Há dez dias, o ministro Ernesto Araújo disse não se importar com a perda de relevância do Brasil no cenário internacional. “É bom ser pária”, desdenhou, em discurso para jovens diplomatas. O isolamento do país já é uma realidade desde a posse de Jair Bolsonaro. Mas pode se agravar a partir de terça-feira, quando os Estados Unidos escolherão seu próximo presidente.
Uma possível vitória de Joe Biden será péssima notícia para o capitão e seu chanceler olavista. Os dois ancoraram a política externa numa relação de vassalagem com Donald Trump. Agora arriscam ficar à deriva se o republicano for derrotado, como indicam as pesquisas.
Quando ainda sonhava em ser embaixador nos EUA, o deputado Eduardo Bolsonaro posou com um boné da campanha de Trump. O pai chegou perto disso. Às vésperas da eleição, ele reafirmou a torcida pelo magnata. “Não preciso esconder isso, é do coração”, declarou-se.
Para bajular o aliado, o bolsonarismo pôs a diplomacia brasileira de joelhos. O Itamaraty abriu mão de protagonismo, deu as costas à América Latina e trocou a defesa do interesse nacional pela subordinação ao interesse americano. Em setembro, permitiu que o secretário Mike Pompeo usasse Roraima como palanque para agredir um país vizinho.
Na pandemia, Bolsonaro imitou a pregação de Trump contra a Organização Mundial da Saúde, o uso de máscaras e as medidas de distanciamento. O negacionismo da dupla abriu caminho para o avanço do vírus. Não por acaso, os EUA e o Brasil lideram o ranking de mortes pela Covid.
O capitão surfou a onda nacional-populista que produziu o Brexit, elegeu Trump e impulsionou partidos de extrema direita na Europa. Uma derrocada do republicano deixará essa tropa sem comandante. Será um alento para quem aposta no diálogo e na cooperação internacional, hoje sufocados pelo discurso do ódio e pela intolerância.
Biden está longe de ser um símbolo do progressismo. Mesmo assim, comprometeu-se com a defesa da democracia, do meio ambiente e dos direitos humanos. Isso significa que sua possível vitória provocará mudanças sensíveis nas relações entre Washington e Brasília.
No primeiro debate presidencial, Biden já avisou que pressionará Bolsonaro a frear o desmatamento da Amazônia. Ele acenou com uma cenoura e um porrete: a criação de um fundo de US$ 20 bilhões para estimular a preservação da floresta ou a imposição de sanções econômicas ao Brasil.
No dia seguinte, o capitão acusou o democrata de tentar suborná-lo. Além de exagerar no tom, conseguiu errar o primeiro nome do adversário de Trump. O bate-boca indicou o que vem por aí se Joseph — e não John — assumir a Casa Branca.
O firme pronunciamento do vice Hamilton Mourão, contraposto a afirmações incisivas de Bolsonaro, suscita duas interpretações, mas é provável que as duas sejam uma só, com duas roupagens. E, como preliminar, note-se que o dito pelo vice tem mais do que o sentido de confronto, estendendo-se a importante inversão nas relações externas.
Bolsonaro vetou a compra, em qualquer tempo, de vacina chinesa contra a Covid-19: “Não vai haver compra, ponto final”. Antes, usou do mesmo tom definitivo a propósito do sistema 5G, que revolucionará as possibilidades de comunicações. Atrasados na criação do seu sistema, os Estados Unidos de Trump não admitem que o Brasil adote o sistema chinês, o qual, além da vantagem em tempo, evitaria custosas mudanças nos equipamentos de telecomunicações usados aqui, com muitos componentes chineses.
No seu estilo sucinto e de uso das entrelinhas, Mourão antecipa-se a novidades prenunciadas na campanha eleitoral americana. Joe Biden já indicou mais de uma vez que, se eleito, esvaziará a tutela imposta pelos Estados Unidos na América Latina. Com isso, aos países e só a eles caberia a escolha de suas relações comerciais e políticas. Não é o desejado por Bolsonaro, servil a Trump: “Quem vai escolher sou eu. Sem palpite por aí”.
O general-vice, porém, é claro: desde que asseguradas “soberania, privacidade e economia”, qualquer produtor de sistema 5G estará apto a disputar a adoção brasileira. O que, é claro, incluirá o sistema chinês indesejado por Bolsonaro.
