segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Corrupção - a hora do Supremo

O governo Michel Temer defende a revisão da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia-Geral da União (AGU) argumentou que a pena somente deve ser executada depois de esgotados todos os recursos da defesa, o chamado trânsito em julgado.

Em outubro do ano passado, por seis votos a cinco o Supremo decidiu pela admissibilidade da prisão após condenação em segundo grau, ao negar liminar em ações ajuizadas pela Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Partido Ecológico Nacional. O tema voltará a ser analisado no plenário em breve, uma vez que o relator Marco Aurélio Mello pretende liberar os processos para julgamento de mérito. Além da Presidência, o ministro solicitou informações ao Senado e à Câmara.

Aquela primeira decisão do STF, segundo a AGU, “flexibilizou” o princípio da presunção de inocência. “Em nosso regime constitucional, a presunção de inocência é direito fundamental e seus conteúdo e alcance influenciam todo o arcabouço jurídico criminal”, argumentou o órgão do governo.

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A possibilidade de revisão do entendimento sobre o tema no Supremo agora deve depender da posição do ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Teori Zavascki, morto em janeiro, e indicado por Temer. A corrente vencedora teve votos de Teori e Gilmar Mendes. No entanto, posteriormente, Gilmar passou a concordar com o voto de Dias Toffoli, no sentido de que a pena deveria aguardar recurso especial no Superior Tribunal de Justiça para ser executada.

É possível, porém, que Rosa Weber faça uma mudança na direção contrária à de Gilmar, aderindo à visão de que é possível a prisão após condenação em segunda instância. Ela já afirmou que “continua refletindo” sobre o tema. Se essas duas alterações se confirmarem, o placar estará empatado e o peso do voto decisivo estará com Moraes.

Independentemente da retidão das posições defendidas, uma eventual revisão do entendimento sobre o tema no STF pode, na prática, melar o trabalho da Operação Lava Jato, comprometer gravemente o esforço de combate à corrupção e desembocar no pântano da impunidade.

Na verdade, a possibilidade concreta de cadeia, consequência da condenação em segunda instância, acionou, à direita e à esquerda, o alerta vermelho no submundo da cultura da corrupção. Por trás dos embargos e recursos dos advogados, ferramentas legítimas do direito de defesa, o que se oculta é um objetivo bem determinado: a impunidade. A bandidagem conhece a morosidade do Judiciário e aposta todas as fichas na prescrição dos crimes. Trânsito em julgado, no Brasil, é o outro nome da impunidade.

Muitos leitores, aturdidos com a extensão do lodaçal que se vislumbra na onda de corrupção que corrói o presente e compromete o futuro, manifestam profundo desalento. “Não vai acontecer nada. Os bandidos não estão na cadeia, mas no comando do Brasil” – esse comentário me foi enviado por um jovem universitário. É tremendo, pois reflete o sentimento de muita gente.

O que você, amigo leitor, pode fazer para contribuir para a urgente e necessária ruptura do sistema de privatização do dinheiro público, que se enraizou nas entranhas da República?

Em primeiro lugar, pressionar as autoridades. O STF, por exemplo, deve sentir o clamor da sociedade. Impõe-se a execução das penas do julgamento em segunda instância. A Suprema Corte pode dar o primeiro passo para a grande virada. Se os condenados em segunda instância, responsáveis pela instalação de uma rede criminosa no coração do Estado brasileiro, pagarem por seus crimes, sem privilégios nem imunidades, o Brasil mudará de patamar.

Está nas mãos do Supremo assumir o papel histórico de defesa da democracia e dos valores republicanos ou – Deus não queira – virar as costas para a cidadania. A sociedade tem o direito de confiar nos ministros do STF. Eles saberão honrar suas togas e sua biografia. Os brasileiros esperam que os ministros respondam à indignação da sociedade.

Não podemos mais tolerar que o Brasil seja um país que discrimina os seus cidadãos. Pobre vai para a cadeia. Poderoso não só não é punido, como invoca presunção de inocência, submerge estrategicamente, cai no esquecimento e volta para roubar mais. Registro memorável discurso do ministro Marco Aurélio Mello quando assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral: “Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e as notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz de conta. Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos nacionais, que os culpados nada sabiam – o que lhes daria uma carta de alforria prévia para continuar agindo como se nada de mau tivessem feito”. De lá para cá, infelizmente, a coisa só piorou.

