segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Santa Ceia do Brasil


Notas falsas

Vivemos um tempo de versões e contraversões – ou seriam contravenções? – na nobre arte da política. Melhor dizendo, na pobre arte da política… Ao mesmo tempo cremos e duvidamos de tudo; simultaneamente duvidamos e cremos em nada. Só pode ser um truque para dissimular o que, se explícito, ruborizaria cafetões e faria bispos perderem a fé. A verdade se tornou um conceito complexo, como ficará difícil de notar a seguir, em novas notas falsas:

Urna – misteriosa e sublime esposa de Átila, o rei dos Urnos. Diz-se que da Urna saem verdades cruéis e consequências imprevisíveis. Houve um tempo em que uma das mais baixas ofensas era chamar alguém de Filho da Urna. Sem que o temível Átila ouvisse, é claro.

Voto – espécie de jogo de azar no qual a banca ganha sempre. Quando praticado em escrutínios transparentes, costumam ser sonoros, ganhando o nome de Voz e Voto. Ouço por aí ser o que temos.


Voto secreto – o mesmo jogo. Porém, quando praticado no Parlamento, ganha consequências “in”: indecentes, incríveis, inclementes, inomináveis.

Voto universal – igual, e com as mesmas características dos bingos de paróquia: todo mundo pode jogar, seja homem, mulher, novo, velho, alto, baixo, doutor, analfabeto. A banca segue ganhando – isso não muda nunca.

Prefeito – aglutinação de pré e feito. Isto é, nada de novo, mais do mesmo. Pessoa escolhida ao prometer mudanças e, depois, seguirá movida a repetir fórmulas. Também pode ser chamado de Alcaide, que vem do árabe (o juiz), sem perder o significado da alcunha, que vem do árabe (a… depreenda você).

Vereador – aglutinação de ver-e-a-dor. Ou seja, uma pessoa para fiscalizar os atos do prefeito e garantir que doa no bolso do cidadão. “Cumpli” sua missão no espaço urbano através da cumpli-cidade.

Deputado – não iremos aqui decupar a palavra para não ferir leitores mais pudicos. Digamos que sejam pessoas escolhidas para enganar (deturpados), constranger (debochados), fazer m… (defecados), entre outras coisas.

Sufrágio – espécie de VAR no jogo do Voto cuja incumbência é garantir que a banca ganhe sempre. Conta aquilo (e com aquilo) que o povo depositou.

Horário Eleitoral Gratuito – programação de mídia com uma relação interessantíssima de custo e benefício: custa para uns, beneficia outros.

Brasília – Disneylândia tupiniquim com seus palácios, sua corte, seus personagens bizarros, seus enredos fantásticos. Cada uma das atrações existe para provocar ora terror, ora deslumbramento, ora fantasia. No fundo, todo mundo sabe que lá tudo é de mentira.

Futuro de idiotas

Nós, professores, queremos criar cidadãos autônomos e críticos, mas, em vez disso, estamos criando o ciber-proletariado, uma geração sem dados, sem conhecimento, sem léxico. Estamos vendo o triunfo de uma religião tecnocrática que evolui para menos conteúdo e alunos mais idiotas. Estamos servindo a tecnologia e não a tecnologia a nós
Andreu Navarra, "Devaluación Continua" (Desvalorização Contínua)

País trapaceado

O país está sendo trapaceado à luz do dia por aqueles que deveriam representar os cidadãos brasileiros, deputados e senadores. O Congresso, que havia começado a recuperar sua credibilidade junto à opinião pública, liderando o projeto de reformas do Estado, dilapida seu patrimônio em reconstrução adotando medidas em benefício próprio, sem debates com a sociedade.

Quase à surdina, um projeto de reorganização da legislação partidária e eleitoral foi aprovado na Câmara e está a ponto de ser votado no Senado, num ritmo sumário que, mais uma vez, impede o amplo debate.