A firmeza de Mourão não é a de opinião pessoal. Também não é a do vice de um governo que tem posição pública oposta.
Na competição política com João Doria em torno da vacina Sinovac, chinesa, a irracionalidade natural de Bolsonaro está perdendo. Mourão tanto parece dar-lhe um socorro, como parece aplicar-lhe um safanão excludente: “É lógico que o Brasil vai comprar o imunizante. O governo não vai fugir disso aí”, dos 46 milhões de doses previstos de início.
O passado guarda vários casos de divergência embaraçosa entre Bolsonaro e Mourão. As diferenças na comparação com as atuais começam no ambiente. O que lá atrás eram previsões, hoje é o notório desgaste do Exército, com os papéis deploráveis de vários do seus generais instalados no governo.
São exibições ora de arrogância e desatino, ora de ignorância e servilismo, diversas vezes de pusilanimidade sob ofensa e desmoralização. Isso tudo como personagens de um governo imbecilizado, destruidor, ridículo no fanatismo, negocista com o patrimônio nacional, sem projeto e sem rumo, antissocial e mortífero.
A interpretação de que Hamilton Mourão veio fortalecer as críticas dos generais Santos Cruz, mais diretas, e Rêgo Barros é cabível. Até óbvia. Mas a entrada repentina de Mourão em dois temas de grande relevância atual, em ambos levando Bolsonaro à beira do abismo, não é voz de decepções, arrependimento ou ressentimento. É voz mais grossa.
De modo diferente do planejado sob indução e orientação do general Eduardo Villas Bôas —quando, apesar de quase invalidado por doença neuromuscular, comandava o Exército porque visto como democrata—, estamos vendo os passos iniciais de um governo mais sob decisões e comando de militares do Exército do que de Bolsonaro e seu grupo.
O títere do plano, o presidente-laranja, fracassa. Se deterá os passos adversários, logo se verá. Enquanto isso, é justo reconhecer que o tropeção dessa aventura antidemocrática se deve tanto a Bolsonaro quanto aos generais ineptos que o circundam.
Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.
Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.
Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.
Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada da pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma firmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.
Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.
O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.
O presidente da República é um galhofeiro. Em visita oficial a um dos Estados mais pobres do País, em plena pandemia, o máximo que seu repertório intelectual, humano, administrativo e social permite é fazer piada homofóbica com a cor de um refrigerante.
Isso um dia depois de seu ministro do Meio Ambiente, o mesmo que já carrega na capanga dois acidentes ecológicos graves, sucessivos recordes de desmatamentos e queimadas na Amazônia e o Pantanal incinerado, ter usado um apelido de humorístico mexicano para responder a uma cobrança política feita a ele pelo presidente da Câmara por outra infantilidade parecida.
Esse estado de infantilismo governamental já vem cobrando um preço alto nos excruciantes 22 meses deste governo, mas olhar a balbúrdia comendo solta quando o que se avizinha é o precipício fiscal, tão bem descrito em artigo recente aqui no Estado por Nathan Blanche, da Tendências, é ainda mais assustador.
O ministro Paulo Guedes falou em audiência virtual ao Congresso nesta semana que passou. Tentou de novo fazer o Jogo do Contente que já lhe rendeu memes e perfis satíricos nas redes sociais com previsões tão otimistas quanto furadas.
Pediu aos deputados e senadores a votação de projetos que podem ajudar, no seu entender, a destravar a academia. O que mais repercutiu, no entanto, foram seus renovados ataques ao colega Paulo Marinho.
A insistência nessa briga com um ministro de pasta claramente menos apetrechada que a poderosa Economia, além da defesa subsequente de Bolsonaro a Marinho e episódios em que a equipe de Guedes fica falando sozinha, como o do decreto revogado de estudos para parcerias público-privadas em saúde, são reveladores da tibieza do ministro hoje.
Tanto que o mercado se preocupou mais com a briga pública entre Rodrigo Maia e Roberto Campos Neto, justamente pela pauta travada, que com de Guedes. Aturdidos com a inação do governo diante da pressão inflacionária, da dívida insustentável, do desemprego recorde, da falta de saída para a reforma tributária, da iminente implosão do teto de gastos, da falta de saída para o fim do auxílio emergencial e outras bombas econômicas, investidores, economistas, banqueiros, analistas econômicos e empresários já veem Campos Neto como um sucessor possível, com menos disposição a vender quimeras e mais sobriedade para negociar o que é preciso ser feito e nunca sai do papel.
