sexta-feira, 15 de maio de 2020

A vida numa ‘live’ sobre coronavírus

Nem sempre tenho chance de falar sobre tudo isso que está acontecendo. Quero dizer, limito-me a comentar todos os dias apenas alguns aspectos de uma realidade que me desafia, ou, se quiserem, me atropela.

Nesta semana tive a chance de conversar com o embaixador Marcos Azambuja, num encontro promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Além da amizade, partilhamos um certo senso de humor, que sobrevive mesmo nestas horas sombrias.

Trabalho com a questão ambiental desde a década de 1970. Sei que as pessoas têm certa dificuldade em reconhecer um perigo invisível. Foi assim no desastre de Chernobyl. Muitos europeus não acreditavam que o próprio leite que consumiam poderia estar contaminado. Em Goiânia não era tanto a invisibilidade, mas a sedução de uma pedra brilhante (césio-137) que enganava as pessoas na Rua 57.

Com Chernobyl acentuou-se o declínio das classes dirigentes soviéticas. A epidemia de coronavírus não trouxe desgaste do mesmo nível para o PC chinês. Há um vácuo da presença americana, uma vez que o país abandonou suas pretensões de liderança e refugiou-se no lema America first. Coube a uma potência média, a Austrália, com apenas 25 milhões de habitantes, lançar uma iniciativa internacional para apurar a responsabilidade da China.

Quem gostava muito de comparar a Austrália com o Brasil era Lionel Brizola. Não é minha intenção. A Austrália tem um governo conservador e a China como seu maior parceiro comercial. No entanto, encarou o problema e ainda por cima unificou as forças políticas internas, num esforço comum.

O governo brasileiro censura a China nos bastidores e nas redes sociais, algo bastante imaturo. Nesse caso, o melhor seria ficar calado.

Mas o pior foi a incapacidade de encontrar uma resposta nacional e solidária no combate ao coronavírus. A política de negação da extrema direita internacional acabou encontrando no Brasil sua face mais rude.

Bolsonaro negou a importância da pandemia, afirmando que não passava de uma gripezinha. Consequentemente, negou toda a política de isolamento social, estimulando seus seguidores a combatê-la.

Quando surgiram as primeiras mortes e depois elas foram se acumulando, o processo de negação estendeu-se aos próprios mortos. Seria mesmo tanta gente ou estava havendo uma superestimação?

Com as imagens dos caixões vieram novas dúvidas: existe gente dentro ou são caixões cheios de pedras? Em Minas foi divulgado o vídeo de uma testemunha vendo pedras em caixão. Certamente, uma militante paga. Uma deputada federal chegou a afirmar que um caixão no Ceará estava vazio.

Assim como nega o coronavírus em todas as etapas, Bolsonaro quer passar para a nova fase, como se ele não tivesse devastado a saúde dos brasileiros, sem planos de transição. O Brasil tornou-se um caso internacional. Reportagens, memes, comentários escandalizados na TV estrangeira, Bolsonaro aos poucos se transforma em vilão mundial. Essa é uma das razões por que o título da nossa conversa é a tempestade perfeita. O vírus no Brasil metamorfoseou-se em molécula política.

Muitos dizem que a pandemia é o grande drama que vivemos desde a 2.ª Guerra Mundial. Mas, se observamos aquele período, a situação do Brasil é pior. Vargas custou, mas encontrou seu rumo. Bolsonaro simplesmente não consegue sintonia com o esforço nacional na luta contra o coronavírus. O Brasil não era um dos principais protagonistas da guerra, mas está se tornando uma das principais vítimas da pandemia.

Estamos, como todo mundo, sepultando sonhos. Não importa que tipo de futuro o coronavírus nos permitirá, também ficaremos mais pobres.

Pela minha experiência, a pobreza não é tão terrível quando mantemos nossa vida amorosa e intelectual em bom nível. O problema será viver num país em que a pobreza material inevitável é seguida de um debate político desolador, uma permanente troca de insultos. De qualquer maneira, a alegria de se descobrir vivo quando atravessarmos este túnel talvez compense todo o susto e a tristeza.

A ideia de que o coronavírus nos tornaria a todos melhores pessoas é uma ilusão. Todos os grandes problemas do Brasil, incluída a corrupção, estão em vigor neste período. Ao lado de um louvável movimento de solidariedade, é bom lembrar.

O que pode acontecer, entretanto, é uma chance de negociarmos prioridades, uma vez que a pandemia revelou não apenas a profunda desigualdade social, mas como ela bloqueia o futuro. Quem sabe, também, no final do processo, será possível restabelecer o papel da ciência e do esforço intelectual, ambos tão estigmatizados pelo populismo de direita.

Quando digo papel da ciência não estou pensando em mitificá-la ou transformá-la em nova religião, apenas reconhecer sua importância e continuar trabalhando nas esferas em que atuamos, cheias de incertezas e imprecisões.

