sábado, 4 de setembro de 2021

Brasil leiteiro

 


À medida que se enfraquece, mais perigoso Bolsonaro se torna

Quanto mais isolado fica, mais perigoso se torna Jair Bolsonaro. Quanto mais votos ele perde como candidato à reeleição, mais dobra sua aposta no golpe que o manteria no poder.

Se não há consenso político para derrubá-lo, também não haverá para fazê-lo ditador caso seja derrotado na eleição do ano que vem – mas isso não o impedirá de continuar tentando até lá.

“A situação ainda vai piorar muito antes que possa começar a melhorar”, disse, ontem, a este blog um ministro do Supremo Tribunal Federal. Com ele concordam políticos de todas as cores.


Como atravessar os 16 meses que restam ao governo se Bolsonaro seguir esticando a corda na esperança de rompê-la a seu favor? Por ora, ninguém em Brasília ou fora daqui tem a resposta.

Ninguém acredita também numa súbita conversão de Bolsonaro à democracia. Presidente não pode tudo, mas pode muito. E o muito que pode basta para causar severos estragos ao país, como se vê.

Fernando Collor montou um ministério de notáveis imaginando com isso driblar o risco de impeachment – não adiantou. Eleito presidente com forte apoio militar, nem por isso apelou à farda.

Dilma se elegeu e se reelegeu contra a vontade dos militares. Acabou derrubada com o discreto apoio deles. Michel Temer salvou-se do impeachment apelando aos políticos, não às armas.

A única boa notícia do momento é a resistência cada vez maior da Justiça, do Congresso e de setores amplos da sociedade à ideia de trocar a democracia pela ditadura.

Para alguma coisa, afinal, serviria um presidente insano.

Dístico



Neste tempo de misérias feito
só se vive contrafeito

Mário da Silva Brito , "Suíte em dor maior"

O 7 de setembro deveria preocupar Bolsonaro

É fato comprovado: se o produto é muito ruim, melhor não fazer propaganda dele, porque as vendas podem baixar ainda mais. Jair Bolsonaro, como péssimo produto que é, deveria enxergar nas passeatas e motociatas de 7 de setembro uma ameaça à sua sobrevivência política. O que importa aqui é a qualidade do público em questão. Só deve dar maluco, do tipo que rasga dinheiro (com exceção do sujeito da Havan, que é maluco que não rasga dinheiro, mas que apoia maluco que rasga).


Por pior que seja a qualidade da nossa democracia — e ela é está bem aquém de sofrível –, qualquer golpe contra ela só faria o Brasil perder ainda mais dinheiro. Muito dinheiro. Nenhum empresário está disposto a bancar aventura golpista, porque não auferiria lucro nenhum disso. Inclusive porque viraríamos párias com certificado internacional. É nesse sentido que devem ser entendidos os manifestos — divulgados oficialmente ou não — do pessoal que não rasga dinheiro, muito pelo contrário. O amor pela democracia é bastante quantificável, senhoras e senhores. O bom negócio hoje é ser sociedade capitalista aberta, pluralista, ecológica, politicamente correta etc. etc., as meras aparências das quais o Brasil está forrado confirmando a essência no Ocidente e suas franjas (pertencemos às franjas).

É péssimo para Jair Bolsonaro, aliás, que até empresário mineiro — e empresário mineiro que pertencia à sua base de apoio, como Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do governo — tenha começado a se manifestar abertamente contra ameaças bolsonaristas e a cobrar por reformas que foram prometidas e morreram no terreno do estelionato eleitoral. Mostra que o seu impeachment talvez esteja deixando de ser tabu.

Um monte de gente maluca nas ruas, gritando por fechamento de STF, Congresso e intervenção militar — e se houver violência, pior ainda — só propagará a certeza de que Jair Bolsonaro deve ser chutado o quanto antes do Palácio do Planalto. Inclusive porque a sua permanência viabilizará ainda mais a candidatura de Lula, que é outra forma de rasgar, senão dinheiro no curto prazo, o futuro do país no longo termo. Se ninguém fizer nada, é o que ocorrerá. E a vitória do chefão petista, como eu já disse, poderá ser no primeiro turno. Teremos, então, um eterno 7 de setembro como o que se avizinha.

'Somos vistos como estrangeiros no nosso país'

Do lado de fora do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, a fumaça e o cheiro de churrasquinho do vendedor ambulante se misturavam aos pouco mais de 1.000 indígenas que olhavam um telão nesta quarta-feira. O ministros do tribunal haviam acabado de retomar o julgamento do processo do marco temporal, que pode definir o futuro da demarcação de terras indígenas e balizar toda a política indigenista no país. Durante toda a tarde, as partes envolvidas no processo fizeram suas defesas em um debate histórico, que pode estabelecer que só são terras indígenas aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos índios até a promulgação da Constituição de 1988, barrando, com isso, muitos dos processos de demarcação em curso e colocando sob risco de questionamentos terras já oficializadas como indígenas.