Uma democracia se constrói na adversidade. O Brasil, felizmente, ainda conta com um Ministério Público atuante, um Judiciário, não obstante decepções pontuais, bastante razoável e uma imprensa que não se dobra às pressões do poder. É preciso, no entanto, que a sociedade, sobretudo a classe média, mais informada e educada, assuma o seu papel no combate à corrupção. As massas miseráveis, reféns do populismo interesseiro, da desinformação e da insensibilidade de certa elite, somente serão acordadas se a classe média, o fiel da balança de qualquer democracia, decidir dar um basta à vilania que tomou conta do núcleo do poder.

A corrupção é, de longe, uma das piores chagas que maltratam o organismo nacional. Esperamos, todos, que o Supremo Tribunal Federal, instituição exemplar ao longo da História deste país, não decida na contramão da cidadania. A admissibilidade da prisão após o recurso em segundo grau pode mudar a cara do Brasil.

O parto do STF

Durante um programa de entrevistas na televisão, pouco mais de um ano atrás, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, teve a ideia de perguntar a um dos entrevistadores, o jornalista José Nêumanne Pinto: “Você não acredita na Suprema Corte do seu país?”. Um ministro do STF não deve perguntar essas coisas hoje em dia. Se perguntar, arrisca-se a receber, como de fato recebeu, a resposta mais sensata para a indagação que tinha feito. “Não”, disse o entrevistador. “Eu não acredito.” E por que alguém haveria de confiar, Santo Deus?


Os onze ministros insultam-se publicamente entre si. Faltam ao serviço. Um deles levou bomba duas vezes no concurso para juiz de direito. Outro mantém negócios privados e julga causas do escritório de advocacia em que trabalha a própria mulher. Há um que conseguiu asilo no Brasil para um quádruplo homicida condenado legalmente pela Justiça da Itália, e outro que foi o juiz preferido do ex-governador e hoje presidiário Sérgio Cabral, réu em quinze processos de corrupção. Agora, em seu último feito, o STF decidiu que cabe ao Senado Federal punir ou perdoar o senador Aécio Neves — flagrado numa conversa gravada tentando extorquir 2 milhões de reais de um bilionário, réu confesso e atualmente domiciliado no sistema penitenciário nacional. Os ministros tinham decidido o contrário, tempos atrás, com o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que por causa disso perdeu o cargo, o mandato e está preso até hoje. O que vale, então?

Nossa Corte Suprema parece ter conseguido, nesse tumulto, algo inédito no direito internacional: errou nas duas decisões. Perguntaram aos nossos magistrados máximos quanto dá 2+2; na primeira vez eles responderam que dá 5, e na segunda que dá 7. Erraram nas duas vezes porque em ambas se meteram a resolver coisas que não têm o direito de resolver — invadiram a área de outro poder, e uma vez feito isso não conseguem acertar mais nada. Com certeza o poder que invadiram, o Congresso Nacional, é uma espécie de Monga, a Mulher-Gorila, ou alguma dessas aberrações exibidas no circo; mas é o eleitorado, e não o STF, quem tem de consertar isso. Com sua intromissão, os ministros pariram Mateus; agora têm de embalar a criatura, dar de mamar, levar ao pediatra e esperar mais uns dez ou doze anos para ver qual o sexo que ela prefere. Enquanto o STF cria a criança que não podia ter parido, os brasileiros ficam sem saber o que está valendo. As decisões finais sobre corrupção no Poder Legislativo são do Congresso? São do Poder Judiciário? Vai saber. Talvez fique valendo o que resolverem na próxima vez.

O caso de Aécio é especialmente tenebroso. Começa que o grupo de ministros que queria punir o senador veio com uma punição de mentirinha — “afastaram” o homem do cargo e decidiram, com imensa coragem, proibi-lo de sair de casa à noite, como se alguém só começasse a roubar depois que escurece. É uma piada, para fazer bonito a preço de custo com intelectuais e artistas de novela, mas o foco da infecção não está no tipo do castigo. Está na pretensão de entregar o que não poderia ser entregue. O ministro Luís Roberto Barroso argumentou que seria uma injustiça deixar “três peixes pequenos” presos e o “peixe grande” solto. Mas Barroso não está lá para medir o tamanho dos peixes, e sim para cumprir a Constituição. Tem todo o direito de não gostar dela; mas não pode escolher quando vale e quando não vale o que está escrito ali. Aécio Neves não é peixe graúdo nem miúdo — é senador da República, por mais que isso se revele um disparate. É senador porque foi eleito. Se o povo votou errado, paciência — a lei não obriga o eleitor a votar certo. Mas obriga a todos, incluindo os ministros do STF, a obe­decer à regra segundo a qual um senador só pode ser punido com a autorização do Senado.