Somos uma geração de risco, em todos os sentidos. Espero que possamos sair de casa bem rápido, pois ainda há muito que fazer. Sobretudo depois que nos apegamos tanto à vida, “à vida apenas, sem mistificação”, como dizia o poeta.

Dito isso, creio que, por algum tempo, posso voltar aos detalhes cotidianos.

A guerra de Bolsonaro

A equipe econômica do governo federal informou na quarta-feira, dia 13, que sua projeção para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano caiu de 0,02% positivo para 4,7% negativos. O dado foi apresentado de forma a enfatizar o caráter dramático da situação e a atribuir o cerne do problema ao isolamento social para enfrentar a pandemia de covid-19. Segundo informou o Ministério da Economia, o PIB perde R$ 20 bilhões por semana em razão do isolamento.

Embora tenha negado que estivesse fazendo críticas à adoção da quarentena, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, disse, ao apresentar os números, que o objetivo era “deixar claro para a sociedade o custo das decisões” e mostrar que, “quanto mais semanas ficarmos em distanciamento social, maior será o número de falências e de desemprego e maior será o impacto de longo prazo”.

Ato contínuo, na manhã seguinte, o presidente Jair Bolsonaro informou aos brasileiros que há uma “guerra” em curso no País, em referência ao isolamento social determinado por autoridades estaduais e municipais. “O que está acontecendo parece uma questão política, tentando quebrar a economia para atingir o governo”, disse Bolsonaro, em seu dialeto peculiar.

Ou seja, o governo parece ter unificado o discurso em torno da narrativa segundo a qual o Brasil está à beira do precipício econômico e social não em razão da pandemia, que está arrasando mesmo países desenvolvidos, mas sim graças ao isolamento social – que, conforme Bolsonaro, é resultado de um imenso complô da oposição, em conluio com a imprensa e com o Judiciário, para sabotar sua administração.


Para essa “guerra” em defesa de seu governo e, por extensão, do País, Bolsonaro convocou os empresários a pressionar o governador de São Paulo, João Doria, a relaxar a quarentena no Estado. “Um homem está decidindo o futuro de São Paulo, o futuro da economia do Brasil. Os senhores (empresários), com todo o respeito, têm de chamar o governador e jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra”, disse o presidente, que, prevendo “caos” social, arrematou: “O Brasil está quebrando. E depois de quebrar, não é como alguns dizem, que a economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver num país de miseráveis, como alguns países da África Subsaariana”.

Assim, o presidente Bolsonaro quer fazer crer que o isolamento social, adotado em todo o mundo para conter a pandemia, é uma escolha, e não um imperativo – e essa escolha, aqui no Brasil, seria fruto de maquinações políticas. Ora, é um insulto à inteligência presumir que chefes de Estado ao redor do mundo estejam submetendo seus governados a privações desnecessárias. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, estima que 9 das 11 principais economias do mundo terão retração econômica severa e, em vários casos, sem precedentes. O Unicef (Fundo da ONU para a Infância) prevê que o colapso do sistema de saúde aumentará em 1,2 milhão de crianças a conta da mortalidade infantil no mundo nos próximos seis meses. O empobrecimento planetário já é uma realidade – que fica particularmente dramática em países cujos governantes, como Bolsonaro, agem de maneira irresponsável.

Se o presidente estivesse realmente preocupado em mitigar os múltiplos efeitos da pandemia, travaria uma guerra não contra os governadores e contra a oposição, e sim contra o vírus – que, por ora, está em grande vantagem, graças à bagunça que Bolsonaro criou no Ministério da Saúde, incapaz de liderar os esforços contra a pandemia, e ao comportamento do presidente, que continua a desdenhar das mortes, estimulando os brasileiros a ignorar a quarentena.

Nesse seu prélio delirante, Bolsonaro chegou até a citar uma frase de Napoleão, “enquanto o inimigo estiver fazendo um movimento errado, deixe-o à vontade”, para dizer que “o movimento errado é se preocupar apenas e tão somente com a questão do vírus” – e quem ganha com isso, disse o presidente, é “a esquerda”, que “está quietinha”.

Se quisesse realmente se inspirar em Napoleão, o presidente Bolsonaro deveria buscar outra frase do general francês, aquela que diz que “o verdadeiro líder é um mercador de esperanças”. Algo praticamente impossível para um presidente cuja vocação é frustrá-las.

Ministério da Morte

Quantas pessoas mais terão que morrer para atender aos caprichos do presidente?
Júnior Bozzella (SP-PSL)

Um dia de fúria na vida do ex-capitão contaminado pelo medo

No papel de presidente do sexto país do mundo com o maior número de vítimas do Covid-19, o ex-capitão Jair Bolsonaro, afastado do Exército porque planejou detonar bombas em quartéis, viveu 24 horas de fúria sem que ninguém ao seu lado tentasse contê-lo.