Entidades de combate à corrupção, como a Transparência Partidária, fizeram estudos e divulgaram um documento alertando para os prejuízos que esse projeto pode trazer.


Mais dinheiro público está prestes a ser gasto, se aprovado esse projeto. Ele permite o pagamento, com dinheiro público, de advogados para políticos acusados de corrupção; permite o pagamento de advogado em processo de “interesse indireto” do partido; permite o pagamento de passagens aéreas com recurso do Fundo Partidário para qualquer pessoa, inclusive não filiados.

As multas por desaprovação das contas só podem ser aplicadas se ficar comprovada conduta dolosa, ou seja, intencional. Em consequência, as prestações de contas ainda não transitadas em julgado em todas as instâncias serão anistiadas.

Para facilitar as coisas para nossos candidatos a parlamentar, pessoas físicas poderão pagar despesas de campanha com advogados e contadores sem limite de valor, o que abre margem para caixa dois e lavagem de dinheiro público.

O combate à corrupção também sofre com o projeto em outro nível, pois retira as contas bancárias dos partidos dos controles da Receita Federal de Pessoas Politicamente Expostas. Quem será mais exposto politicamente que os partidos políticos?

A permissão de que partidos utilizem sistemas diferentes para prestação de contas demonstra a intenção de dificultar a fiscalização. A padronização das declarações, implementada em 2017, não será mais obrigatória.

Qual a razão para isso, a não ser impedir a comparação e a verificação mais eficiente das prestações de contas dos partidos políticos?

Outro ponto da lei que terá consequências diretas e indiretas no controle dos candidatos aptos a concorrer: eles poderão disputar a eleição sub judice, e a avaliação da regularidade da candidatura ocorrerá só na data da posse. O que certamente causará uma disputa judicial que gerará parlamentares atuando com pendências judiciais.

Ao mesmo tempo em que diminui as obrigações dos partidos, o projeto aumenta as responsabilidades da Justiça Eleitoral que, como se sabe, não tem estrutura para acumular mais funções.

Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) de enviar para a Justiça Eleitoral processos da Lava-Jato tidos não como crimes comuns, mas eleitorais, como o caixa dois, já levantaram discussões sobre o tema.

O projeto transfere mais responsabilidades para o Tribunal Superior Eleitoral e para os TREs. Passa a ser da Justiça Eleitoral a responsabilidade pela gestão dos dados dos filiados aos partidos; impede que a Justiça Eleitoral peça aos partidos documentos emitidos pela administração pública ou por entidade bancária; determina que a penalização a diretório municipal ou estadual só pode ser aplicada se a Justiça Eleitoral comprovar que notificou o diretório superior; cria novo recurso com efeito suspensivo, estimulando o acúmulo de processos no TSE e esvaziando o poder dos tribunais regionais eleitorais.

Num momento em que o país está literalmente quebrado, chega a ser escandaloso que as campanhas eleitorais exijam quase R$ 4 bilhões dos cofres públicos no próximo ano. Muitos cortes terão que ser feitos para que os partidos políticos recebam essa verba pública.

Não satisfeitos com o pretendido aumento do fundo eleitoral, os parlamentares ampliam as possibilidades de utilização do fundo partidário a ponto de transformá-lo praticamente em financiamento de caráter pessoal.

A saga dos talibãs tropicais

Liberdade de expressão e democracia ocuparam grande parte da agenda da semana. Volto a elas porque, nesses casos, o tema nunca é antigo. E volto também porque talvez minha experiência possa acrescentar algo. Refiro-me à decisão de Crivella de censurar o beijo gay num dos livros da Bienal.


Eu o conheço um pouco. Em 2008, quando começava a campanha eleitoral, éramos candidatos. Ele me criticou por apoiar a relação de homem com homem. Respondi apenas que isso não era o mais interessante para mim naquele momento. Vivíamos uma epidemia de dengue, como hoje vivemos, e o que me interessava era a relação do homem com o mosquito.