Sem Aécio, o Brasil seria um lugar mais justo, mais sadio e mais limpo — sem ele e todos os outros que vêm do mesmo saco de farinha, a começar por seus inimigos e todos os parasitas, mentirosos e ladrões que mandam no país e fingem ser diferentes entre si. Mas ele é membro do Congresso, e esse Congresso, que positivamente está entre os piores do mundo, é também o único que existe por aqui. Também só existe um STF e só uma Constituição, essa mesma do “Dr. Ulysses” — antes adorada de joelhos como grande fonte de “direitos populares” e hoje tida como um manual de estímulo à roubalheira. Fazer o quê? Acabar com tudo?

Ou dar ao STF o poder de decidir quem é punido e quem é premiado? Está garantido que não vai dar certo.

Gente fora do mapa

There’s no one as strong as a mother!

Sócios do fracasso

St. John’s é local improvável para reflexão. Nunca imaginei visitar. Newfoundland não fazia parte da minha lista de cidades a serem visitadas. Mas o destino me reservou o prazer de conhece-la durante a conferência nacional resolução de conflitos no Canada. E de ser um improvável coordenador discussões sobre a relação como resolver conflitos de maneira eficiente, barata e acessível na América do Norte.
Em todo lugar do mundo, já não há mais dúvidas de que o sistema judiciário não mais atende as nossas necessidades. Mesmo nos países desenvolvidos. Em outras palavras, existe reconhecimento crescente de que o acesso à justiça é difícil e caro. E, portanto, a justiça tarda e falha.

O problema, claro, é mais ou menos sério dependendo do país e da solidez institucional de cada um. Mas é sempre real. Concreto. E merece atenção.

Parte do problema parece ser que acesso à justiça parece ter virado sinônimo de burocracias kafkianas sem que o comum dos mortais consiga entender as regras, os processos e muito menos as decisões resultantes deles. Hoje em dia, o que acontece entre as paredes da justiça está divorciado da realidade fora delas, onde vivem os cidadãos que deveriam ser por ela servidos.

É completa a inversão de valores. Ninguém mais pode dizer que entende o que vai se passas uma vez acionada a justiça. Por isso, todos pedem, clamam, gritam mesmo, por maneiras alterativas de resolução de conflitos.

A razão é simples. Existe o sentimento generalizado e global de que cidadãos devem retomar o controle do processo e dos resultados resolução de suas disputas, conflitos ou controvérsias. O Estado não mais tem condições de intermediar estas soluções com resultados satisfatórios.

O mundo parece ter chegado a uma era onde aprendemos a discutir, e não a dialogar. Não se vê nas palavras alheias a representação de ideias potencialmente validas. Apenas ouve-se os aquilo que possa servir de validação a opiniões já previamente constituídas. Não sabemos mais dialogar. E, nesta era e época, a humanidade, para evoluir, precisa reaprender a praticar estes estilos.

Aprender a ouvir parece ser o maior desafio cultural dos nossos dias. Embriagados pela intolerância e com a visão encoberta pelas próprias ideias, perdemos a audição. Quase completamente. Abraçamos a intolerância tornamo-nos incapazes de resolver nossas próprias questões.

Depositamos a solução de nossas disputas nas costas do sistema judiciário. Entupimos as cortes. E criamos um sistema ruim para todos. E uma justiça que tarda e falha. Por culpa nossa também. Somos sócios deste fracasso.

Eterna desilusão

O Brasil, parece ser sempre assim, caminha numa trajetória ascendente, com avanços sociais e, de repente, mergulha na desilusão, no desamparo. É o país que vive um eterno romance da desilusão
Milton Hatoum

Chama o pinel

Um jovem zen que abandonou a faculdade de economia no primeiro ano, por se sentir mais inteligente que seus professores que, mais tarde, revelaram que o aluno não teve contato com nenhum professor de economia, mais um jovem afrodescendente que é contra cotas raciais, Dia da Consciência Negra, ensino crítico nas escolas e lidera, com um ator famoso, galã que foi casado com uma estrela do teatro e da TV e, na geladeira, partiu para uma carreira ousada na indústria de filmes de sexo explícito homossexual, sentou-se com um ministro da Educação e se diz aluno de sociologia de uma universidade que não tem curso de sociologia, resolveram para o bem da moral e bons costumes protestar contra a exposição de arte de um espaço cultural de um banco, que debatia o preconceito, valores morais e éticos que a arte, filosofia, sociologia sempre buscam contextualizar, juntaram-se na porta de um museu para protestar e acusar de pedofilia a performance de um bailarino.