Naturalmente não foi a primeira vez e nem será a última. Mas desta vez tinha razões de sobra para se comportar assim. Quantas vezes já não se disse que o cerco se fecha em torno dele e que seu mandato corre risco? Ninguém melhor do que Bolsonaro sabe e sente.

Daí as reações desatinadas que indicam a medida do desespero que toma conta dele. Uma coisa é Bolsonaro disparar para todos os lados a cada momento. É seu instinto assassino. Não sabe viver em paz. Foi treinado para matar, mas nunca lutou uma guerra de verdade.

Outra coisa é atirar em tudo que se mexa à sua frente porque está com medo do que possa acontecer amanhã ou daqui a pouco. Bolsonaro testou positivo para o vírus da crise política desatada com a saída do governo do ex-ministro Sérgio Moro. O hospedeiro do vírus é ele.


No dia em que o Brasil se aproximou dos 14.000 mortos por Covid-19 em menos de dois meses e ultrapassou 200.000 infecções, Bolsonaro defendeu novamente a volta indiscriminada ao trabalho, o uso da cloroquina para combater o mal, e destratou seus desafetos.

Em vídeoconferência, convocou os empresários paulistas a desafiarem as regras de isolamento baixadas pelo governador João Doria (“Os senhores têm que chamar o governador e jogar pesado porque a questão é séria, é guerra. É o Brasil que está em jogo”)

– O que parece que está acontecendo é uma questão política, tentando quebrar a economia para atingir o governo. Um homem em São Paulo está decidindo o futuro da economia do Brasil – disse Bolsonaro. Ao seu lado, o ministro Paulo Guedes, da Economia, concordou.

Na mesma ocasião, atacou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, acusando-o de “querer ferrar o Brasil” com a aprovação de medidas que contrariam o governo. Mais tarde, os empresários se queixaram da falta de propostas para tirar o país do atoleiro.

Mais cedo, ele havia dito a jornalistas que “o Brasil está quebrado” e fadado a ser “um país de miseráveis”. E assinado uma Medida Provisória que anistia erros de servidores públicos cometidos no combate ao vírus. Os dele, inclusive. Uma aberração!

O Covid-19, a recessão econômica que se desenha e a crise política que se agrava tiram o sono do presidente que atravessa as madrugadas ao celular para ler o que dizem dele nas redes sociais. Ali, seus seguidores já não se animam a socorrê-lo como antigamente.

Nas próximas horas, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, presidente do inquérito que apura a denúncia de Moro de que Bolsonaro tentou intervir na Polícia Federal, dará sua decisão sobre o vídeo mais explosivo da história recente do país.

Libera o vídeo para divulgação na íntegra? Libera com cortes? Ou não libera? Quatro colegas de Celso ouvidos por este blog apostam que o vídeo será liberado para divulgação na íntegra. É tudo o que Bolsonaro não quer porque teme os efeitos devastadores do vídeo.

Ficará provado que na reunião ministerial de 22 de abril último ele ameaçou, sim, intervir politicamente na Polícia Federal para remover seu diretor-geral e o superintendente do Rio. Foi o que acabou por fazer uma parte antes e outra depois da demissão de Moro.

Mesmo que o Procurador-Geral da República, ao fim do inquérito, preferira arquivá-lo ao invés de denunciar Bolsonaro, seu conteúdo será aproveitado para sustentar inúmeros pedidos futuros de impeachment. Mais de 20 deles repousam nas gavetas de Maia.

Pensamento do Dia


Nas favelas, até a pandemia de coronavírus é invisível

Às 18 horas do dia 14 de maio, o Painel Rio COVID-19 confirmava 1.509 óbitos provocados pelo novo coronavírus na cidade do Rio de Janeiro. Desde o início da pandemia, há preocupação com sua escalada em potencial nas favelas e periferias. A previsão de que a mortalidade poderá ser maior nesses territórios é fundamentada em fatores da desigualdade socioeconômica: a intensa circulação de moradores que não podem parar de trabalhar; a proximidade e o tamanho dos domicílios, becos e travessas contribuindo para o contato entre as pessoas; a dificuldade de acesso aos recursos para prevenção ou tratamento da doença, entre outros.

É consenso que as famílias em situação de maior vulnerabilidade necessitam de medidas específicas e priorizar as favelas é um caminho efetivo para enfrentar o avanço da pandemia. No conjunto de favelas da Maré, a organização não governamental Redes da Maré iniciou em março, com apoio de parceiros locais e externos, uma série de ações para minimizar a crise do coronavírus. Uma das frentes de atuação, chamada De Olho no Corona!, acolhe demandas dos moradores com confirmação ou suspeita de contaminação, orientando o acesso aos serviços de saúde e à rede assistencial pública ou privada.