Crivella está de novo no limiar de uma campanha eleitoral. É hora de tirar o tema do homossexualismo da cartola e tentar agrupar sua tropa de fiéis eleitores. Nada mais que isso. Agora não é apenas candidato. É o prefeito do Rio. Não é ingênuo a ponto de ignorar que sua ação vai promover a venda do livro alvo de sua cruzada.

Para ele, isso não tem muito importância. Não quer verdadeiramente combater o homossexualismo, mas agrupar alguns votos. Se os gays desaparecessem do mundo, ele ficaria amuado no seu canto, sem um tema para aquecer a campanha.

Foi muito animador ver a reação dos artistas e a pronta resposta do STF. Definiu-se um limite que dificilmente será transposto no Brasil, sem destruir também as bases da democracia.

No passado foi diferente. A batalha contra a censura do filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Goddard, foi mais difícil porque aconteceu no auge de um plano econômico.

Sarney não tinha razão para temer. O filme, que exibi como um ato de desobediência em inúmeros lugares, se fosse às salas de cinema não iria durar mais do que dois dias, por falta de público.

Aqui na atmosfera da fronteira norte, diante da reação nacional a Crivella, sou mais otimista em considerar improvável uma teocracia puritana, do tipo do Irã, no país.

Na esteira do Crivella veio o post de Carlos Bolsonaro dizendo que a democracia era um instrumento limitado para mudar o país. De fato, seria possível concordar com ele, pois num contexto revolucionário, sem as formalidades legais, os governos podem andar mais rapidamente.

Mas cada vez que se enuncia uma tese desse gênero, é fundamental lembrar que a democracia é lenta, diria até sinuosa, mas a alternativa a ela tem um preço: a perda da liberdade.

Quanto à eficácia das mudanças revolucionárias, também sou cético. O socialismo, segundo alguns teóricos, fracassou simplesmente porque, ao liquidar o mercado, perdeu a chance de ter uma real política de preços. Todas as ditaduras, inclusive as de direita, mergulham em zonas nebulosas, perdem a noção do país real.

Os filhos de Bolsonaro são filhos do presidente, que, por sua vez, diz muitas frases inadequadas. Um deles, Eduardo, falou no fechamento do STF com um cabo e um soldado. O mais velho, Flávio, está mudando o curso da política brasileira por suas possíveis ligações com as milícias. O Coaf já mudou, Bolsonaro escolheu um procurador-geral sob medida e procura detonar a PF.

Tanto as ações de Crivella como as frases da família Bolsonaro podem ser um balão de ensaio para testar a resistência democrática da sociedade. Nunca é demais voltar ao assunto, lembrar-se dele na próxima Bienal, onde quer que escritores e artistas se reúnam. É essencial também que os políticos se manifestem quando a democracia parece estar em jogo.

Quando os artistas se expressam por alguma questão social, ou mesmo pela sobrevivência da Floresta Amazônica, sofrem muitas críticas por estarem tratando de “algo que não lhes diz respeito”. No caso da liberdade de expressão, o tema é direto, sua própria sobrevivência está em jogo. Eles devem gritar mais ainda do que gritaram e, sinceramente, deveriam se preparar para isso.

Os Bolsonaros testam a sociedade. Não basta responder apenas a cada frase. É necessário que se comece a trabalhar uma frente, imune à instrumentalização da esquerda, mas que tenha muito claro os limites que não podem ser transpostos sem que a democracia entre em colapso. A liberdade de expressão é um desses marcos. O outro é escolher livremente nossos governantes e poder descartá-los de quatro em quatro anos. Os dois marcos se entrelaçam. A família Bolsonaro é livre para dizer absurdos; defensores de um Brasil tolerante e democrático, livres para empurrá-los ao ostracismo ou à dimensão real da extrema direita.