Um carismático humorista de stand-up comedy, cuja banda é comandada por um roqueiro sarcástico ícone do combate à ditadura, como outro roqueiro talentosíssimo e fã da vida bandida, bad boy que fez sucesso com a fama de rebelde, seguem e dialogam com um filósofo de direita que mora fora do Brasil, ex-militante comunista de carteirinha, membro do PCB, astrólogo, antigo membro de uma ordem muçulmana, que dá aulas pelo YouTube, Facebook e publica livros de sucesso, tem uma legião fiel de seguidores, atua nas redes sociais xingando quem o contesta, como estudantes no recreio de uma escola, inclusive o grupo de ativistas dos jovens zen e afrodescendente, com quem rompeu.

O grupo também foi criticado por um jornalista ex-trotskista, que se tornou ícone do pensamento da direita e alçou a fama atacando a esquerda, inspirando outros jornalistas, com uma algazarra barulhenta que transformou o debate político numa briga de torcida, jornalista processado pelo filósofo astrólogo e que também rompeu com o grupo do jovem zen e do afrodescendente defensores da proposta de uma professora de Direito da USP, última colocada no concurso para titularidade, mais um jurista de prestígio e um ex-promotor ex-ativista dos direitos humanos, então aposentado, fundador do partido que já foi considerado de esquerda, mas que, para governar, aliou-se àqueles que o perseguiram durante a ditadura, quando era de fato de esquerda, a adversários políticos históricos, ruralistas contrários à reforma agrária, item do programa do partido, forças conservadoras evangélicas, que pressionaram para excluir o ensino obrigatório de sociologia, filosofia e arte nas escolas, e indicaram o ensinamento religioso, no país de muita mitologia indígena e religiões, inclusive afros.

O país, atrasado por séculos de escravidão, agora não só afrouxa e dificulta penas de empresas que submetem trabalhadores a condições degradantes e análogas à escravidão, como questiona o direito à terra de nações indígenas e quilombolas e cede foro privilegiado a militares acusados de crime, logo depois de um general ensandecido pela crise institucional defender sem ser punido uma intervenção armada, rebelião contra um governo civil e democrático que impichou dois dos seus quatro presidentes eleitos, a última por manobras fiscais que quebraram o país que descobriu uma rede bilionária de corrupção na maior empresa nacional, da qual ela presidiu o Conselho de Administração, enquanto uma gangue raspava os cofres da petrolífera, do fundo de pensão dos funcionários e de outros fundos de pensão, que, derrubada numa sessão em que um deputado eleito pelo voto homenageou um torturador notório da ditadura, abriu vaga para seu vice acusado de dar um golpe aliado ao grupo do ativista zen e do afrodescendente, acusado junto com outros ministros de corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça, mas que conseguiu se livrar de processo de impeachment, o que não aconteceu com a antecessora, cujo assessor foi flagrado correndo da pizzaria mais tradicional da cidade com uma mala com R$ 500 mil, vice do mesmo partido de um ex-ministro do Estado, em cujo apartamento vazio chamado de bunker foram encontradas oito malas e cinco caixas, totalizando R$ 51 milhões.

O país, cuja corte suprema não tem conseguido unanimidade na aplicabilidade da lei, constantemente em horário nobre da televisão vestidos com capa de Batman, numa linguagem jurídica barroca, presidida por uma ministra que, num encontro com a nata do jornalismo, confessou que se os brasileiros soubessem de tudo o que ela sabe, teriam dificuldades para dormir, cujo presidente empossado que detém o pior índice de aprovação da história afirma ser vítima de torpezas e vilezas, e que há um golpe em andamento, que por um golpe de sorte foi grampeado por um dos homens mais ricos do país que não sabe operar um gravador de quinta categoria, preso por corrupção com o irmão e que se casou com uma linda estrela da TV numa cerimônia nababesca para 1.500 convidados, em que quase todos acima compareceram e viram o deslumbrante vestido de Karl Lagerfeld que a noiva, que não sabia quem era, em viagens de jatinho com as amigas a Paris, selecionou com cuidado, cujo noivo foi flagrado negociando propina de milhões com um senador da República perdoado por seus pares, indica: vivemos num hospício.