Os dados levantados nesta ação apontam um número bem maior de casos e de óbitos em comparação à contagem oficial. Até agora, 35 óbitos estão associados, pelos familiares, à covid-19 na Maré, a maioria já confirmada por testagem. Porém, oficialmente, foram contabilizados oito óbitos. É sabido que a subnotificação vem acontecendo em muitas localidades, dada a escassez de testes e de outras formas de diagnóstico, mas outro fator chama nossa atenção: casos confirmados e óbitos de moradores estão sendo notificados em bairros vizinhos.

O Painel Rio COVID-19 mostra os registros por bairro de residência da vítima. Enquanto a Maré, com 129.770 moradores, aparece com seis óbitos para cada 100.000 habitantes, sendo a 139ª taxa de mortalidade entre os 162 bairros cariocas, o bairro vizinho de Bonsucesso, com 18.711 moradores, apresenta a maior proporção da cidade: 118 óbitos por 100.000 habitantes (dados populacionais do IBGE, 2010, disponíveis em Data.Rio/Instituto Pereira Passos).

Esse viés decorre, em muito, pela falta de endereços padronizados nas favelas e pelo desconhecimento de que a Maré é, desde 1994, um bairro formal, e não uma localidade pertencente a Bonsucesso ou Ramos. Porém, muitas vezes, o status administrativo da região é ignorado nos cadastros das concessionárias de serviços públicos e de órgãos oficiais, inclusive de escolas e unidades de saúde, o que prejudica as estatísticas que servem de base para estudos e planejamento das políticas públicas.

Tornar visível nas estatísticas oficiais a incidência da covid-19 na Maré pode ser decisivo para frear a propagação da doença e, portanto, a preservação de vidas. O que se espera neste momento é que o poder público avance sobre as favelas para um combate bem distinto daquele que está acostumado a protagonizar cotidianamente com suas forças de segurança, ao que tudo indica, a única política pública para a qual as favelas não são invisíveis.
Eliana Sousa Silva (ONG Redes da Maré), professora do Instituto de Estudos Avançados da USP / Dalcio Marinho, coordenador do Censo Maré e mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais

Aos 60 anos, atualíssimo

"Quarto de despejo está aí”. A frase breve de Conceição Evaristo, escritora, professora, referência para mulheres negras brasileiras de todas as idades, resume a relevância da obra de estreia de Carolina Maria de Jesus, cujo lançamento completa 60 anos neste 2020. Sexagenário, se rejuvenesce. É livro mais atual que nunca, porque retrata um país incapaz de escapar do círculo vicioso da vulnerabilidade social. A escrita em primeira pessoa, na forma de diário em linguagem crua, denuncia a fome, o trabalho precário, o desemprego, a escassez de serviços e assistência a que favelados brasileiros, como foi Carolina, estiveram submetidos historicamente. E estão ainda hoje, com a sobreposição de crises (sanitária, social, econômica) decorrentes da pandemia de Covid-19.

Conceição Evaristo se juntou virtualmente a Vera Eunice de Jesus, professora e poeta, filha e zeladora da obra e da memória de Carolina, num encontro organizado pela Flup. Foi a primeira edição digital da Festa Literária das Periferias, que tira leitores e autores de onde o mercado editorial só via descampados. Do mesmo território brotou Carolina. Os 60 anos de “Quarto de despejo – Diário de uma favelada” viraram tema do evento que, desamarrado da agenda presencial no Rio de Janeiro, ganhou o país. De todas as unidades da Federação, à exceção de Alagoas, mulheres negras, 485 ao todo, se inscreveram em forma de carta à autora para participar do ciclo de formação do qual sairá, ano que vem, a versão Século XXI da obra.

Anderson Vieira
Na mesa inaugural, Conceição e Vera Eunice passearam por Carolina Maria de Jesus mãe, provedora, escritora, fundadora de um estilo literário: “Foi a primeira escritora brasileira a escrever a partir da experiência pessoal da pobreza. E, ao tentar se apropriar da língua culta, ela tinha projeto literário. Carolina catava papel e catava palavras para fazer literatura”, disparou Conceição Evaristo no discurso que, na véspera do 13 de Maio, libertaria a companheira de ofício das amarras da competência do uso da Língua Portuguesa, privilégio de poucos.

Folhear “Quarto de despejo” no Brasil do coronavírus é um espanto, um choque de realidade. Logo na primeira página, Carolina informa: “Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios (sic) nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida”.

A data é 15 de julho de 1955. Poderia ser 14 de maio de 2020, quando mães de favelas Brasil afora, desempregadas e sem rendimentos, veem disparar o preço dos alimentos. No mês passado, o IBGE apurou queda de 0,31% no índice oficial de inflação, o IPCA. Foi o menor resultado em 22 anos. Combustíveis ficaram mais baratos em todas as 16 áreas pesquisadas pelo órgão oficial de estatísticas e puxaram para baixo o indicador. Mas a comida, porque as famílias estão ficando mais em casa em razão do isolamento social, disparou: 1,40% em março, 2,24% em abril.