Acontece que há algo que precede qualquer eventual mudança ministerial: o presidente. Bolsonaro não está nem aí para a emergência fiscal e econômica. Isso só o abala quando e se mexe no ponteiro de sua popularidade, algo a que ele se agarra com o afinco de quem não percebe que ela nem é tão alta e nem é duradoura.
Foi o presidente que deu ordem clara a Guedes para não criar nenhuma marola de temas espinhosos enquanto durasse a eleição, porque achou que só porque voltou a ser recebido por puxa-sacos em aeroportos iria “varrer o PT do mapa”, a única questão que sua imaginação limitada é capaz de alcançar.
Não rolou, até aqui. Aliás, nem para ele nem para o PT, num sinal de que 2020, com todos os seus flagelos concretos, pode fazer o País começar uma caminhada rumo a alguma racionalidade política.
Faltam 15 dias para o primeiro turno. Enquanto isso, a Comissão Mista de Orçamento segue paralisada por uma briga intestina na capenga base bolsonarista, o que nos deixa sem política fiscal clara para 2021, um ano que não será do pós-pandemia, o que já seria um pesadelo, mas o ano 2 da pandemia.
Guedes está com a caixa de ferramentas vazia. E Bolsonaro está mais preocupado em sacudir o Guaraná Jesus e abrir para ver se espirra na cara do País. E se possível em fazer algum gracejo nojento enquanto chacoalha.
Os ânimos vacilam no planeta Covid. À medida que os números escalam nos boletins, o cansaço e o pessimismo condensam no interior das paredes das casas. A exaustão agrava-se com os sobressaltos do discurso público, já lá vão sete meses de febre, e a sanidade mental treme. Na rua, encontrar um amigalhaço é farejar sinais de esgotamento emocional nos seus gestos, tentar tirar-lhe a pulsação à distância, rezar para que não esteja a colapsar por dentro e seguir viagem. Estamos em crise. No presente lodo, o cocktail do medo, fadiga e desconhecimento, servido com gelo nas redes sociais, está a fazer transbordar um fenómeno antigo a uma escala inédita: teorias da conspiração.
Este sábado, quem passasse pelo Rossio, em Lisboa, ouvia gritos e aplausos histriónicos. A manifestação “Unidos pela Liberdade, Pela Verdade de Todos” juntou duas centenas de pessoas num amontoado desmascarado de gente em êxtase. À distância, pareciam cidadãos contra a utilização obrigatória de máscara, mas logo se decifravam discursos bastante mais exóticos. Ao perto, mãos e mãozinhas seguravam cartões com as palavras “5G”, “maçonaria”, “Bielderberg”, “Opus Dei”, “Illuminati” ou “Bill Gates”, sublinhadas a cores berrantes. A confusão de mensagens anunciava o pior: negacionistas da Covid. Por outras palavras, gente convencida de que “isto do vírus” é uma farsa. Alegando independência, audácia e liberdade de pensamento, ali estavam duzentas pessoas convictas de que um vírus que já matou mais de um milhão de pessoas à face da Terra é um embuste. Provavelmente, cada uma delas também com a sua própria verdade quanto ao formato da Terra.
Possuir a capacidade de não acreditar num facto é fascinante. Se é preciso firmeza para cultivarmos fé naquilo que não vemos, nem jamais poderemos comprovar, o poder de negar o que está à vista é longínquo – é de uma obstinação gloriosa. No fundo, é o poder de um faquir, determinado a não aceitar a ideia dos pregos que se lhe cravam nos pés, porém sem o encanto da mística persa. Ora, aqui vão ainda mais longe: ter flexibilidade mental para negar que o vírus existe e se propaga como a ciência comprova já seria obra. Recusar esse facto, de justificação simples, para o enquadrar numa teoria mirabolante é de outro nível. Ou seja, negam-se a acreditar que um vírus, com óbitos comprovados e 40 milhões de diagnósticos positivos à escala mundial, exista e seja contagioso como comprovado pela comunidade científica. Acham mais credível, por exemplo, que o fundador da Microsoft tenha criado o vírus em laboratório, quiçá por tédio profissional, e o esteja a difundir através de antenas 5G, em complô com uma série de sociedades secretas – maçonaria, Opus Dei, Nova Ordem Mundial – e a conivência das mais altas instâncias governamentais do planeta. Sim. É bastante mais plausível acreditar que tenha sido assim.