Marcelo Rubens Paiva

Seguro morreu de velho

A prioridade para idosos em filas, viagens em transportes públicos, vagas em estacionamentos não é extensiva à saúde. No SUS, frequentemente, faltam acesso e dignidade no atendimento para crianças ou adultos, e os planos privados se tornam gradativamente mais caros para os longevos. Velhos encontram algumas facilidades para enfrentar a vida cotidiana nas cidades, mas nenhuma tranquilidade sobre futuros ou atuais atendimentos a problemas de saúde. Os direitos para idosos tenderam a ficar represados em áreas nas quais as escolhas sobre benefícios e custos não são tão cruciais. Os cuidados à saúde e as tecnologias contribuem para o aumento da expectativa e qualidade da vida, mas pressionam orçamentos públicos e privados.

Minimizar direitos ou o impacto de gastos crescentes com saúde é antidemocrático e inspira concepções sombrias ou irrealistas. A proposta de empresas de planos e alguns parlamentares de alteração da lei de planos de saúde é obscura.



A sugestão que tramita no Congresso Nacional estabelece aumentos sobrepostos das mensalidades para idosos. Além dos reajustes anuais, sempre acima da inflação, querem impor taxas quinquenais de envelhecimento. Em um primeiro momento, para os clientes, pode até parecer uma boa ideia, pois o impacto financeiro devido à entrada nesta última faixa etária seria “aliviado”. Mas a longo prazo, considerando que, em geral, a expectativa de vida tem aumentado, será muito mais interessante para as empresas. Não é impróprio supor que a perspectiva de manutenção de idosos mais “jovens”, com menos riscos, está baseada no seguinte cálculo: ficar com os recém-chegados à velhice e impedir a permanência dos demais. Se a regra for aprovada, a partir de certa idade cada aniversário será uma ameaça, e não celebração.

O envelhecimento da população é um indicador de desenvolvimento. Não foi por acaso que Serra Leoa, cujos habitantes tinham uma expectativa de vida de 50,8 em 2015, se tornou o epicentro da epidemia de ebola. No Brasil, a média era 75,5, e 79,1 anos para mulheres. Para as brasileiras com 65 anos, a chance de viver mais atingiu 18,4 anos. Ou seja, quase 20 anos para arcar com o acúmulo de aumentos aritméticos sobre os quais incidirão três ou quatro fatores multiplicadores (64, 69 e assim em diante). Negar ou cercear acesso à assistência de rotina e medicamentos para pressão alta, diabetes, hepatite e cânceres aumenta a probabilidade de morrer mais cedo. Restrições dos gastos públicos e liberação da comercialização de planos que afastam quem mais precisa de cuidados afetam objetivamente a longevidade.

Quando interesses empresariais e eleitorais imediatistas vicejam, as possibilidades de reafirmar alternativas mais abrangentes de pertencimento comum e proveito coletivo são indevidamente caracterizadas como inviáveis. A recusa ao debate impede que as questões realmente críticas sejam examinadas. A escala e qualidade dos direitos à saúde e o modo como devemos financiá-los não podem ser dissociados da definição de um padrão de inovação e uso de ações de saúde adequados para o país. Ao invés da exposição clara de divergências e argumentos opostos, a determinação de um grupo de empresários é de que o país desista de buscar a conciliação de compromissos e soluções incrementais e compartilhadas para a saúde.

Curiosamente, os defensores da cobrança turbinada para idosos são velhos, ou pré-velhos, que não se reconhecem sequer nas estatísticas. São estranhos na sua própria terra e na humanidade. Atualmente, a proporção de pessoas acima de 60 anos na população é de 12,5%, e de vinculados a planos, 13,2%. A “carga não é pesada” — como os regimes de pré-pagamento pressupõem a conformação de fundos para diluição dos riscos, pagam os jovens pelos velhos, e os sadios pelos doentes, a conta fecha —, desde que não se pretenda extrair lucros rápidos e exorbitantes em uma área tão sensível. Mesmo um super bem-sucedido indivíduo imerso em hipermercado livre necessitará cuidados de outros quando ficar doente. A adesão quase totêmica aos valores do tipo “eu resolvo e fiz por merecer” não tem sentido na saúde.

Decisões relevantes sobre a vida e longevidade não deveriam ser deixadas ao sabor das propositais ajeitadas, via governo, do mercado. O projeto de lei prevê a expulsão de velhos e transforma o SUS em prestador de serviços para os planos. Os fundamentos de qualquer sistema de saúde incluem o incremento da prevenção, esforços para realizar diagnósticos e tratamentos precoces e evitar tratamentos ineficazes. Uma lei que, no primeiro artigo, prevê a restrição de coberturas mediante segmentação, desiste de buscar possibilidades mais abrangentes de pertencimento comum e proveito coletivo e reafirma regras de uma estratificação social injusta: em primeiro lugar, ricos e saudáveis, em último, as pessoas cujos antepassados foram escravizados.

