domingo, 7 de agosto de 2016

'A la Brasil'

Quando o presidente do COI, Thomas Bach, disse que a Olimpíada seria realizada “à la Brasil”, deixou uma pergunta no ar. Isso é bom ou ruim? Os próprios jornalistas, quando repetiam a expressão “à la Brasil”, com um sorriso, acrescentavam: no bom sentido. O próprio Thomas Bach declarou que usou o termo pensando na alegria e emoção dos brasileiros. Dizem que os estrangeiros na Cidade Olímpica têm uma expressão mais simples para explicar a sucessão de pequenos problemas: TIB, This is Brazil.

Historicamente, ambiguidade tem um lugar importante na definição de Brasil. No século XVI, Américo Vespúcio classificava o país como um misto de éden e barbárie. Quase todas as tentativas de definir o Brasil esbarram na ambiguidade, mesmo quando são feitas por brasileiros.

A expressão “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, tanto pode ser vista como uma tendência à bondade quanto como uma recusa em aceitar o jogo impessoal do poder compartilhado, uma resistência aos ideais republicanos.

Se as tentativas de definir o Brasil são tão ambíguas, pode ser até que ambiguidade seja um traço insuperável de nossa História. Talvez tenha sido esta a intenção de Tom Jobim quando disse que o Brasil não era para principiantes.

Mesmo aqui dentro, quando nós tentamos encontrar certezas, somos confrontados com contradições insuperáveis. Muitos analistas consideram que os brasileiros têm um traço bovariano, expressão inspirada em Emma Bovary, personagem do escritor Gustave Flaubert. Nesse sentido, eles teriam a tendência a se considerar melhores do que são na realidade, esperando sempre que algo de bom e extraordinário venha resgatá-los. Outros, baseados em Nelson Rodrigues, afirmam que os brasileiros têm um complexo de vira-lata e sentem-se inferiores aos outros povos.

Thomas Bach disse que o momento era especial por causa da crise. Ele mesmo pediu às delegações que compreendessem essa realidade e limitassem seu nível de exigência. O Brasil, disse ele, é um país dividido. Faltou dizer que é dividido também quanto à Olimpíada: a maioria teme que o país perca mais do que ganhe com os Jogos.

Mas a alegria e a emoção estão garantidas. Alegria, emoção e choradeira. Na TV, as reportagens sobre atletas brasileiros sempre têm chororô. Às vezes, do computador, pergunto: já choraram? Dependendo da resposta, vou assistir ao final na tela grande, ver as imagens, conhecer as famílias. São muitas histórias de superação. O “New York Times” destacou um traço talvez singular no Brasil: o destaque às pessoas que superam dificuldades, mesmo que não tenham chance de vitórias. Nos EUA, a chance de vitória talvez seja um critério mais decisivo. Aqui é a superação.

Tenho uma certa dificuldade em dividir não só pessoas como países em espaços racionais e emocionais. Hoje em dia, sabemos que as emoções contêm elementos racionais, e a chamada racionalidade não está despojada de emoções. Quando a Embraer produz um avião, realiza uma tarefa de alta complexidade e é julgada unicamente pela qualidade, segurança e preço de seus produtos. Milhares de outros produtores brasileiros buscam incessantemente a excelência e sabem que apenas ela pode ajudá-los a competir.

Emoção e alegria são qualidades invejáveis. No entanto, em muitas áreas não são decisivas. Mesmo que não tenha intenções, Thomas Bach acabou nos fazendo encontrar de novo com a ambiguidade que nos persegue desde 1500. Reduzam suas exigências, valorizem a emoção e a alegria pois assim se fazem as coisas “à la Brasil”. Soa um pouco paternal, mas essa é a canção que ouvimos muito antes de Bach, o compositor, nascer, em 1650. Pode ser que a alegria seja um fator importante. Não quero complicar, mas a ambiguidade se estende também até ela.

Há quem ache os brasileiros tristes. Em 1928, Paulo Prado publicou um famoso ensaio sobre a tristeza brasileira, afirmando que a sensualidade tropical levou ao esgotamento da energia, uma constante fadiga. Índios que perdiam suas terras, africanos escravizados e portugueses expatriados, todos tinham razão para se entristecer.

São muitas as armadilhas para se compreender de estalo o sentido de “à la Brasil”. É preciso ver os olhos do outro, os lábios do outro, o tom de sua voz. A expressão é uma espécie de certeza individual diante de uma ambiguidade secular. “À la Brasil” pode ser um método de depilação íntima, um atraso no horário de entrega, um choro ao receber a medalha, enfim, uma permanente tentativa de definir o quase indefinível.