Pensamento do Dia


Um sátrapa

Sabe você por que milhões de africanos querem entrar na Europa como for, arriscando-se a morrerem afogados no Mediterrâneo? Porque, para sua infelicidade, ainda há na África um bom número de tiranetes como Robert Mugabe, o sátrapa que durante 37 anos foi amo e senhor do Zimbábue e que acaba de morrer no Hospital Gleneagles, em Singapura. Tinha 95 anos de idade, era muito aficionado do críquete, das lagostas e do champanhe francês, costumava gastar 250.000 dólares em cada uma de suas festas de aniversário, e calcula-se que deixa à sua viúva, Grace – apelidada Gucci por sua afeição pelas roupas e bolsas dessa célebre grife, e várias décadas mais jovem que seu marido –, uma herança de nada menos que aproximadamente um bilhão de dólares.

Sua mais extraordinária proeza não foram seus roubos, nem as dezenas de milhares de zimbabuanos que torturou, encarcerou e assassinou. Tampouco ter causado uma hiperinflação de 79,6 bilhões por cento ao ano – chegaram a ser impressos bilhetes de cem trilhões –, que fez a moeda nacional desaparecer. É, talvez, ter destruído a agricultura de um país sobre o qual, nos tempos do colonialismo britânico, dizia-se que aquela terra privilegiada poderia ser o celeiro de toda a África, e talvez do mundo inteiro. Hoje, aquela nação, a mais próspera do continente meio século atrás, morre de fome. Um terço da sua população foi obrigada a fugir para o exterior devido às perseguições e matanças de Mugabe; agora, são a miséria e a falta de trabalho que a impulsionam milhões de desventurados zimbabuanos a fugirem ao exterior para sobreviver.

Fernando Vicente
A África é o berço daquele que foi talvez o melhor estadista que a humanidade conheceu no último século – refiro-me ao sul-africano Nelson Mandela, graças a quem seu país é um dos que escapam à crise que assola tantos outros –, mas, logo depois do desaparecimento do sistema colonial, assim como na América Latina, em vez de estabelecer a democracia e desenvolver seus abundantes recursos, esse continente se encheu de ditadorezinhos ambiciosos e venais, além de assassinos – as exceções cabiam em uma mão –, que continuaram empobrecendo seus países a ponto de gerarem um êxodo gigantesco que, hoje, se tornou um problema para o mundo inteiro. A tragédia que o Zimbábue viveu com a tirania de Mugabe é um bom exemplo do que ocorreu com muitos países africanos que, depois de se libertarem de um sistema colonial saqueador e racista, abismaram-se em ditaduras de ladrões sanguinários.

Como outros sátrapas na história, Robert Mugabe, filho de um carpinteiro e uma catequista cristã, recebeu uma boa educação. Obrigado a se exilar por sua militância anticolonial, estudou, primeiro, em universidades da África do Sul e logo depois em Gana, onde também lecionou. Declarava-se então discípulo do africanista Kwame Nkrumah, mas, durante os anos da ação anticolonialista contra o regime racista de Ian Smith (o Zimbábue então se chamava Rodésia), encabeçou um movimento maoísta. Passou quase dez anos na cadeia e saiu dela transformado no político inescrupuloso, intrigante e ardiloso que foi marginalizando (e às vezes liquidando) os seus antigos companheiros da luta anticolonial, como Joshua Nkomo, que terminou alçando-se contra ele. A repressão que Mugabe levou a cabo foi terrível; além dos rebelados, estendeu-se às comunidades dos shonas e ndebeles, as quais praticamente exterminou. Entre 20.000 e 30.000 membros dessas comunidades pereceram naquela espantosa sangria.