Ligia Bahia

Paisagem brasileira

Belém durante a chuva (1998), Jorge Eduardo

O preço de manter Temer

Tão cedo saberemos quanto custará ao país a decisão a ser tomada, depois de amanhã, pela Câmara dos Deputados de arquivar a segunda denúncia de corrupção contra o presidente Michel Temer.

Partes do custo poderão ser mensuráveis desde logo. Exemplo: o volume de dinheiro liberado pelo governo para a construção de pequenas obras nos currais eleitorais dos que votaram a favor do arquivamento da denúncia.

Se o custo se limitasse a isso, tudo bem. Por lei, o governo é obrigado a pagar emendas parlamentares ao Orçamento da União que destinam pequenas verbas para isso e aquilo. É fato que ele o faz ao seu gosto, premiando aliados e punindo adversários.

Ocorre que a operação de salvamento de um presidente encurralado inclui despesas de maior valor, algumas incalculáveis, outras manifestamente imorais. Aí está o busílis.


Em agosto último, o governo anunciou a privatização de 14 aeroportos, entre eles o de Congonhas, em São Paulo. Com a venda, esperava arrecadar R$ 6 bilhões a serem aplicados em novos investimentos.

Sob a pressão do PR, dono de 38 votos na Câmara, o governo desistiu de privatizar Congonhas e avalia a reabertura do aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte, para voos de longa distância.

Quem manda no PR é o ex-deputado Valdemar Costa Neto, um dos mensaleiros do escândalo do PT. De trás das grades, ele obrigou a presidente Dilma a demitir um ministro para nomear outro afinado com o PR.

Solto depois de ter ficado no xilindró apenas um ano dos quase oito a que fora condenado por corrupção, Costa Neto segue dando as cartas com a desenvoltura de sempre.

O ministro dos Transportes é do PR. A Infraero é do PR. Congonhas representa quase 15% da receita da Infraero. É o segundo aeroporto mais rentável do país.

O PR deve ter lá suas razões para manter Congonhas sob controle. Deve ter identificado vantagens em brigar pelo restabelecimento de voos de longa distância em Pampulha. Costa Neto é um esperto rato. Digo: gato, de faro finíssimo.

Impedido de caçar votos com a distribuição a mancheia de cargos e de dinheiro, Temer assinou decreto no fim da semana que reduz em 60% o valor das multas por crimes ambientais.

Os 40% restantes poderão ser pagos com ações de reflorestamento. Pequenos infratores costumam pagar suas dívidas em dia. Os grandes entram com ações na Justiça para não pagar.

O agrado feito por Temer teve endereço certo: os ruralistas, donos de 200 preciosos votos na Câmara. Para que a denúncia contra Temer fosse aprovada seriam necessários 342 votos de um total de 513.

A primeira denúncia foi arquivada por 263 votos contra 227, e duas abstenções. Ausentes, 19 deputados. Temer peleja desta vez para ir além dos 263 votos. É possível que consiga.

Nada mais do que já fez ou faça para manter-se no poder será capaz de superar a indecente portaria baixada por Temer que altera as regras de combate ao trabalho escravo, ou análogo ao trabalho escravo. Ruralistas sapatearam de tanta felicidade.

O Brasil levou mais de 100 anos para firmar um pacto contra o monstruoso crime que o envergonha até hoje. Ou que deveria envergonhá-lo. Temer deu meia volta volver.

Parou o relógio da História. Atrasou os ponteiros. Ganhou mais alguns votinhos para permanecer impune.

Mesmo que, mais tarde, revogue a portaria, mostrou do que é feito – de ambição desmedida, de ausência de escrúpulos e de um oportunismo infame.

É preciso pressão

Se houver uma contínua pressão da opinião pública, imagina-se que até nossas lideranças políticas emperradas terão que adotar uma postura reformista
Juiz Sergio Moro

Blog não discutirá com Moraes, um especialista!

Os ministros do Supremo, como se sabe, estão sentados do lado direito de Deus. Neste domingo, entretanto, Alexandre de Moraes desceu ao purgatório do Twitter para responder a um post veiculado aqui na última sexta-feira. Com a supremacia em riste, Moraes desancou o repórter: “Ignorância, burrice, apoio ao tráfico, ou tudo junto, que soma mais de 40% das mortes no país. É fácil criticar sem conhecer a realidade.” Na sequência, Moraes foi apresentado à realidade das redes sociais. Descobriu da pior maneira que todos são iguais perante as leis da internet. Atacado impiedosamente, o ministro chegou a ordenar a um internauta: “Vá trabalhar!”