Fernando Gabeira

A conta dos sonhos ficará no Brasil

Daqui até o fim dos jogos, centenas de jovens subirão nos pódios, baixarão a cabeça e receberão as medalhas de ouro das Olimpíadas do Rio. Serão momentos de sonho, felicidade e alegria. Da alegria dos jovens que sorriam para o mundo durante o desfile dos atletas na festa da abertura.

Nada reduzirá a beleza dessas cenas. Para os brasileiros, ficarão os momentos de sonho e a conta. Alguém ainda fará o cálculo da fatura dos custos diretos e indiretos transferidos à Viúva. Chutando para cima, poderá chegar a R$ 500 milhões.

O Maracanã, joia da privataria do governo do Rio e da Odebrecht, tornou-se um magnífico elefante branco, incomparável em noites de festa. A manutenção das instalações olímpicas custará R$ 59 milhões anuais num estado cuja rede de saúde pública entrou em colapso.


A máquina de marquetagem que prometeu Olimpíadas sem dinheiro público voava nas asas dos jatinhos de Eike Batista, o homem mais rico do Brasil, candidato ao pódio mundial. Era o tempo em que os governantes torravam o dinheiro achando que o pré-sal cobriria qualquer projeto.

Nos dias em que os problemas da vila olímpica dominaram o noticiário foi frequente o argumento de que os críticos da festa carregavam o eterno “complexo de vira-lata”. Criação de Nelson Rodrigues, ele refletia “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Bola dentro, mas às vezes a questão é mais complicada. Há cães de raça, mas há também adoráveis vira-latas.

A sorte, essa trapaceira, fez com que o repórter José Maria Tomazela mostrasse uma nova dimensão da problemática canina. Ele expôs a ação de uma quadrilha de Sorocaba (SP) que mutilava e pintava filhotes de vira-latas, transformando-os em chihuahuas, e pinschers. Vendiam chihuahuas por R$ 300.

Viu-se assim outro ângulo da questão: há gente que vende chihauhuas e entrega vira-latas maquiados a pessoas que resolveram acreditar neles.

Imagem do Dia

Os Óleos Sobre Tela de Jermy Mann:
Jeremy Mann

A mão invisível

Um bom livro não precisa, necessariamente, ser extenso. Nem precisa ser contemporâneo. Eis um exemplo de livro antigo que merece ser lido. Aliás, é um clássico que nenhum graduado em ciências econômicas pode ter deixado de ler. Trata-se de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Publicado em 1776, é tido como um grande suporte teórico do liberalismo econômico ou do capitalismo.

Para quem defende o liberalismo e o capitalismo ou para quem os odeia, Adam Smith e sua mão invisível do mercado, isto é, a mão invisível do interesse e do egoísmo, são indispensáveis para compreender o funcionamento da economia.

No entanto, há uma outra maneira de ler a obra: é descobrindo como o autor escocês cria sua tese e a defende, investindo o talento nos argumentos e na persuasão. Assim se entende como essa mão invisível do Iluminismo ainda seduz tanta gente em pleno século 21.

Pertence à Riqueza das Nações a célebre frase, citada em quase todos os compêndios de economia: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que nós podemos desfrutar nosso jantar, mas do empenho deles em defender seus próprios interesses”.

Adam Smith, pai do capitalismo e do laissez-faire, defendia que a competição é o motor de uma sociedade produtiva, uma lição que nós, brasileiros, tardamos a aprender, iludidos por atalhos que não deram certo. Se nossos economistas tivessem de fato lido “A Riqueza das Nações”, talvez não amargássemos hoje uma terrível posição na competitividade no mundo. Isso apesar do livro estar disponível há 240 anos. Pior ainda para nós: muita gente em outros países o leram e puseram em prática suas conclusões.

Luís Giffoni

Cretinização das telinhas

O uso indiscriminado da tecnologia e da substituição do cérebro por celulares, tablets e aplicativos é a uma das causas principais para o derretimento do conhecimento. A primeira fuga da realidade começa com “este é um assunto muito chato”. Quando ouço alguém dizer isto, imediatamente replico: “Não é mais fácil dizeres que não sabes nada?”.
 
Somando-se incapazes mentais, omissos e idiotas, está formado o mar da sociedade.
Antonio Carlos Fallavena

Cabeça dura tem conserto?