Aqui, a investigação científica aponta conclusões interessantes. Segundo os académicos que o estudaram, o fenómeno das teorias da conspiração resulta de uma necessidade, tão natural quanto humana, de encontrar justificação para um acontecimento que não se compreende ou que parece grande demais para ter uma justificação simples. Perante um facto incompreendido, imprevisível ou tido como aleatório, há quem desenvolva, pelo choque, permeabilidade a teorias complexas, alimentadas pela paranoia, pela mania da perseguição e pela ideia de que há forças ocultas a conspirar nas suas costas. No fundo, é uma resposta individual à violência do embate na dúvida, à ansiedade flamejante de justificar um acontecimento que ultrapassa a nossa capacidade para lidar com ele: da morte súbita de Elvis Presley à de Marilyn Monroe ou John Lennon, à ida do Homem à Lua, o 11 de setembro ou a pandemia de Covid-19. Encarar as mais profundas dúvidas existenciais, muitas vezes de um patamar de ignorância profunda, confusão e medo, pode mergulhar as pessoas nos subterfúgios da alucinação.
O problema? Sendo este um fenómeno antigo, torna-se claro o seu potencial enquanto arma política. A alienação facilita a manipulação de massas, gerando uma atmosfera de desconfiança, ódio e, no limite, de guerra. Aqui, é importante relembrar o papel fulcral das teorias conspiratórias contra os judeus na instalação do clima de ódio antissemita que levou ao genocídio nazi. Recentemente, descobriu-se que há, em 2020, quem ainda difunda os “Protocolos dos Sábios do Sião” – documento histórico falso que inspirou algumas das mais assassinas teorias da conspiração nos séculos XIX e XX. O caminho do ódio vai-se abrindo no breu. Eu, por exemplo, seria levado a negar com convicção que alguém, a não ser uma pessoa com um distúrbio clínico, pudesse crer na teoria da conspiração QAnon. O movimento QAnon propaga a ideia delirante de que Donald Trump é o salvador do universo e está a combater um governo mundial secreto constituído por pedófilos e canibais, ao qual pertencem celebridades e políticos democratas. Absurdo? Pois. O movimento já chegou a 70 países, tendo um número considerável de membros em França e na Alemanha, ecoando junto de clãs supremacistas brancos e neonazis. Em Portugal, soubemos esta semana que já há, pelo menos, 250 portugueses infectados por essa doença.
É, portanto, prioritário pisar um travão neste desabamento moral coletivo. Em primeiro lugar, urge reconhecer que o pânico instalado, administrado diariamente, está a ditar a exaustão emocional e o distúrbio cognitivo das populações. Em segundo, impera assumir que nunca foi tão decisiva a urgência de reforçar a verdade, a cientificidade, a informação verificada, a confiança dos cidadãos nas instituições e a prevalência do facto sobre as fés e os achismos. Aqui, é fundamental que o poder político e os media assumam uma postura pedagógica, pacífica, objetiva, explicativa e menos alarmista, desvairada e sensacionalista. Ainda há tempo, mas temos de agir já.
Por último, porque o riso é a maior arma face ao desespero e a paciência a mais heroica das virtudes, uma palavra sobre a emboscada a Marcelo Rebelo de Sousa por quatro cidadãos sem máscara. Marcelo foi protagonista de mais um episódio cómico, sendo caçado à saída do restaurante por quatro pessoas, entre as quais um antigo aluno seu da Faculdade de Direito, à espera do Presidente para o confrontar com a “verdade” sobre a grande mentira que é a Covid-19. Em vez de se esquivar com um “então boa noite”, como qualquer mortal faria, o Presidente da República resolveu dispender 25 minutos da sua agenda para ouvir, de pé, algures em Vila do Bispo, um ex-aluno a acusá-lo de estar refém dos Illuminati, do Bill Gates, do Durão Barroso, e provavelmente também do Poupas Amarelo – confesso que me distraí a meio do vídeo. A pachorra. Marcelo plantou-se à escuta de um cidadão desnorteado, confuso, esbanjando histórias do arco da velha que incriminavam tudo e todos, vociferando sobre como a pandemia foi criada por cinco famílias capitalistas para conquistar o Ocidente e a China. Ouviu. Ao longo de quase meia hora, respondeu-lhe com a paciência de um monge tibetano de fato e gravata, à fresca, no exterior do restaurante.