Segundo os acordos de Lancaster House, que deram a independência ao Zimbábue, o Governo de Mugabe se comprometeu a respeitar as terras de 5.000 agricultores zimbabuanos brancos que, embora fossem produto da rapina colonial, eram tecnicamente exemplares e asseguravam trabalho e grandes rendimentos ao país. Mas aqueles foram expropriados durante a pitoresca “reforma agrária” que Mugabe empreendeu no ano 2000 e que consistiu em distribuir aquelas prósperas empresas entre seus cupinchas e protegidos. Isto foi o princípio do desmoronamento da agricultura nacional que, após poucos anos, transformaria um dos países mais ricos da África em uma sociedade pobre e deprimida. O autocrata, apesar disso, não cessava em seus enlouquecidos dispêndios, nem tampouco os dissimulava. Encarregou uma firma chinesa de construir no centro de sua propriedade de 22 hectares, em Harare, um palacete versalhesco de 25 quartos que mobiliou com todo luxo e, em um de seus discursos mais difundidos, reconheceu que admirava Hitler e que não se importava em ser comparado a ele. Acreditava ter a cumplicidade assegurada de seu partido deixando que seus dirigentes roubassem, mas mesmo isso tinha um limite.

Seus problemas com os membros de seu próprio partido começaram quando se empenhou em que sua jovem esposa, Grace, o substituísse no Governo. Isto o levou a uma confrontação com seu braço direito e homem para toda obra, Emmerson Mnangagwa, o atual presidente, que conspirou com os militares, e estes obrigaram Robert Mugabe a renunciar, embora sem levá-lo a juízo e, sobretudo, deixando intacta a sua fortuna. Há, portanto, poucas esperanças de que com a morte do sátrapa as coisas mudem em seu desventurado país. Seus cúmplices, que têm as mãos tão manchadas de sangue como as tinha ele, e que ao mesmo tempo em que enriqueciam arruinavam o Zimbábue, continuam no poder, de modo que o empobrecimento do país prosseguirá, e continuará contribuindo para a migração dos milhões de africanos que devem buscar na Europa o que sua pátria é incapaz de lhes dar.

Talvez o mais absurdo desta morte tenha sido que quem o tirou do poder pela força, nada menos que o próprio Emmerson Mnangagwa, faça o anúncio de sua morte “com o maior dos pesares”. “Era um ícone da libertação”, proclamou, “um pan-africanista que dedicou sua vida à emancipação e empoderamento de seu povo. Sua contribuição à história da nossa nação e do continente nunca será esquecida”. E pouco depois anunciou que seu Governo decidiu nomear Robert Mugabe “herói nacional”.

A história da África é tão triste como foi – e continua sendo em boa parte – a da América Latina. Nunca aprendemos que a democracia não consiste apenas em que haja independência de poderes e diversidade política, e sim em ter políticos honrados, que respeitem as leis e que não se aproveitem do poder para enriquecer e liquidar o adversário. Os Mandelas que chegamos a ter – houve vários, embora nenhum tivesse a repercussão mundial do sul-africano – foram aves de passagem e não chegaram a fazer escola. O pior não é que existam esses lixos humanos como um Robert Mugabe, mas sim que haja povos que votem neles e os elejam e reelejam e, como fez Mnangagwa com aquele, os transformem em “heróis nacionais”. Com pouquíssimas exceções, nem africanos nem latino-americanos temos remédio, pelo visto.

Conceito de família do governo é inconstitucional

Sob Jair Bolsonaro, o governo articula com países conservadores uma aliança mundial "pró-família", informa o repórter Jamil Chade. A iniciativa se insere num esforço diplomático para defender teses conservadoras em fóruns internacionais, sobretudo na ONU. Prega-se, por exemplo, a substituição do conceito de "igualdade de gênero" pela antiga formulação de "igualdade entre homens e mulheres". Nessa versão, não haveria senão o sexo biológico. A cruzada em que se meteu o governo não é apenas antiquada, mas inconstitucional.


Em 5 de maio de 2011, ao final de um julgamento que durou dois dias, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo como uma unidade familiar. Relator do processo, o então ministro Ayres Britto, hoje aposentado, argumentou que a Constituição veda em seu artigo 3º, inciso IV, qualquer discriminação em virtude de sexo, raça e cor. Em consequência, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual.

