segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A escolha do Brasil


A política está para a economia como o ovo para a galinha. E vice-versa. O “mercado” comemora o repúdio ao nada absoluto a que nos reduziu o delírio dilmista e a reabilitação dos postulados básicos da aritimética e da gestão economica, mas o problema brasileiro continua sendo essencialmente político.

Isso tem um lado bom e um lado ruim.

O lado ruim é que não ha muito que possa ser feito para evitar todo o sofrimento ainda por ser sofrido apenas com as ferramentas de gestão da economia. Temos, agora, profissionais cuidando do assunto e estamos livres da firme opção pelo suicidio do passado recente mas o “trem bala” para o crescimento em que nos recusamos a embarcar nestes 13 anos de opção preferencial pela burrice não está mais voando nos trilhos. A computação devora empregos; os monopólios universais arreganham dentes que os nacionais nunca tiveram; a insegurança geral embala a “disrrupção” universal do bom senso e já nem os Estados Unidos ou a Inglaterra escusam de surfar a onda protecionista que vem vindo.

O mundo politicamente evoluído, pequenininho, dissolve-se incontrolavelmente, em dores, na imensidão do outro.

O lado bom é que, tendo este Brasil onde todos os lados ainda “defendem instituições” usando a primeira pessoa do singular permanecido inteiramente fora da evolução da política nos séculos 19 e 20, temos muito espaço para avançar mesmo com um mundo em crise.

Democracia e o seu corolário mais cobiçado, o resgate de sociedades inteiras da miséria, são processos ecológicos. A versão “ponto3” (depois de Atenas e de Roma) dessa bela invenção que o Brasil ainda haverá de experimentar um dia é construida em etapas sucessivas de desenvolvimento. É engendrada no momento em que a Magna Carta de 1215 faz saber ao rei de Inglaterra que toda a riqueza que o reino produz não é mais só de sua majestade restando ao povo suplicar-lhe por migalhas mas, daquela data em diante, exatamente o contrário. Vê a luz 450 anos depois quando o rei empobrecido, depois de ceder quase todo o poder ao Parlamento, distribui a propriedade da terra da “sua” América em pleno feudalismo para conseguir financiar sua colonização e abre, com a democratização do acesso à propriedade, a possibilidade prática do império de uma só lei igual para todos. Consolida-se, no seu apogeu, com as reformas da “Progressive Era” (1890-1920) de uns Estados Unidos ainda jovens quando, diante da corrupção galopante decorrente da associação do Estado com o “big business” nascente, os americanos reconhecem oficialmente que o homem exerce a sua liberdade sobretudo na sua dimensão econômica e que, portanto, é imperativo assegurar as condições mínimas para que ela continue sendo possível. O trabalho e não os relacionamentos políticos devem ser o fator decisivo de sucesso nos negócios. A inovação deve ser o unico fator legitimo de obtenção de vantagens competitivas. Garantir a sobrevivência de um bom numero de patrões e fornecedores disputando consumidores e trabalhadores deve ser o único fator de limitação da livre concorrência e o único objeto admitido das interferências do Estado na economia.

A tudo isso chegou-se não por qualquer tipo de deliberação romântica mas pela razão muito prática de que a História já tinha provado suficientemente que qualquer outro expediente que não tratasse de suprimir radicalmente de cena o “presunto” que o Estado serve e “moscas” como nós somos evolutivamente especializadas em farejar conduz direta e inevitavelmente à corrupção. Sob a luz desse mesmo pragmatismo, a “legislação antitruste” de prevenção à concentração da propriedade deu forma ao novo padrão de democracia e os direitos de “iniciativa” e “referendo” legislativo garantidos pela prerrogativa do “recall” a qualquer momento dos mandatos condicionalmente atribuidos pelos eleitores aos seus representantes puseram o povo efetivamente no poder e em condições de impor o respeito à nova ordem. E a prosperidade, de mãos dadas com a ciência, pode finalmente triunfar.