Sempre negamos a realidade, mesmo quando ela vem de pau para cima de nós. Com tal mentalidade, não há país que se desenvolva

Na primeira metade do século 20, o ofício predileto da elite intelectual e política brasileira era especular sobre nosso atraso como país. Instigados pelo vertiginoso avanço dos Estados Unidos, dedicavam-se a tal tarefa com um afinco admirável.

Alguns diziam que o problema era nossa origem portuguesa: fomos colonizados pelo menor e mais atrasado país da Europa. Outros jogavam a culpa na abolição da escravatura: que esperar de um país que passara a depender do trabalho de negros livres? Alguns, mais sinceros, diziam que o problema estava em todos nós: éramos um país de preguiçosos.


Depois da Segunda Guerra, tivemos uma ideia genial. As causas do nosso atraso estavam no exterior. Eram os estrangeiros: primeiro os ingleses, depois os americanos, as “sete irmãs” petrolíferas, o FMI etc. Essa é que era a verdadeira raiz do mal.

Mas a verdade é que nunca chegamos ao âmago do problema. O problema é que sempre fomos uns tremendos cabeças-duras. A teimosia, eis o elemento que antes nos escapava. Sempre negamos a realidade, mesmo quando ela vem de pau para cima de nós. Com tal mentalidade, não há país que se desenvolva. Dou dois exemplos.

Hoje a economia brasileira está em escombros, numa crise tremenda, que se explica principalmente por nossa mania estatizante. Sempre vimos a empresa estatal como o suprassumo da sabedoria econômica, símbolo de eficiência e imunidade à corrupção. Tanto assim que odiamos o verbo “liberalizar”; o máximo que topamos é “flexibilizar” algumas coisas. Sempre costeando o alambrado. Pois aposto que vamos continuar assim.

Segundo, o sistema presidencialista de governo. Nos convencemos de que se tratava de outra maravilha, o único modelo capaz de assegurar a estabilidade, a eficiência, a unidade de comando etc. E o único congruente com nossas tradições culturais, quero dizer, com nosso velho gosto por líderes “machos”. É verdade que ele às vezes obriga o País a esperar uma eternidade para defenestrar um “presidento” ou uma “presidenta” que prá começo de conversa nunca deveria ter sido eleito(a). Aqui também, aposto que vamos deixar tudo do mesmo jeito. Cabeça dura não tem conserto.

O que significa a vaia a Michel Temer

O grande Nelson Rodrigues afirmou certa vez que brasileiro vaia até minuto de silêncio. Nunca vi, mas não me surpreenderia. O estádio de futebol não é muito diferente de um coliseu romano. Quem ali se exibe expõe-se a que os dedos indicadores se virem para baixo. Em 2013 coube a Dilma coletar pesada, prolongada e reiterada soma aritmética de vaias e insultos na abertura da Copa das Confederações. Ao seu lado, Joseph Blatter exclamou incomodado: "Onde está a educação?". Na recente cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, a mais prolongada vaia coube a Carlos Nuzman, presidente do COB, no exato momento em que referiu de modo elogioso as gestões das três esferas de administração ali atuantes: município, Estado e União. Conseguiu reunir um pacote cheio de desagrados. Por fim, sobrou para Temer, quando, em meia dúzia de palavras, literalmente agarrou-se ao microfone para proclamar que os jogos estavam abertos.

Não havia como ser diferente. Temer só encantaria o público se fizesse um gol de bicicleta do meio do campo. Como chefe de Estado, nem pensar. E é sobre isso que eu creio ter algo a dizer quanto à vaia de ontem. Fatos assim, diante de um público internacional, produzem manifestações de surpresa. A conduta é tomada como falta de educação, de respeito. Não que tenhamos muito respeito e educação por aqui, mas esses casos merecem considerações mais amplas. O problema é bem mais grave do que bons ou maus modos.

Países cujas instituições são concebidas com maior racionalidade separam as funções de chefe de Estado das funções de chefe de governo e as delegam a pessoas diferentes. O chefe de governo representa a maioria do momento e conduz suas políticas. Como tal, agrada e desagrada, vai para a chuva e para sol. Leva vaia e aplauso. Tem maioria, assume. Perde a maioria, cai. É a figura mais notória na arena do Coliseu político, objeto dos veredictos da turba. Isso é assim, independente do nível cultural e de educação das pessoas. O chefe de Estado, ao contrário, exerce a representação formal da nação. Eram chefes de Estado, no exercício de função típica, os que vieram à cerimônia de ontem acompanhando suas delegações. São símbolos acima das divergências partidárias, são Poder Moderador, podem dissolver parlamentos e convocar novas eleições. Mundo afora, nos países onde essa função existe, o titular que assim se conduz é recebido com reverência e aplauso. Daí a visível surpresa dos estrangeiros em relação a essas vaias próprias do presidencialismo que compartilhamos com as repúblicas ibero-americanas, em suas instabilidades, frustrações e incapacidades de aprender mesmo quando os fatos nos esmurram a face.