O voto de Ayres Brito foi acompanhado pela unanimidade dos ministros presentes à sessão. Seguiram o relator: Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Cezar Peluso, Cármen Lúciae Ellen Gracie. Com essa decisão, excluiu-se do artigo 1.723 do Código Civil brasileiro o significado que gestores públicos e magistrados invocavam para negar direitos a casais gays.

Eis o que anota o artigo 1.723 do Código Civil: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". A decisão da Suprema Corte invalidou o trecho que menciona "o homem e a mulher". Nas palavras de Ayres Britto, "o sexo das pessoas não se presta para desigualação jurídica". Na prática, a gestão Bolsonaro quer ressuscitar conceitos juridicamente mortos.

Em dezembro do ano passado, apenas 19 dias antes da posse de Bolsonaro, o Supremo recebeu o certificado MoWBrasil 2018, oferecido pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco, braço da ONU para as áreas da educação, da ciência e da cultura. A decisão que reconheceu a família homoafetiva foi classificada como "patrimônio documental da humanidade". Ayres Britto recebeu a honraria em nome do Supremo. Ironicamente, a cerimônia foi realizada numa entidade com vínculo militar: o Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, no Rio de Janeiro.

Nos últimos três meses, informa o repórter Jamil Chade, a diplomacia brasileira passou a vetar nas resoluções da ONU termos como "gênero". Sob nova direção, o Brasil atrasa seu relógio para aliar-se a governos ultraconservadores do Oriente Médio num esforço para barrar documentos que tratem de "educação sexual". Quebra lanças para arrancar dos textos a expressão "igualdade de gênero". Aos pouquinhos, a gestão Bolsonaro vai escorregando do conservadorismo para o arcaísmo.

Resistência e esperança

Quem, como os escritores, trabalha com palavras, conhece seu poder de ferir. Demagogos também o conhecem, usam e abusam dessa arma de alto potencial ofensivo.

O presidente da República sabe o que faz quando insulta pessoas, instituições, nações. O presidente é isso aí e não mudará. Suas palavras dizem tudo sobre quem ele é.

Não entende o papel de chefe da nação, a diversidade da população brasileira e o valor da democracia como espaço de convivência entre diferentes. Seus alvos têm um denominador comum: não são, não vivem, não pensam como ele.

Aposta em que todos aqueles que trata como adversários ou inimigos reajam no mesmo tom brutal com que são atacados, igualando-se a ele na vala comum de seus ódios e vinditas. Cenário de guerra, ideal à língua que fala e à sua estratégia de ataque às pessoas e de destruição das instituições, deixando uma terra arrasada em que a única lei seria a sua.

A coragem e dignidade que os jornalistas, que seu filho chama de canalhas, têm mantido, diz muito sobre quem somos e sobre a força de uma cidadania que não se intimida e exerce o poder do fato e do argumento contra a mentira e o baixo calão. Mas o desafio é mais amplo. Vai além da mídia. É para todos, cada vez mais numerosos, que não aceitam o deliberado e sistemático ataque à democracia: construir uma ação consistente de resistência e de esperança.

Essas palavras, resistência e esperança, vieram de Fernanda Montenegro, expoente da nossa cultura, que, com a autoridade de toda uma vida, as encarna à perfeição. Fernanda, o Brasil de que nos orgulhamos.

Desmentindo a sensação de inércia da população, a queda do índice de apoio ao presidente anuncia uma indignação que se irradia, que não tem dono, que nasce da própria democracia que, imperfeita e inacabada, é mais desejada, forte e enraizada do que creem Bolsonaro e seu clã.

Essa indignação vai formando o ruído surdo de um protesto, a massa crítica de uma rejeição que o presidente alimenta, dia a dia, com o desgosto que consegue inspirar.