quinta-feira, 21 de novembro de 2024

The Apprentice

Tenho um amigo que é apaixonado por cinema e me arrasta para os mais variados filmes, sendo que nos basta um olhar de soslaio para, num acordo mútuo, abandonarmos a sala. E foi assim — animados por essa possibilidade tácita de desistência — que fomos ver o biopic de Donald Trump, The Apprentice. Ficámos até ao fim.


O argumento foi escrito pelo jornalista Gabriel Sherman, da Vanity Fair, a partir das biografias de Trump e do seu advogado Roy Cohn, de vídeos e entrevistas dos anos 70 e 80. No filme, o aprendiz é Trump e o mestre é o malévolo Cohn, que lhe ensina três regras que ecoam na personagem que conhecemos hoje: “Ataca, ataca, ataca”, “nega tudo” e “nunca admitas a derrota”. Trump detesta este biopic em particular por causa da cena em que se enfurece depois da mulher Ivana insultar a sua aparência física — diz-lhe que a sua cara parece uma laranja, que está velho e careca — ao que Trump reage forçando Ivana a deitar-se no chão, violando-a.

Na vida real, Ivana, no depoimento inicial de divórcio, descreve uma situação assim, mas mais tarde retira-a e esclarece: “Tivemos relações conjugais em que ele se comportou comigo de forma muito diferente da que tinha tido durante o nosso casamento. Como mulher, senti-me violada. Mas não quero que as minhas palavras sejam interpretadas num sentido literal ou criminal.” Trump, claro, negou as alegações de Ivana.

Nas décadas de 80 e 90, a Trump — e a homens com o mesmo tipo de sede — foram dadas amplas liberdades, premiando uma atitude de macho alfa, liberal, rico e, daí, célebre. Ou era pelo menos assim que o encaravam vários shows televisivos como o de Oprah Winfrey ou o de David Letterman, cujas audiências se divertiam a bandeiras despregadas com as alarvidades que Trump dizia, do tipo: “Sim, foi um bom ano para mim — vi-me livre da minha mulher” (I unloaded the wife). Mais adiante, na mesma entrevista a Letterman, Trump insurge-se contra a condenação de Mike Tyson a seis anos de prisão por crime de violação: “A mulher estava a dançar à frente dele às oito da noite e o homem acaba seis anos preso, não percebo…”

No filme, o jovem Trump revela uma obsessão com o topo; deseja construir torres altas e profusamente decoradas, anseia ter um domínio absoluto sobre as coisas do mundo, onde inclui as mulheres, objetificando-as como materiais de edificação do seu ego. Longe de qualquer ideia de serviço público, a liberdade que os magnatas como Trump têm para lucrar milhões com a exploração de recursos naturais, materiais e humanos sobrepõem-se à ideia de irmandade, tão necessária para que as sociedades funcionem e que as democracias floresçam. Já aqui o referi, o moto de uma das principais democracias europeias — liberdade, igualdade, fraternidade — é bem o exemplo de prioridades trocadas. Num regime humano essencialmente fraterno, a liberdade é o que resulta desse devir solidário, não o que o permite. Assim sendo, parece que a liberdade garante apenas o enriquecimento de alguns, para depois serem igualmente ricos e fraternos entre si.

Um dos atuais conselheiros de Trump diz que o filme The Apprentice é “malicioso” e que o “seu destino natural é uma pilha de lixo a arder”. Não concordamos, eu e o meu amigo. Pensamos, aliás, que um dia, mais tarde, se ainda existir um tempo no qual figuremos, vai a direita, toda, do centro ao extremo, ter de pedir desculpa por ter acreditado tanto e tão erradamente na liberdade (dos mercados) como imperativo ético: Trump é tão-só um dos filhos pródigos dessa crença. Não é a economia; é a fraternidade, estúpido(s).

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