos neurônios no cérebro humano por impulsos algorítmicos pela inteligência artificial.
Philip K. Dick morreu sem ver que seus androides que sonhavam com carneiros elétricos se transformariam num sistema operacional inacessível até à sua compreensão. Aliás, nenhum daqueles ases da ficção científica viveu para comparar suas antecipações futuristas com o que aconteceu nos últimos 15 anos. Tivessem chegado até nós, talvez se maravilhassem —ou, bem mais provável, se apavorassem com o que vem por aí.
Às vezes pode ser um conforto não viver para ver algo que, embora não se soubesse, estava na iminência de acontecer e seria insuportável. O escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) viu a guerra destruir a Europa e estreitar o mundo para os judeus como ele e para todas as pessoas sensíveis. Refugiou-se no Rio em 1940 e, quando constatou que a guerra chegara também aqui, matou-se. Se o destino de uma única pessoa já o comovia, como reagiria à Solução Final de Hitler, que mataria seis milhões de judeus?
E quem diria que, 2.500 anos depois de o grego Pitágoras ter estabelecido que a Terra era redonda; 2.200 anos que outro grego, Eratóstenes, calculasse sua circunferência; e 500 anos depois que o navegador português Fernão de Magalhães demonstrasse isso dando a volta a ela; enfim, quem diria que, justamente em nossa era, milhões de energúmenos jurariam que a Terra é plana? Copérnico, Eratóstenes e Magalhães não viveram para ver isso, claro. Ainda bem —iriam preferir a morte.
Mas nada supera a boa sorte de Tom Jobim, Millôr Fernandes e Carlos Heitor Cony. Eles já não levavam muita fé no Brasil. E nenhum deles viveu para ver Bolsonaro.
Ruy Castro