É desse ultimo patamar do “capitalismo democrático” com seu formidavel poder de exorcizar a ignorância e a miséria que os poucos países que chegaram a usufruir dele estão sendo constrangidos a recuar pela diluição das fronteiras nacionais e o esvaziamento do poder também da versão benigna do Estado de fazer valer legislações específicas. Mas mesmo que seja somente até à etapa anterior – a da estrita igualdade perante a lei, inclusive e principalmente para os agentes do Estado – este Brasil dos privilégios automaticamente legalizados desde que simplesmente “adquiridos” um dia tem muito que andar.

O que ha de importante na sequência de eventos históricos acima descritos é a ordem dos fatores. Os asiáticos, que têm conseguido “viradas” nada menos que miraculosas da selvageria política e da miséria para o império da lei e a abundância em menos de uma geração, estão aí para provar que, desde que nos disponhamos finalmente a percorrer esta que é hoje uma velha estrada batida, podemos produzir o mesmo milagre em bem menos tempo que os 800 anos tomados aos desbravadores ingleses.

Ultrapassados os limites que ultrapassamos não ha mais “meias-solas” possíveis. Não haverá remissão sem a eliminação do privilégio legalizado que impede o país de respirar. E quanto mais demorar para essa questão ser encarada de frente menos fôlego restará para repor em pé uma economia exaurida. O necessário tratamento aos agentes coadjuvantes da miséria do Brasil – os “empresários” a que os donos das chaves dos cofres públicos recorrem para desviar dinheiro para fora do sistema – está em curso. Mas não basta. É preciso atacar o desvio sistemático e legalizado da riqueza nacional impondo aos agentes do Estado a mesma lei – penal, salarial, tributária, de direitos, de deveres, de segurança e de insegurança no trabalho, de aposentadorias e de pensões – que já vale para todos os outros brasileiros e demais habitantes do mundo real.

O cidadão raivoso

O jornalista alemão Dirk Kurbjuweit, da Der Spiegel, inventou alguns anos atrás a expressão Wutbürger, que significa “cidadão raivoso”, e no The New York Times de 25 de outubro Jochen Bittner publica um interessante artigo em que afirma que a raiva que em certas circunstâncias mobiliza amplos setores de uma sociedade é um fenômeno com duas faces, uma positiva e uma negativa. Segundo ele, sem esses cidadãos raivosos não teria havido progresso, nem seguridade social, nem trabalho remunerado de forma justa, e ainda estaríamos no tempo das satrapias medievais e da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, foi uma epidemia de raiva social que espalhou corpos decapitados pela França do Terror e que, nos nossos dias, acabou levando ao brutal retrocesso que o Brexit significa para o Reino Unido ou que fez com que exista na Alemanha um partido xenófobo, ultranacionalista e antieuropeu –o Alternativa pela Alemanha – que, segundo as pesquisas, conta com o apoio de nada menos do que 18% do eleitorado. Acrescenta, ainda, que o melhor representante do Wutbürger nos Estados Unidos é o inapresentável Donald Trump, além do surpreendente apoio com que ele conta.

Distorsion
Zdzislaw Beksínski
Eu gostaria de acrescentar alguns outros exemplos recentes de uma “raiva positiva”, a começar pelo caso do Brasil, a respeito do qual, a meu ver, houve uma interpretação enviesada e falsa da defenestração de Dilma Rousseff da Presidência. Esse fato foi apresentado como uma conspiração da extrema direita para acabar com um Governo progressista e, sobretudo, impedir o retorno de Lula ao poder. Não é nada disso. O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção, um fenômeno que havia contaminado toda a classe política e do qual se beneficiavam igualmente líderes da esquerda e da direita. Ao longo dos últimos meses, foi possível observar como a foice do combate à corrupção se ocupou de colocar na cadeia, igualmente, parlamentares, empresários, dirigentes sindicais e associativos de todos os setores políticos, um fato a partir do qual tudo o que se pode esperar é uma regeneração profunda de uma democracia que a desonestidade e o espírito de lucro haviam infectado até chegar ao ponto de provocar uma bancarrota nacional.