Depois dessa grande lição de tolerância e democracia, só tomara que não se tenha constipado.
Tancredo Neves assinalou certa vez, com a experiência de quem viveu muitos momentos tensos e decisivos: “A esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as nações, ao ressurgirem dos desastres históricos”. O mundo inteiro ainda assiste apreensivo e perplexo o furacão que devastou 2020, a partir da explosão pandêmica da COVID-19. Para despertar esperança, estadistas e líderes políticos precisam de firmeza, clareza, capacidade de previsão e compartilhamento convincente sobre os rumos a serem seguidos. Mas a sociedade não se alimenta só de retórica e promessas, quer ações e resultados.
Confesso que está difícil, no Brasil de nossos dias, ser um “realista esperançoso” como queria Ariano Suassuna. A cruzada contra a “vacina chinesa”, o fato de o próprio governo desestimular a população a se imunizar e a permanente exaltação de “medicamentos milagrosos” contra a COVID-19 não formam propriamente um quadro otimista. Tantos desafios e a energia sendo desperdiçada em polêmicas inúteis. Como diria Nelson Rodrigues é óbvio ululante que só serão oferecidas à população vacinas registradas na ANVISA, portanto seguras e eficazes. Assim como é uma sonora idiotice achar que há um plano diabólico do Partido Comunista Chinês por trás de sua vacina.
Se o horizonte no front da saúde pública é turvado pelo nevoeiro, na economia o cenário também é confuso e preocupante. O ufanismo governamental pode até tentar pintar de cor de rosa a realidade, mas o Brasil fechará o ano com uma dívida pública equivalente a 100% do PIB, um déficit primário de cerca de 860 bilhões, títulos do Tesouro Nacional sendo negociados com prazos cada vez mais curtos e juros cada vez mais altos, dólar batendo recordes de valorização e o mercado financeiro e de capitais nervoso e desconfiado.
Não é para menos. Hoje entramos em novembro e faltarão apenas oito semanas de trabalho parlamentar. A LDO ainda não foi votada. A Comissão Mista de Orçamento sequer foi instalada. O Orçamento Geral da União, que é a bússola necessária para sinalizar como lidaremos com a enorme restrição fiscal em 2021 e afastar especulações sobre experimentos heterodoxos e extravagantes, poderá não ser votado. As propostas de emendas constitucionais do pacto federativo, emergencial e dos fundos públicos e suas variantes, que poderiam flexibilizar a execução orçamentária, descansam empoeiradas nas gavetas. A dois meses do final do ano, os 64 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial durante a pandemia não têm ideia do que ocorrerá em janeiro. E os 17 setores desonerados? Qual a previsão para o início do próximo ano? Nenhuma.
As reformas tributária e administrativa empacaram diante da falta de apetite reformador do governo. As privatizações naufragaram no vácuo de liderança e de apoio parlamentar. Medidas desburocratizantes e a abertura externa caminham a passo de tartaruga. O Congresso, que tanto tem a deliberar ainda em 2020, está bloqueado em suas votações por obstrução parlamentar, instrumento clássico das oposições. Mas aqui não, é a própria base do Governo liderada pelo “Centrão” que obstruí os trabalhos.
Para Ariano Suassuna, o otimista é um tolo e o pessimista um chato. Mas está difícil ser “um realista esperançoso” diante dos fatos que marcam o final de ano de um Brasil mergulhado na pandemia.
Esse é o governo da ignorância autoritária
Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
Tempos de turbulência, nervosos, ciclo do medo, paisagens mortuárias, doentes aqui e nas lonjuras do planeta. Hora da grande reflexão: o que tenho, o que sou e o que serei neste novo mundo? A reflexão é uma estreita vereda por onde podemos passar, sob a crença de que será necessário lapidar valores e virtudes ou mesmo tentar adquiri-las.
Sem perder tempo. O sábio Sêneca, ao escrever sobre a brevidade da vida, ensina: "Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente, constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou por nós sem que tivéssemos percebido".
Administrar o tempo é um desafio do cotidiano. "Quem mata tempo é suicida", satirizava Millôr Fernandes. O dramaturgo inglês H.D. Thoreau advertia: "Como se fosse possível matar o tempo sem ferir a eternidade".
Tempos de prudência supõem risco, incerteza, o desconhecido. André Comte-Sponville diz que a prudência sugere a ética da convicção ou a ética da responsabilidade, nos termos de Max Weber. Respondemos por nossos atos e suas consequências.