Se o que expus parece uma minúcia, uma questão sutil, saiba que nela está quase toda a diferença entre estabilidade política e convulsão. Cento e vinte e seis anos de rupturas e instabilidades institucionais clamam por um basta a esse sistema! Aquela vaia a Michel Temer significa que este país tem um problema institucional.

Percival Puggina

O salto de Nadia e o choro de Misha

Demorei 40 segundos para convencer uma menina de cinco anos de que a Olimpíada era algo para não se perder — mesmo que você tenha quase um século de escolhas pela frente. Estávamos em um restaurante, e ela estava reticente quanto à viagem para o Rio de Janeiro: não queria passar os dias longe das casas da mãe e do pai.

As quatro dezenas de segundos vieram da tela do meu celular. Era preciso antes de tudo convencê-la com a melhor das imagens. Cabia o bom senso: ela não ficaria fascinada pelas passadas de Emil Zatopek em Helsinque, em 1952, nem por Abebe Bikila vencendo descalço a maratona de Roma, oito anos depois. O negro Jesse Owens desafiando a doutrina ariana de Hitler com seus quatro ouros em Berlim, em 1936, e os panteras negras de punhos cerrados do México, em 1968, convenceriam um adolescente idealista, mas não aquela garotinha. Era preciso despertar o desejo.

O meu havia sido tocado pela imagem do urso Misha chorando no encerramento dos Jogos de 1980, em Moscou. Tinha apenas quatro anos. Nesses 36 anos que seguiram, já me questionei se aquela Olimpíada, cujo boicote pelos Estados Unidos foi sustentado como retaliação pela invasão soviética ao Afeganistão um ano antes, não havia sido salva por aquele bicho cujas lágrimas caindo tortas pelo rosto (uma imagem que soa como um jogo de Atari diante das definições quase reais de qualquer franquia de game hoje em dia) marcaram minha geração. Nem mesmo o feito dos iatistas brasileiros, que voltaram a conquistar para o país uma medalha de ouro depois de um hiato de 26 anos, superou aquela imagem.

Meu celular então buscou para a menina “Nadia Comaneci 1976”. O vídeo com a série completa que rendeu a primeira nota 10 da ginástica dura 3min11s. No entanto, bastaram os 40 segundos iniciais para que a garotinha ficasse inclinada, com o rosto paralisado e a boca aberta. Apenas perguntou: “Ela é uma criança?”

Sim, Nadia tinha apenas 14 anos quando obteve o feito. Havia pensado e mostrado o que de fato acreditava ser um momento mágico da Olimpíada. E me surpreendi que aquilo, 40 anos depois, ainda fascina garotinhas. Três meses atrás, quando procurava ingressos para a Rio 2016, não tive dúvida que a prova de ginástica seria o mais próximo que chegaria em conseguir agradá-la. Os quarenta segundos do vídeo me trouxeram a certeza. A reação seguinte já não continha resistência: ela queria ver como eram os outros esportes. Pediu um jogo de basquete, outro de vôlei. Ela já estava empolgada.


É a imagem que fortalece os jogos. Não a de quem sedia. Montreal, no Canadá, salvou sua Olimpíada porque havia nela uma Nadia Comaneci. A história guarda em seus arquivos uma competição tensa, que sucedeu o massacre de Munique, em 1972, e suas 17 mortes, e ao auge da Guerra Fria— a escolha da sede preteriu Moscou e Los Angeles, que receberiam os Jogos Olímpicos nas duas edições seguintes.

A Olimpíada do Rio não acontece em um momento particularmente bom para o país. Há mais tensão na cidade do que propriamente felicidade por sediar os Jogos. Talvez o clima da abertura chacoalhe o carioca como aconteceu há quatro anos em Londres.

Mas existe uma competição em andamento. No meio dela, haverá exibições como aquela de 40 anos atrás. Será a primeira oportunidade de a garotinha guardar suas memórias olímpicas. São três semanas para que imagens equivalentes ao choro de um urso e à exibição perfeita de uma pequena e jovem romena não sumam desse filme que ela começa a rodar. Se o Rio obtiver esse feito, não será pouca coisa.

Marcos Sergio Silva