Em 1º de janeiro de 1960, amanhecer de um novo ano, ela avisa: “Levantei as 5 horas e fui carregar agua (sic)”. Desde que o Ministério da Saúde anunciou a transmissão comunitária da Covid-19 no país e passou a recomendar a higiene das mãos com água, sabão e álcool gel, intensificaram-se as queixas contra a falta de saneamento. No país, um em cada quatro domicílios abaixo da linha de pobreza do Banco Mundial não conta com abastecimento de água por rede geral. Em mais da metade (58%) faltam água, esgotamento sanitário ou coleta de lixo, segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2019, do IBGE.

Cebola, batata, feijão, leite, ovos, gás de cozinha, todos mais caros; renda corroída pela recessão já instalada; rede de proteção social insuficiente para conter a vulnerabilidade galopante. Resultado: fome. E ninguém tratou com tanta propriedade da fome real (de alimentos) e metafórica (de vida digna) como Carolina Maria de Jesus em “Quarto de despejo”.

“As geladeiras estão vazias. Entre morrer da pandemia e morrer de fome, o que as pessoas vão escolher? Pobre não tem escolha”, disse Vera Eunice na Flup. “Se a gente fingia que não sabia que a pobreza era marcante, está tudo diante de nossos olhos. A pandemia suspende o tapete e tira a sujeira”, acrescentou Conceição Evaristo, na última terça. Do passado, Carolina arrematou: “E assim, no 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. “Quarto de despejo” está aí.
Flávia Oliveira

Quem produz a pandemia

Tivemos outras pandemias nos últimos anos e foram emitidos avisos de que algo muito sério poderia acontecer. A atividade humana gerou essas pandemias porque alteramos o ciclo da água e o ecossistema que fazem o equilíbrio no planeta. Desastres naturais — pandemias, incêndios, furacões, inundações... — continuarão porque a temperatura na Terra continua subindo e porque arruinamos o solo.

Há dois fatores que não podemos deixar de considerar: as mudanças climáticas causam movimentos da população humana e de outras espécies. A segunda é que as vidas animal e a humana estão se aproximando todos os dias como consequência da emergência climática e, portanto, seus vírus viajam juntos 
Jeremy Rifkin, sociólogo com mais de 20 livros dedicados a propor fórmulas que garantam nossa sobrevivência no planeta, em equilíbrio com o meio ambiente 

Há mais do que números

Os dados são oficiais. Mais de 13 mil mortos pela Covid-19. Se todos estivessem juntos, daria população maior do que a de 60% dos 5.740 municípios. Cento e noventa mil infectados. Se todos se reunirem em um mesmo território, formariam uma cidade maior do que Ibirité.

E daí? São apenas 13 mil mortos, como diria o ex-ministro e deputado Osmar Terra. Infelizmente, não são apenas números. Os números encobrem faces, encobrem sonhos dissipados, encobrem famílias destroçadas, encobrem amores interrompidos. Os números encobrem vidas. Vidas não se contam em dúzias, senhor deputado.


A nossa pátria mãe gentil está em prantos. Choram Marias e Clarisses, como cantaram Aldir Blanc e João Bosco. Choram as voluntárias carpideiras, como choravam nos velórios em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Chora o povo brasileiro por seus mortos improváveis.

Choram Marias e Clarisses por Aldir Blanc, Flavio Migliaccio, Daisy Lúdice, Daniel Azulay, Abraham Palatnik, Jesus Chediak, Ciro Pessoa, Sergio Trindade, Naomi Munakata, Florindo Coral, Dom Aldo Pagoto, Gerson Peres, Carlos José, Sergio Campos Trindade, Ricardo Brennand e Sérgio Santana.

Onde está Regina? Protegida em sua redoma, respirando o oxigênio de seu individualismo e de seu egoísmo, e, sem compaixão, cantando “Todos juntos, vamos pra frente, Brasil”.

Sem poder velar e despedir de seus mortos, familiares mascarados choram por Denifrank, William, Rodolfo, Walter, Valdemar, Antônio, Antônia, Alvanei, Warney, Wesley, Wirciley, Valnelson, Nyelsen, Nelson, Deison, Emerson, Adonias, Zacarias, Yvone, Claudio, Jayme, Romério, Alzira, José Raimundo, Ismênia Benta, João Carlos, Ivor, Thiago, Álvaro, Adélia, Adelita, Valdomiro, Ivanildo, Lúcia, Francisca, Aisian, Viviane, João Faustino, Mariano, Osório, Gregório, Herondina, Djalma, Alan Patrick, Frederic, Cesar, Orlando, Fernando, Eduardo, Evandro, Sandro, Damasceno, Diógenes, Adalberto, Albert, Cristóvão, João, Javier, José Francisco, Sérgio Henrique, Luiz André, Benedito, Marcinho Osório, Demétrio, Alípio, Nino, Jorge Luiz, Maurício, Mário, Bruno, Matheus, Joaquim, Manuel, Messias, Altamiro, Maria Altamira, Maria Aparecida, Maria Madalena, Maria Rúbia, Maria Joana, Maria Lúcia, Maria da Conceição, Conceição, Resneider, Douglas, Victor, Erlim, Raquel, Larissa, Rafael, Priscila, Aflodísia, Diva, Tarcizo, Seisho, Sueli, Marcel, Lia, Marilda, Olinda, Quezia, Nilce, Solon, Maryulda, Maryellen, Milene, Ana Lúcia, Juliana, Gil e Ana.