A polêmica que ronda o tema é tanta que, nesta quarta, os ministros nem sequer conseguiram iniciar seus votos, algo previsto para acontecer nesta quinta-feira, após as manifestações de mais algumas dezenas de amici curiae, ou amigos da corte, instituições interessadas na causa. Do lado de fora, centenas de indígenas de diversas etnias seguem acampados há mais de uma semana, vindos de todas as regiões do país para reivindicar o direito à terra. “Somos vistos como estrangeiros no nosso próprio país”, resume Valdelice Veron, uma Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Com uma clara e contundente política anti-indigenista, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) virou o grande alvo dos protestos ao longo da caminhada. Sob sua gestão, nenhuma terra foi demarcada até o momento. Nesta semana, Bolsonaro criticou, novamente, as demarcações de terra. “Acabaram com Roraima com aquelas demarcações, né? Acabaram com Roraima”, disse o presidente a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada na segunda-feira. “Tem alguma favela de índio lá?”, questionou, sem especificar ao que se referia. “Foi no Governo Dilma ou foi Lula a Raposa Serra do Sol?”, perguntou aos apoiadores.

O presidente mencionou o território Raposa Serra do Sol, que fica em Roraima, e que foi demarcado graças a um entendimento do Supremo com base no marco temporal. Na época, a corte entendeu que os povos originários já estavam ali antes da promulgação da Constituição e que, portanto, o território pertencia a eles. O entendimento da corte, no entanto, foi restrito àquele território somente.

Agora, o julgamento que está em jogo tem caráter de repercussão geral, o que significa que o que for decidido passa a valer para todos os casos relacionados ao tema. Defendido principalmente por ruralistas, que afirmam que é preciso haver segurança jurídica para os proprietários de terras, a tese causa apreensão nos indígenas, que temem um retrocesso e a perda de direitos. “Índio sem território não é índio”, diz Jaciene Brito, da etnia Tupinambá, na Bahia.

O acampamento recebeu a visita de políticos ao longo da semana. Faltando pouco mais de um ano para a eleição presidencial, subiu ao palco nesta quarta-feira Guilherme Boulos (PSOL), candidato na última eleição. Luís Inácio Lula da Silva (PT) não apareceu, mas enviou um breve áudio, colocado pela presidenta do seu partido, Gleisi Hoffmann, enaltecendo a luta indígena.

Acampados há mais de dez dias, muitos se despediram de Brasília nesta quarta-feira. Ainda assim, o acampamento não será desfeito. No final de semana, começam a chegar mulheres indígenas para a marcha das mulheres, que ocorre entre 7 e 11 de setembro. O evento levanta dúvidas sobre possíveis confrontos, já que começa no dia em que bolsonaristas devem sair às ruas para defender o presidente.

Nesta quinta-feira, o julgamento no STF deve ser retomado. Ainda restaram alguns advogados que farão as suas sustentações de cinco minutos cada um. Depois disso, os ministros começam a votar, partindo do mais novo até o mais velho, o decano. Assim, o ministro Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, inicia as votações. Existe uma expectativa em torno desse primeiro voto, que deve ser contrário aos direitos indígenas. Também é possível que o ministro peça vistas do processo, suspendendo o julgamento, sem data para retomar.

Se isso ocorrer, a corte acabará jogando nas mãos do Congresso a decisão sobre o futuro das terras indígenas no Brasil. Isso porque tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490/2007, que impõe na legislação a tese do marco temporal. Estabelece, dentre outras coisas, que as terras indígenas são somente aquelas já ocupadas ou reivindicadas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Também prevê a abertura dos territórios para exploração de projetos, e permite, dentre outras coisas, o contato com indígenas isolados.

Os olhos dos povos originários estão, portanto, voltados também para o Congresso. “Se o PL 490 for aprovado, vai ocorrer um grande massacre”, diz Valdelice Veron. “Porque hoje, diferentemente de quando a Constituição foi promulgada, a gente fala português, a gente não tem medo. A gente não vai sair do nosso mato e quem entrar, não vamos deixar sair também”.

No início de julho, o PL 490 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Agora, aguarda para ser apreciado pelo Plenário. Mas advogados que defendem a causa indígena ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que, ainda o projeto de lei seja aprovado no Congresso, a causa não estará perdida. “Se o PL for votado e sancionado antes da decisão do STF, ainda assim será possível questionar judicialmente sua constitucionalidade”, diz a advogada Julia Neiva, da Conectas. “E se alguém quiser argumentar que uma terra entraria dentro do marco temporal, é possível que essa decisão fique suspensa justamente por não haver uma decisão dentro do STF”, completa.