Tudo começou na sexta-feira. Horas antes da exibição do último capítulo de ‘A Força do Querer’, Moraes reclamou numa palestra da suposta glamorização da personagem Bibi Perigosa, vivida por Juliana Paes. Declarou que a novela de Glória Perez “mostra aqueles bailes funk, fuzil na mão, colarzão de ouro, mulheres fazendo fila para os líderes do tráfico, só alegria. Aí mostra a Bibi, que se regenerou, ela tentando procurar emprego e não conseguindo. Qual é a ideia que é dada? Que é melhor você não largar. Enquanto você não larga, você tá na boa. É uma valorização. Aí podem dizer que essa é a realidade. Mas tá passando isso de uma forma glamorizada.”

O repórter sustentou que, no Supremo, a coisa é muito pior. Anotou que, não fosse uma senhora bem-posta, Glória Perez talvez dissesse a Moraes algo assim: a TV Justiça “mostra aquelas sessões plenárias do Supremo, Constituição na mão, toga sobre os ombros, poderosos fazendo fila à espera de sentenças que nunca chegam, só alegria. Aí mostra o Aécio, que se safou. A Primeira Turma tentando impor sanções e o plenário impedindo. Qual é a ideia que é dada? Que é melhor você não largar o foro privilegiado. Enquanto você não larga, você tá na boa. Aí podem dizer que essa realidade precisa mudar. Mas sempre haverá um ministro no Supremo para pedir vista do processo e declarar, com glamour: 'Tem que manter isso'!”

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Ex-ministro da Justiça de Michel Temer, Moraes não se notabilizou pelo combate ao tráfico. Coordenou a elaboração de um plano nacional de segurança que a realidade vai convertendo em pó (com trocadilho!). No Supremo, porém, Moraes tornou-se notável rapidamente. Pediu vista do processo sobre a limitação do alcance do foro privilegiado. Com seu gesto, favoreceu ex-colegas de governo que respondem a inquéritos na Suprema Corte. Evitou, por exemplo, que ministros como Moreira Franco e Eliseu Padilha tivessem o mesmo destino do ex-ministro Geddel Vieira Lima, preso preventivamente na Papuda.

Na resposta ao blog, Moraes enquadrou o repórter: “A ignorância de Josias de Souza é tão grande que não sabe que a vista do foro foi devolvida em setembro. Estude mais. Criticar é fácil.” Embora reconheça que precisa estudar muito para alcançar a genialidade de Moraes, o signatário do blog não ignora que o ministro já devolveu o processo à presidência do Supremo. O problema é que permanece pendente de julgamento uma encrenca que poderia ter sido julgada há 143 dias, não fosse o providencial pedido de vista. De resto, Moraes renderia homenagens à transparência se explicasse por que ficou sentado sobre o processo por mais de 100 dias.

Ex-secretário de Segurança do governo tucano de São Paulo, Moraes compôs no Supremo a maioria de 6 a 5 que transferiu para o Legislativo a palavra final sobre sanções cautelares impostas a parlamentares. Graças a esse recuo, o Senado pôde restituir a Aécio Neves o mandato que a Primeira Turma do Supremo suspendera. Sobre isso Moraes não se animou a escrever uma mísera palavra no Twitter. Aos internautas que o criticaram, o ministro respondeu com uma interrogação: “Vocês concordam com o glamour do tráfico de drogas, banhado a sangue, contra o trabalho sério do povo brasileiro?”

O repórter, por ignorante, não entendeu a analogia que o ministro tentou estabelecer. No encerramento de ‘A Força do Querer’, Bibi estava regenerada. Rubinho, seu marido-traficante foi passado nas armas pelo comparsa Sabiá, que recebeu voz de prisão de Jeiza, uma policial militar de mostruário. Salvo melhor juízo, Glória Perez quis realçar a tese segundo a qual o crime não compensa. E a plateia, a julgar pela audiência, foi trabalhar no dia seguinte embevecida com o sucesso da novela.

É compreensível que Moraes não tenha gostado do que viu. A realidade que a ficção exibe só existe porque autoridades como o ministro fracassam em suas tentativas de combater o crime. De resto, Moraes está habituado com uma realidade que ultrapassa qualquer ficção. Os últimos movimentos do Supremo ensinam que não é que o crime não compensa. É que, quando compensa, ele muda de nome. Só não vê quem é ignorante e burro. Ou aliado do tráfico (de influência). O repórter, atento ao conselho supremo —“estude mais”—, não ousaria discordar de alguém que fala da ignorância e da burrice com tamanha supremacia. Trata-se, evidentemente, de um especialista.