De madrugada, o presidente assombrado acorda de um pesadelo infernal. Sentia vírus gigantes entrando por sua boca, suas narinas, seus ouvidos e seus olhos. Eram milhares deles, em forma de microanões em disparada invadindo seu corpo. Levanta-se, fica em pé sobre a cama, põe as mãos nas suas têmporas, com expressão de pavor, como no quadro de Munch, e solta seu grito de medo: e daí?

O nojo

A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.

O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.

Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.

Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.

Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.

Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.

Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.

O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?

Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês…), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.

Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.

Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.

Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.

Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.

Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.

Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.

Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?

Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.

Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.

Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.

São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.

E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?

Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.

É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.

O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?

Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.

Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.

Pirâmide Brasil


Triste Brasil

Enquanto o sr. Jair Bolsonaro finge (e mal) ser um presidente da República preocupado com o destino de todos os brasileiros, e não só com o dele e o dos que estão no seu círculo afetivo, o Brasil ultrapassou a marca de 12 mil mortos por covid-19 no início desta semana. Já são quase 178 mil casos confirmados da doença no País, fora a subnotificação.

Em vez de demonstrar empatia e juízo diante de um quadro tão desolador, Bolsonaro reforçou sua opção pela afronta e pela irresponsabilidade. Sem apresentar à Nação qualquer planejamento seguro para a retomada das atividades econômicas, o presidente tornou a vociferar contra governadores que mantêm a quarentena em seus Estados e exigiu, em termos rasteiros, a imediata volta ao trabalho. “O povo tem de voltar a trabalhar. Quem não quiser trabalhar que fique em casa, porra. Ponto final”, disse Bolsonaro à saída do Palácio da Alvorada na manhã de ontem, para delírio da meia dúzia de apoiadores que batem ponto no local.


Autoridades em saúde pública alertam que o ritmo de crescimento do número de óbitos por covid-19 no Brasil é bastante similar ao dos EUA, país que hoje lidera o triste ranking de vítimas fatais do novo coronavírus, com mais de 83 mil mortos. A continuar assim, não é improvável, dizem os especialistas, que o Brasil iguale ou até ultrapasse essa nada honrosa posição, a depender das medidas de combate à pandemia que sejam adotadas no País. A partir da confirmação do primeiro óbito (26/2), o País levou 74 dias para atingir a marca de 10 mil mortes. Os EUA, 73 dias. Embora esta diferença de apenas um dia seja desprezível, conta em desfavor do Brasil o fato de o primeiro óbito nos EUA ter ocorrido mais de um mês antes (22/1). Ou seja, ao que parece, o novo coronavírus matou mais rápido aqui do que lá, por uma série de razões

De acordo com uma projeção feita pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME, na sigla em inglês) da Universidade de Washington, o País deverá chegar a agosto com quase 90 mil mortos em decorrência da covid-19, caso o porcentual de cidadãos que se mantêm em isolamento não aumente. Independentemente dos números projetados, que variam a depender da instituição e da metodologia, é dever do Estado, em todas as esferas de governo, e da sociedade agir, cada um na medida de suas responsabilidades, para evitar que as projeções mais funestas se tornem realidade.

É chocante ver ruas País afora apinhadas de gente, como se um vírus potencialmente mortal não estivesse em franca disseminação. Municípios que decidiram flexibilizar as regras de isolamento observaram um salto no número de casos de covid-19. Não é hora de relaxar. Mínimos descuidos podem ser fatais. “Estou vendo governadores ameaçarem a população com lockdown (bloqueio total). Isso é um absurdo”, reclamou o presidente Bolsonaro. Não é, caso as medidas adotadas até agora pelos governos locais para preservar a saúde das pessoas e a capacidade de atendimento do sistema público de saúde se mostrem ineficazes.

O País já vive as agruras das crises sanitária e econômica sem precedentes na história recente. Incapaz de ajudar, por má vontade e incompetência, Bolsonaro ainda atrapalha ao adicionar ao quadro uma crise política e federativa. O presidente ameaçou processar os governadores e prefeitos que insistem em ser responsáveis e ignoram os decretos inconsequentes que brotam do Palácio do Planalto. A autonomia dos entes federativos para tomar as ações necessárias ao combate à pandemia foi reconhecida pelo STF.

