segunda-feira, 17 de julho de 2023

Erros alimentam o 'jurássico'


Inelegível, Bolsonaro caminha para o ocaso, mas aquilo que se chama de bolsonarismo, precisa dos erros de seus adversários para crescer. Ajudado, vai longe. Andando com as próprias pernas, briga com as vacinas durante uma pandemia, demora para reconhecer o resultado de uma eleição presidencial americana e arruma um chanceler que se orgulha de colocar o país na condição de pária
Elio Gaspari

Ou limitamos o espaço dos órfãos da ditadura ou eles voltarão um dia

É pequeno o percentual dos que, em resposta a enquetes deste blog, afirmam que o bolsonarismo é uma corrente de opinião democrática. O que eu gostaria de saber é se eles, de fato, pensam assim, e caso pensem, o que entendem por democracia, se ela e ditadura podem ser relativas ou disfarçadas.

Os acampados à porta de quartéis que pediam intervenção militar para impedir a posse de Lula eram todos bolsonaristas – alguma dúvida? Imagino que até os bolsonaristas concordem, embora se alegue que havia infiltrados de esquerda entre eles, e os culpem pela depredação do patrimônio público na Praça dos Três Poderes.


Ninguém de esquerda foi preso no ato golpista do 8 de Janeiro. Ou a Polícia Militar do Distrito Federal sabia distinguir quem era de esquerda e de direita, e preferiu prender apenas os de direita, ou não havia esquerdistas ali. Naquele dia, sequer havia policiais em número suficiente para conter a baderna, e parte deles se omitiu.

Que provas tinham os bolsonaristas para sustentar a suspeita de que a eleição fora roubada? Nem Bolsonaro apresentou provas depois de a perder. Antes, também não, embora tenha reunido dezenas de embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto para dizer que o processo eleitoral brasileiro era sujeito a fraudes.


Se tivesse sido reeleito, o que ele teria dito? Que venceu apesar das fraudes, como disse em 2019 no início do seu governo? Mudaria de assunto e tocaria em frente o projeto de revogar a democracia, instalando em seu lugar um regime autoritário ou assumidamente ditatorial? Ora, foi o que ele tentou fazer nos últimos quatro anos.

À falta de provas, seria proibido clamar pela anulação do resultado das eleições. Muito menos se poderia pedir a anulação somente do resultado da eleição presidencial, de vez que foram também eleitos governadores, senadores e deputados federais. Ou se anula a eleição de todos ou de nenhum; não faria sentido.

Um dos pilares da democracia é a alternância no poder. Com Fernando Collor de Mello, a direita ganhou em 1989 a primeira eleição presidencial pelo voto popular depois do fim da ditadura. Direita e centro esquerda ganharam as eleições seguintes com Fernando Henrique Cardoso, que governou de 1995 a 2002.

A esquerda ganhou com Lula duas vezes, e mais duas com Dilma. A direita voltou a ganhar em 2018 com Bolsonaro, e a perder para a esquerda com Lula no ano passado. Alternância no poder é isso. Os que não admitem perder, os que derrotados querem continuar no poder a qualquer custo, não são democratas, são outra coisa.

Podem até não saber o que são, mas são órfãos da ditadura militar de 64 e das que a antecederam. A democracia os tolera, do contrário não mereceria ser chamada de democracia. Mas os democratas sinceros devem combatê-los para que não realizem seus cruéis intentos. Eles estão armados e dispostos a tudo.

O iliberalismo não morreu com a inelegibilidade de Bolsonaro

A agenda social-liberal está órfã no Brasil. Foi substituída por um projeto iliberal no mandato de Jair Bolsonaro e ainda não foi plenamente assumida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja política tem viés nacional-desenvolvimentista, evidente na política externa e na política industrial. Para neutralizar o iliberalismo, a gestão de Lula precisaria consolidar outro viés, a de um governo de ampla coalizão democrática, com uma política de integração competitiva à economia mundial e agenda social universalista, mas com foco nos mais pobres.

Uma terceira alternativa, com esse caráter social-liberal, não é possível na atual conjuntura, mesmo que alguns desejem, por falta lhe uma liderança de projeção nacional e base social articulada. Essa disputa está se dando dentro do governo Lula e não fora dele.