Ao lado da prudência, impõe-se a moderação, tão importante nesses tempos agressivos. Não exagerar, não romper os limites de nossas identidades, desfrutar a liberdade, contentar-se com o estritamente necessário. A intemperança, dizia Montaigne, é “a peste da volúpia”.
Tempos de pavonice, de alta visibilidade, de desfiles canhestros na mídia. Tempos de Luís XIV, que desfilava em Versailles em seu cavalo branco adornado de diamantes. Tempos do Estado-Espetáculo, em que políticos desfilam vaidades. Daí desponta a humildade, “a virtude do homem que sabe não ser Deus”, segundo Sponville. Os mais generosos costumam ser os mais humildes pela misericórdia e compaixão de seu caráter.
Tempos de dureza, de notícias tristes, ódio, com os opostos se matando nas arenas de vingança. Não é hora de um contraponto? Ítalo Calvino, em “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, cita Leopardo e o insustentável peso de viver, ao que devemos contrapor com “imagens de extrema leveza, como os pássaros, a voz de uma mulher que canta na janela, a transparência do ar e, sobretudo, a lua”.
Tentemos viver de modo mais leve, sem rompantes e atitudes tresloucadas. Tempos de injustiça, de acusações malévolas, de fake news que sujam a imagem de adversários. Busquemos a deusa Têmis, com seu equilíbrio, ao apontar para a ordem e a igualdade.
Dizia Kant: “é justa toda ação, cuja máxima permite que a livre vontade de qualquer um coexista com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal”.
Justiça se liga aos atos de boa-fé, sinceridade, verdade. A boa fé suscita reconhecimento às qualidades humanas e tal verdade sugere afastar a gabolice, o estilo fanfarrão, a dissimulação, a enganação.
Por fim, o amor. Amar os entes queridos, praticar boas ações, eliminar eventuais doses de ódio em meio a essa intensa polarização política.
Reportagem publicada na primeira página da edição de do jornal americano The New York Times acusa o presidente Jair Bolsonaro de, junto com o chefe de governo dos EUA, Donald Trump, colaborar para a debilitação dos sistemas de saúde no continente latino-americano e o consequente recrudescimento da pandemia de coronavírus na região.
O texto, intitulado, na versão online, "Como Trump e Bolsonaro quebraram as defesas da América Latina para a covid-19", afirma que os dois líderes "compartilham o desprezo pelo vírus" e implementam uma "campanha ideológica" que prejudicou a "capacidade da América Latina de responder à covid-19".
Ambos os presidentes, segundo a publicação, fizeram da hidroxicloroquina um item central da reação à pandemia, "apesar do consenso médico de que a droga é ineficaz e até perigosa".
O jornal diz que Washington e Brasília agiram para que 10 mil médicos e enfermeiros cubanos fossem obrigados a abandonar áreas empobrecidas de Brasil, Equador, Bolívia e El Salvador. Muitos deles ficaram sem substitutos "somente meses antes de a pandemia chegar".
O artigo cita a evasão dos profissionais de saúde cubanos do Brasil com o fim da parceria com Cuba no programa Mais Médicos e a pressão do governo americano para que mais de mil médicos cubanos deixassem os outros três países latino-americanos no ano passado.
Os dois governos conforme a publicação, "atacaram a agência internacional mais capacitada a combater o vírus, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), citando seu envolvimento com o programa médico cubano".
"Com a ajuda de Bolsonaro, Trump quase levou a agência à falência ao reter o financiamento prometido no auge do surto, em uma extensão não divulgada anteriormente", diz a reportagem.
"Sistemas de saúde fracos e cidades superpopulosas tornaram a América Latina inerentemente vulnerável. Mas ao expulsar médicos, bloquear medidas de assistência e promover falsas curas, Trump e Bolsonaro pioraram a situação, desmontando defesas", afirma o artigo. "Agora, a América Latina, com um terço das mortes no mundo, sofreu mais gravemente com a covid-19 do que qualquer outra região."
"Os Estados Unidos pararam de pagar suas contribuições anuais de 110 milhões de dólares, mais da metade do orçamento básico da agência. O governo Bolsonaro também congelou o pagamento de 24 milhões de dólares em dívidas. Bolsonaro e sua equipe se recusaram a comentar este artigo", diz o texto.