Minimizar direitos ou o impacto de gastos crescentes com saúde é antidemocrático e inspira concepções sombrias ou irrealistas. A proposta de empresas de planos e alguns parlamentares de alteração da lei de planos de saúde é obscura.
O envelhecimento da população é um indicador de desenvolvimento. Não foi por acaso que Serra Leoa, cujos habitantes tinham uma expectativa de vida de 50,8 em 2015, se tornou o epicentro da epidemia de ebola. No Brasil, a média era 75,5, e 79,1 anos para mulheres. Para as brasileiras com 65 anos, a chance de viver mais atingiu 18,4 anos. Ou seja, quase 20 anos para arcar com o acúmulo de aumentos aritméticos sobre os quais incidirão três ou quatro fatores multiplicadores (64, 69 e assim em diante). Negar ou cercear acesso à assistência de rotina e medicamentos para pressão alta, diabetes, hepatite e cânceres aumenta a probabilidade de morrer mais cedo. Restrições dos gastos públicos e liberação da comercialização de planos que afastam quem mais precisa de cuidados afetam objetivamente a longevidade.
Quando interesses empresariais e eleitorais imediatistas vicejam, as possibilidades de reafirmar alternativas mais abrangentes de pertencimento comum e proveito coletivo são indevidamente caracterizadas como inviáveis. A recusa ao debate impede que as questões realmente críticas sejam examinadas. A escala e qualidade dos direitos à saúde e o modo como devemos financiá-los não podem ser dissociados da definição de um padrão de inovação e uso de ações de saúde adequados para o país. Ao invés da exposição clara de divergências e argumentos opostos, a determinação de um grupo de empresários é de que o país desista de buscar a conciliação de compromissos e soluções incrementais e compartilhadas para a saúde.
Curiosamente, os defensores da cobrança turbinada para idosos são velhos, ou pré-velhos, que não se reconhecem sequer nas estatísticas. São estranhos na sua própria terra e na humanidade. Atualmente, a proporção de pessoas acima de 60 anos na população é de 12,5%, e de vinculados a planos, 13,2%. A “carga não é pesada” — como os regimes de pré-pagamento pressupõem a conformação de fundos para diluição dos riscos, pagam os jovens pelos velhos, e os sadios pelos doentes, a conta fecha —, desde que não se pretenda extrair lucros rápidos e exorbitantes em uma área tão sensível. Mesmo um super bem-sucedido indivíduo imerso em hipermercado livre necessitará cuidados de outros quando ficar doente. A adesão quase totêmica aos valores do tipo “eu resolvo e fiz por merecer” não tem sentido na saúde.
Decisões relevantes sobre a vida e longevidade não deveriam ser deixadas ao sabor das propositais ajeitadas, via governo, do mercado. O projeto de lei prevê a expulsão de velhos e transforma o SUS em prestador de serviços para os planos. Os fundamentos de qualquer sistema de saúde incluem o incremento da prevenção, esforços para realizar diagnósticos e tratamentos precoces e evitar tratamentos ineficazes. Uma lei que, no primeiro artigo, prevê a restrição de coberturas mediante segmentação, desiste de buscar possibilidades mais abrangentes de pertencimento comum e proveito coletivo e reafirma regras de uma estratificação social injusta: em primeiro lugar, ricos e saudáveis, em último, as pessoas cujos antepassados foram escravizados.
Ligia Bahia
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