O continente americano ultrapassou a Europa em número de casos confirmados de covid-19. Os EUA têm 1,4 milhão de infectados. O Brasil, quase 178 mil. Os dois países representam 85% dos casos registrados nas Américas. Tamanha concentração de casos não é coincidência. Tanto Donald Trump como Jair Bolsonaro, este praticamente um ventríloquo daquele, desde o primeiro momento desdenharam do potencial ofensivo do novo coronavírus e fazem de tudo para sobrepor seus interesses particulares ao interesse público. Mal ou bem, os EUA já passaram pela fase mais crítica da pandemia. Triste Brasil.

Cai ou vira pato manco?

Jair Bolsonaro parece estar chegando àquele ponto de não retorno da trajetória em que alguns presidentes ou caem e ou viram patos-mancos. Claro, há governantes — ainda bem — que não passam por isso. Mas o presidencialismo à brasileira vive hoje uma espécie de maldição depois de ter expelido do cargo, sob o pretexto da prática de “pedaladas fiscais”, uma presidente da República porque o establishment queria vê-la pelas costas. De lá para cá, mudou a altura do sarrafo no Planalto — e os que foram beneficiários do processo também correm o risco de queda.

Há dúvidas em torno do que fará o procurador geral da República, Augusto Aras, em relação às acusações de Sergio Moro contra Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. O vazamento de trechos do vídeo da reunião ministerial em que o presidente fala da proteção aos filhos fez subir a temperatura de tal forma que Aras terá que encontrar uma boa desculpa para arquivar o inquérito. Mas, segundo observadores, pode sair pela tangente, talvez alegando não ter encontrado elementos concretos de crime comum, mas apenas de crimes de responsabilidade, uma questão do Congresso.

Se incluído no conjunto da obra de Bolsonaro, que contempla investigações por envolvimento na disseminação de fakenews e participação em manifestações antidemocráticas, esse caso é mais do que suficiente para deflagrar um julgamento político no Legislativo. Assim como a hipotética denúncia de Aras por crime comum, o processo por crime de responsabilidade teria que ser autorizado por dois terços da Câmara — só que, em vez de ter lugar no STF, o julgamento seria feito pelo Senado, como ocorreu com Fernando Collor e com Dilma Rousseff.



Dilma caiu porque não teve 172 votos na Câmara para barrar o impeachment, diferentemente de Michel Temer, que derrotou duas denúncias por corrução apresentadas pela então PGR, Raquel Dodge. É o que Bolsonaro quer repetir — única razão pela qual se dobrou ao Centrão e passou a distribuir cargos. Pode ser que sim, pode ser que não, dada a volubilidade do grupo nessas horas, quando costuma dar preferência ao poder futuro em relação ao passado. Vai depender da negociação com Hamilton Mourão.

Mas é fato que, a partir de agora, em meio ao drama da pandemia que mata milhares e arrasta o país para a recessão, o sistema político entrou definitivamente no “modo crise”. As acusações ao presidente, e cada passo das investigações, terão centralidade, indicando que Bolsonaro dedicará o resto de seus dias no governo a se defender e articular votos no Congresso — não para aprovar projetos, mas para escapar do impeachment.

Ninguém consegue governar assim. Michel Temer, por exemplo, não caiu mas virou pato-manco, incapaz de governar efetivamente, depois de gastar todas as energias políticas na sobrevivência. É cedo para saber se Bolsonaro cairá ou virará pato manco, mas dificilmente escapará dessas opções. É altamente improvável que, acuado como está, consiga marcar o item “nenhuma das alternativas anteriores” nessa prova, recompondo-se politicamente ou obtendo apoio militar a medidas autoritárias para se manter no poder.

Helena Chagas

Brasil em chamas

Meu conselho de investimento é o de não correr para um edifício em chamas. Neste momento, é melhor deixar o Brasil para especialistas, loucos, oportunistas de longo prazo e aqueles sem outras opções
Armando Castelar, economista da FGV

O resgate do respeito

Na semana passada, os principais jornais brasileiros publicaram importante artigo pedindo a reconstrução da política externa do país. Assinaram o texto todos os ex-ministros de Relações Exteriores desde o governo Sarney, um notável diplomata e um ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Com a cacife de quem conduziu a diplomacia nacional nos últimos 28 anos, o grupo critica implacavelmente a destruição de nossa autoridade além-fronteiras, levada a cabo pelo atual governo. E propõe que a atuação do país volte a se pautar pelos princípios que desde muito cedo vertebraram a conduta e a identidade nacional diante do mundo: autonomia frente às nações poderosas, universalismo, multilateralismo e defesa da solução pacífica de conflitos.

Assim como a Covid-19, mais dia, menos dia, este governo passará —e com ele o chanceler que tão bem o espelha na mediocridade e na fúria descerebrada contra as melhores tradições diplomáticas brasileiras. Mas as circunstâncias sob as quais o país terá de reconquistar o respeito alheio posto abaixo pelo obscurantismo serão provavelmente muito diversas daquelas que favoreceram nossa ascensão internacional nas últimas décadas.