O presidente que abraça o povo

O que mais chama atenção nas fotos do presidente de Portugal com as vítimas dos últimos incêndios que devastaram o centro do país é que ele abraça de verdade. Marcelo Rebelo de Sousa (Lisboa, 1948), do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, é o “presidente dos afetos”.


“As pessoas humildes”, dizia durante sua triunfal campanha eleitoral em janeiro de 2016, “já sabem que você não pode solucionar seus problemas particulares, mas um momento de consolo não custa tempo nem dinheiro. Isso não podemos negar a elas.” Portugal saía do Governo de Pedro Passos Coelho, também do PSD. Frio, cinzento, distante das pessoas, que executou sem alma a receita de austeridade econômica da troika (Banco Central Europeu-BCE, Fundo Monetário Internacional-FMI e Comissão Europeia).

Dezoito meses depois, Rebelo de Sousa continua abraçando com o mesmo carinho da época em que pedia votos. As vítimas dos incêndios se sensibilizam em seus braços, enquanto ele lhes garante, com a fé que professa, que o pior já passou. “O futuro será melhor”, consolava um idoso que tinha perdido tudo – e não era muito.

Engana-se quem vê em seus abraços, suas viagens e suas palavras uma figura folclórica. Marcelo Rebelo de Sousa não é um produto do populismo nem do Big Brother; tampouco é um político de partido ou um teórico universitário. Pelo menos, não só isso. Com o tempo, sua personalidade absorveu o melhor de cada estereótipo, o contato popular, a habilidade negociadora e a bagagem intelectual, e no caminho se desprendeu de impaciências e arrogâncias.

Desde o primeiro dia, quis ser o presidente de todos – e não exclusivamente de nenhum. Pagou toda a campanha com o próprio dinheiro: 157.000 euros (581.000 reais), menos que a campanha do Partido Comunista, e conseguiu 52% dos votos praticamente sem realizar atos políticos. Bastava sair pelas ruas e abraçar as pessoas que nunca tinham sido abraçadas.

Nos 18 meses de seu mandato, sua figura quase não se deteriorou, contrariando quem previa que sua hiperatividade presidencial se desgastaria com o tempo. Certamente, Rebelo de Sousa está em todos os lugares que deve estar – e em mais alguns. Nos compromissos oficiais e naqueles que não existiam para os telejornais; na segunda-feira com certeza, mas no sábado e no domingo também. Seu site institucional tem mais atividade que o de muitos jornais on-line; entre seus posts diários, é possível encontrar discursos protocolares, pêsames pela morte do cantor George Michael e parabéns a um professor pelo aniversário de 80 anos.

Segundo a empresa de relações públicas Cision, em um ano os canais de TV dedicaram a Rebelo de Sousa 1.060 horas de transmissão, o equivalente a 2,9 horas por dia; a imprensa escrita, mais de 18.000 matérias, 49 por dia.

Estatisticamente, é quase impossível que exista um português que não tenha abraçado o presidente, compartilhado selfie com ele ou visto a sua cara. O mais extraordinário, com tamanha atividade, é que seu desgaste popular e político seja praticamente nulo. Segundo pesquisa realizada em outubro pela Eurosondagem, 69% dos entrevistados aprovam sua gestão, 21 pontos percentuais na frente do primeiro-ministro António Costa; apenas 7% das pessoas têm imagem negativa sobre seu trabalho, contra 13,6% de Costa.

O mérito de Rebelo de Sousa é que sua proximidade do povo não afetou o prestígio nacional e internacional da instituição. Com a mesma intensidade com que abraça quem precisa de consolo, ele exerce suas funções presidenciais. Em um ano e meio, assinou cinco vetos, dois contra decretos do Governo socialista e três contra resoluções do Parlamento. Embora a Assembleia da República possa rejeitar a medida, nas três vezes preferiu retificar seu texto; já o Governo optou por anular os decretos. Sua autoridade moral vai além das atribuições constitucionais.

“Seria indesejável um presidente que quisesse mandar no Governo”, escreveu Rebelo antes de chegar ao cargo. “Mas um presidente que se apaga totalmente, que não seja uma referência de Estado, que não seja pedagogo em relação aos outros poderes seria igualmente indesejável.”