domingo, 1 de novembro de 2020

Teorias da constipação

Os ânimos vacilam no planeta Covid. À medida que os números escalam nos boletins, o cansaço e o pessimismo condensam no interior das paredes das casas. A exaustão agrava-se com os sobressaltos do discurso público, já lá vão sete meses de febre, e a sanidade mental treme. Na rua, encontrar um amigalhaço é farejar sinais de esgotamento emocional nos seus gestos, tentar tirar-lhe a pulsação à distância, rezar para que não esteja a colapsar por dentro e seguir viagem. Estamos em crise. No presente lodo, o cocktail do medo, fadiga e desconhecimento, servido com gelo nas redes sociais, está a fazer transbordar um fenómeno antigo a uma escala inédita: teorias da conspiração.



Este sábado, quem passasse pelo Rossio, em Lisboa, ouvia gritos e aplausos histriónicos. A manifestação “Unidos pela Liberdade, Pela Verdade de Todos” juntou duas centenas de pessoas num amontoado desmascarado de gente em êxtase. À distância, pareciam cidadãos contra a utilização obrigatória de máscara, mas logo se decifravam discursos bastante mais exóticos. Ao perto, mãos e mãozinhas seguravam cartões com as palavras “5G”, “maçonaria”, “Bielderberg”, “Opus Dei”, “Illuminati” ou “Bill Gates”, sublinhadas a cores berrantes. A confusão de mensagens anunciava o pior: negacionistas da Covid. Por outras palavras, gente convencida de que “isto do vírus” é uma farsa. Alegando independência, audácia e liberdade de pensamento, ali estavam duzentas pessoas convictas de que um vírus que já matou mais de um milhão de pessoas à face da Terra é um embuste. Provavelmente, cada uma delas também com a sua própria verdade quanto ao formato da Terra.

Possuir a capacidade de não acreditar num facto é fascinante. Se é preciso firmeza para cultivarmos fé naquilo que não vemos, nem jamais poderemos comprovar, o poder de negar o que está à vista é longínquo – é de uma obstinação gloriosa. No fundo, é o poder de um faquir, determinado a não aceitar a ideia dos pregos que se lhe cravam nos pés, porém sem o encanto da mística persa. Ora, aqui vão ainda mais longe: ter flexibilidade mental para negar que o vírus existe e se propaga como a ciência comprova já seria obra. Recusar esse facto, de justificação simples, para o enquadrar numa teoria mirabolante é de outro nível. Ou seja, negam-se a acreditar que um vírus, com óbitos comprovados e 40 milhões de diagnósticos positivos à escala mundial, exista e seja contagioso como comprovado pela comunidade científica. Acham mais credível, por exemplo, que o fundador da Microsoft tenha criado o vírus em laboratório, quiçá por tédio profissional, e o esteja a difundir através de antenas 5G, em complô com uma série de sociedades secretas – maçonaria, Opus Dei, Nova Ordem Mundial – e a conivência das mais altas instâncias governamentais do planeta. Sim. É bastante mais plausível acreditar que tenha sido assim.

Aqui, a investigação científica aponta conclusões interessantes. Segundo os académicos que o estudaram, o fenómeno das teorias da conspiração resulta de uma necessidade, tão natural quanto humana, de encontrar justificação para um acontecimento que não se compreende ou que parece grande demais para ter uma justificação simples. Perante um facto incompreendido, imprevisível ou tido como aleatório, há quem desenvolva, pelo choque, permeabilidade a teorias complexas, alimentadas pela paranoia, pela mania da perseguição e pela ideia de que há forças ocultas a conspirar nas suas costas. No fundo, é uma resposta individual à violência do embate na dúvida, à ansiedade flamejante de justificar um acontecimento que ultrapassa a nossa capacidade para lidar com ele: da morte súbita de Elvis Presley à de Marilyn Monroe ou John Lennon, à ida do Homem à Lua, o 11 de setembro ou a pandemia de Covid-19. Encarar as mais profundas dúvidas existenciais, muitas vezes de um patamar de ignorância profunda, confusão e medo, pode mergulhar as pessoas nos subterfúgios da alucinação.

O problema? Sendo este um fenómeno antigo, torna-se claro o seu potencial enquanto arma política. A alienação facilita a manipulação de massas, gerando uma atmosfera de desconfiança, ódio e, no limite, de guerra. Aqui, é importante relembrar o papel fulcral das teorias conspiratórias contra os judeus na instalação do clima de ódio antissemita que levou ao genocídio nazi. Recentemente, descobriu-se que há, em 2020, quem ainda difunda os “Protocolos dos Sábios do Sião” – documento histórico falso que inspirou algumas das mais assassinas teorias da conspiração nos séculos XIX e XX. O caminho do ódio vai-se abrindo no breu. Eu, por exemplo, seria levado a negar com convicção que alguém, a não ser uma pessoa com um distúrbio clínico, pudesse crer na teoria da conspiração QAnon. O movimento QAnon propaga a ideia delirante de que Donald Trump é o salvador do universo e está a combater um governo mundial secreto constituído por pedófilos e canibais, ao qual pertencem celebridades e políticos democratas. Absurdo? Pois. O movimento já chegou a 70 países, tendo um número considerável de membros em França e na Alemanha, ecoando junto de clãs supremacistas brancos e neonazis. Em Portugal, soubemos esta semana que já há, pelo menos, 250 portugueses infectados por essa doença.

É, portanto, prioritário pisar um travão neste desabamento moral coletivo. Em primeiro lugar, urge reconhecer que o pânico instalado, administrado diariamente, está a ditar a exaustão emocional e o distúrbio cognitivo das populações. Em segundo, impera assumir que nunca foi tão decisiva a urgência de reforçar a verdade, a cientificidade, a informação verificada, a confiança dos cidadãos nas instituições e a prevalência do facto sobre as fés e os achismos. Aqui, é fundamental que o poder político e os media assumam uma postura pedagógica, pacífica, objetiva, explicativa e menos alarmista, desvairada e sensacionalista. Ainda há tempo, mas temos de agir já.

Por último, porque o riso é a maior arma face ao desespero e a paciência a mais heroica das virtudes, uma palavra sobre a emboscada a Marcelo Rebelo de Sousa por quatro cidadãos sem máscara. Marcelo foi protagonista de mais um episódio cómico, sendo caçado à saída do restaurante por quatro pessoas, entre as quais um antigo aluno seu da Faculdade de Direito, à espera do Presidente para o confrontar com a “verdade” sobre a grande mentira que é a Covid-19. Em vez de se esquivar com um “então boa noite”, como qualquer mortal faria, o Presidente da República resolveu dispender 25 minutos da sua agenda para ouvir, de pé, algures em Vila do Bispo, um ex-aluno a acusá-lo de estar refém dos Illuminati, do Bill Gates, do Durão Barroso, e provavelmente também do Poupas Amarelo – confesso que me distraí a meio do vídeo. A pachorra. Marcelo plantou-se à escuta de um cidadão desnorteado, confuso, esbanjando histórias do arco da velha que incriminavam tudo e todos, vociferando sobre como a pandemia foi criada por cinco famílias capitalistas para conquistar o Ocidente e a China. Ouviu. Ao longo de quase meia hora, respondeu-lhe com a paciência de um monge tibetano de fato e gravata, à fresca, no exterior do restaurante.

Depois dessa grande lição de tolerância e democracia, só tomara que não se tenha constipado.

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