As projeções mais razoáveis sobre o estado do mundo pós-pandemia apostam não em mudanças radicais, mas no acirramento de tendências já presentes antes da chegada da peste. Elas parecem apontar para a erosão do que os estudiosos denominaram a ordem internacional liberal --o conjunto de normas, regras e organizações supranacionais de natureza econômica e política, estabelecidas ao término da 2ª Guerra Mundial. As instituições de Bretton Woods e as que surgiram e se multiplicaram no âmbito das Nações Unidas definem sua arquitetura multilateral.

O definhamento do apoio dos Estados Unidos a tais instituições, que Trump não iniciou, mas acentuou —bem como sua preferência por ações unilaterais, além da encarniçada disputa com a China—, as enfraquecem e deslegitimam. Basta ver a campanha xenófoba do presidente americano contra a Organização Mundial da Saúde desde a eclosão da pandemia. Tais organismos decerto não haverão de perecer, mas talvez ofereçam espaço menor para países como o Brasil buscarem reconhecimento e protagonismo.

Nesse ambiente adverso, reconstruir a política externa brasileira demandará mais do que voltar aos princípios consagrados: será imperativo traduzi-los em novas formas de ação. Algo que nem passa pela cabeça do patético chanceler, mas desafia todos quantos aspirem a que o país resgate o respeito internacional perdido.

Maria Hermínia Tavares

Bolsonaro fala uma verdade

As Forças Armadas estão sim com ele. Os militares o apoiam. Não em bloco uníssono. E não em todas as barbaridades. Mas na essência. Os militares do Planalto estão inebriados com o poder e com a revisão histórica do golpe de 1964 e da ditadura. Só ingênuos insistirão na tese de que os generais podem puxar o tapete vermelho de um capitão inculto, indisciplinado e autoritário ao extremo. Eles se usam mutuamente. 

De autoridade os militares entendem. De alinhamento total, também. Detestam que os outros poderes não batam continência para eles. Isso ficou claro nos últimos sete dias. Enquanto o circo pegava fogo em Brasília, passávamos de 13 mil mortos pela covid-19. Estimativa atual é de um morto a cada dois minutos. É nosso o recorde mundial de vítimas entre profissionais da saúde. Triste. Não são soldados que tombam em guerra. Não são mortes inevitáveis. Não podem ser usados como bucha de canhão.


Houve uma escalada do apoio militar. O general Villas Boas elogiou a performance destrambelhada de Regina Duarte, por sua “inteligência, humildade e segurança”. A marcha ao STF com empresários foi acompanhada pelo general Braga Netto, o sorridente no comando das crises. O general Augusto Heleno afirmou que divulgar na íntegra o vídeo da reunião ministerial é “um ato antipatriótico”.

O clímax foi o artigo “Limites e responsabilidades”, assinado nesta quinta-feira pelo vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, no jornal O Estado de SP. Mourão é culto e inteligente, ao contrário de seu chefe. Seu artigo começa com uma verdade incontestável: “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”. Segue com um consenso mundial: a esta altura, está claro que a pandemia de covid-19 é uma questão de saúde, social, econômica e política.

Mas em nenhum momento Mourão atribui corretamente a culpa pelas “raias da insensatez”, pelo “caos” e o “estrago da imagem do Brasil no exterior”. Mourão culpa a imprensa. O Judiciário. Os governadores e prefeitos. O Legislativo. As medidas desordenadas de isolamento social. “Enquanto os países mais importantes se organizam para enfrentar a pandemia em todas as frentes”, diz o vice-presidente, no Brasil estamos “entregues a estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo”. Por que será? Quem é o responsável?

Não, general Mourão, o Brasil não assiste à “usurpação das prerrogativas do Poder Executivo”. O que se ensaia, nas mais altas autoridades, é a usurpação dos valores democráticos e humanos. Faltam limites e responsabilidades a quem jurou obedecer à Constituição. O senhor se calou quando alguém chamou os ministros do Supremo de gângsteres ou coisa pior? 

Bolsonaro castra o Ministério da Saúde, faz lobby de remédios condenados por estudos internacionais, briga com governos locais, interfere na Polícia Federal para proteger filhos de investigações. Uma presepada atrás da outra. Ou alguém confia nessa novela de exames médicos de Artur, Rafael, 05 etc? Nem nos EUA de Trump usou-se pseudônimo. Qual brasileiro aprova um líder que, numa semana de recordes de vítimas e lutos, convoca churrasco, pelada, sai de jet-ski e vem falar de “ideologia de gênero”? 

Soubemos pela imprensa (sempre ela!) que 73.242 militares receberam indevidamente R$ 600 de auxílio emergencial, num total gasto pelo governo de quase R$ 44 milhões. Muito estranho. Terão de devolver. Mas, por que receberam?

O apoio explícito das Forças Armadas é uma das poucas verdades que ouvimos de Bolsonaro. E a verdade dói. É mais um prego no caixão verde-amarelo.