O que existe de alternativa de poder fora do governo são lideranças que surgiram na aba do chapéu do ex-presidente Jair Bolsonaro, principal representante do iliberalismo na política brasileira, porque sua base eleitoral continua influente, articulada e identificada com uma agenda autoritária. Com a inelegibilidade do ex-presidente da República, sentenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), muitos acreditam que a ameaça à democracia deixou de existir. É um equívoco.


No momento, a mais eloquente demonstração de que o projeto iliberal não está morto é a questão das escolas cívico-militares. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), liderou o movimento para manutenção das escolas, depois da manifestação do Ministério da Educação (MEC), pedagogicamente correta, de que esse modelo de escola é anacrônico e autoritário.

“Fui aluno de colégio militar e sei da importância de um ensino de qualidade e como é preciso que a escola transmita valores corretos para os nossos jovens”, disse o ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro. Hoje, há 13 unidades em São Paulo.

Outros doze estados decidiram manter o modelo, na maioria dos quais Bolsonaro venceu as eleições passadas. Há duas razões para isso, uma é o comprometimento ideológico com o projeto iliberal, como fica claro nas declarações do governador paulista; o outro, a pressão da base eleitoral do ex-chefe do Planalto.

Como na defesa da proibição do aborto, da posse de armas e da pena de morte, o senso comum leva muitas pessoas a acreditarem que a formação militar nas escolas com fins civis garantirá o futuro e a segurança de seus filhos. Quais são os “valores corretos”? Os professores de nossas escolas públicas não têm esses valores? É preciso a presença de ex-militares nas salas de aula para isso? O principal problema da qualidade das escolas públicas são a falta de recursos e a desvalorização dos professores, de abertura para novos conceitos pedagógicos.

O iliberalismo no Brasil não é um projeto político descolado da nossa realidade e do mundo. A revolução digital, a crise de representação dos partidos e as mudanças nos costumes, com o fim da antiga “sociedade industrial”, estruturada em classes sociais definidas, geram muita perplexidade e insegurança na sociedade. Na chamada “modernidade líquida”, conceito do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, principal característica de nossa época, as relações sociais, econômicas e de produção são “frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos”.

O iliberalismo é uma das faces políticas dessa nova sociedade. Na “modernidade líquida”, o indivíduo molda a sociedade à sua personalidade, por seu estilo de vida, padrão de consumo e comportamento. A mobilidade geográfica é muito maior, as migrações ocorrem por necessidade ou oportunidade, a competição econômica aumenta, os salários diminuem, o emprego é inseguro, novas profissões surgem e muitas desaparecem. Uma pessoa ter o mesmo emprego por toda a vida é quase impossível, exceto para funcionários públicos de carreira. E aí que surge o reacionarismo, o desejo de voltar a um passado idealizado, imaginário, para ter mais segurança.

E o projeto iliberal? Esse conceito surgiu para caracterizar os movimentos e os partidos que combatem a democracia por dentro. Ganhou muita força no Ocidente durante o governo de Donald Trump, porque chegou ao poder nos Estados Unidos. O que separa a democracia liberal do iliberalismo é a falta de respeito pelas instituições independentes e pelos direitos individuais, principalmente.

No Brasil, o iliberalismo emergiu com a crise de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018. Em todo o mundo, lideranças iliberais combatem os valores democráticos, disputam o poder dentro das regras do jogo e, quando vitoriosos, atuam contra as instituições democráticas. É o que ocorre na Hungria, na Rússia e na Turquia; mais recentemente, na Itália e na Espanha. E foi o que assistimos nos quatro anos de governo Bolsonaro.

A expressão “democracia iliberal” (“illiberal democracy”, em inglês) apareceu pela primeira vez em 1997, em um ensaio publicado na revista “Foreign Affairs” pelo jornalista e cientista político americano Farred Zakaria, um crítico da cultura de cancelamento na esquerda.

No ensaio, Zakaria chamou de democracias iliberais os “regimes democraticamente eleitos e com frequência reeleitos ou mantidos no poder por meio de plebiscitos, que ignoram que seus poderes são limitados constitucionalmente e que destituem seus cidadãos de seus direitos e liberdades básicos”.