Talvez ainda seja um pouco cedo para comemorar o ocorrido, mas minha impressão é de que, entre ganhos e perdas, a grande mobilização popular no Brasil foi um movimento mais ético do que político e extremamente positivo para o futuro da democracia no gigante latino-americano. É a primeira vez que isso acontece; até agora, as mobilizações populares tinham objetivos políticos –protestar contra os abusos de um Governo e a favor de um partido ou um líder– ou ideológicos –substituir o sistema capitalista pelo socialismo–, mas, neste caso, a mobilização tinha como objetivo não a destruição do sistema legal existente, mas a sua purificação, a erradicação da infecção que o envenenava e que podia acabar com ele. Embora tenha conhecido uma trajetória diferente, não é algo muito distinto daquilo que aconteceu na Espanha: um movimento de jovens atiçados pelos escândalos de uma classe dirigente que causou em muitos a decepção com a democracia e os levou a optar por um remédio pior do que a doença, ou seja, ressuscitar as velhas e fracassadas receitas do estatismo e do coletivismo.

Outro caso fascinante de “cidadãos raivosos” é o que vive a Venezuela hoje. Em cinco ocasiões, o povo venezuelano teve a possibilidade de se livrar, por meio de eleições livres, do comandante Chávez, um demagogo pitoresco que oferecia “o socialismo do século XXI” como a cura para todos os males do país. A maioria dos venezuelanos, aos quais a ineficiência e a corrupção dos Governos democráticos levaram a se desencantar com a legalidade e a liberdade, acreditou nele. E pagou caro por esse erro. Por sorte, os venezuelanos perceberam isso, retificaram sua visão, e hoje há uma esmagadora maioria de cidadãos –como mostraram as últimas eleições para o Congresso– que pretende consertar aquele equívoco. Infelizmente, já não é tão fácil. A camarilha governante, aliada à nomenclatura militar bastante comprometida com o narcotráfico e à assessoria cubana em questões de segurança, enquistou-se no poder e está disposta a defendê-lo contra ventos e marés. Enquanto o país se afunda na ruína, na fome e na violência, todos os esforços pacíficos da oposição, valendo-se da própria Constituição instaurada pelo regime, para se livrar de Maduro e companhia se veem frustrados por um Governo que ignora as leis e comete os piores abusos –incluindo crimes– para impedi-lo. Ao final, essa maioria de venezuelanos acabará se impondo, é claro, como aconteceu com todas as ditaduras, mas o caminho ficará semeado de vítimas e será muito longo.

Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos, como afirma Jochen Bittner? Minha impressão é de que é preferível erradicar a raiva da vida dos países e procurar fazer com que esta se dê dentro da normalidade e da paz, e que as decisões sejam tomadas por consenso, por meio do convencimento ou do voto. Porque a raiva muda de direção muito rapidamente; de bem-intencionada e criativa, pode passar a ser maligna e destrutiva, caso a direção do movimento popular seja assumida por demagogos, sectários e irresponsáveis. A história latino-americana está impregnada de muita raiva, e, embora esta se justificasse em muitos casos, quase sempre ela se desviou de seus objetivos iniciais e acabou gerando males piores do que os que pretendia remediar. É um tipo de situação que teve uma demonstração explícita com a ditadura militar do general Velasco, no Peru dos anos sessenta e setenta. Diferentemente de outras, ela não foi de direita e sim de esquerda, e implantou soluções socialistas para os grandes problemas nacionais, como o feudalismo rural, a exploração social e a pobreza. A nacionalização das terras não beneficiou em nada os camponeses, mas sim às gangues de burocratas que se dedicaram a saquear as fazendas coletivizadas, e quase todas as fábricas que o regime nacionalizou e confiscou foram à falência, aumentando a pobreza e o desemprego. No fim, foram os próprios camponeses que começaram a privatizar as terras, e os operários das indústrias de farinha de peixe foram os primeiros a pedir que as empresas arruinadas pelo socialismo velasquista voltassem para as mãos da iniciativa privada. Todo esse fracasso teve um efeito positivo: desde então, nenhum partido político no Peru se atreve a propor a estatização e a coletivização como uma panaceia social.

Jochen Bittner afirma que a globalização favoreceu, acima de tudo, os grandes banqueiros e empresários, e que isso explica, embora não justifique, o ressurgimento de um nacionalismo exaltado como aquele que transformou a Frente Nacional em um partido com chances de vencer as eleições na França. É muito injusto. A globalização trouxe enormes benefícios para os países mais pobres, que agora, se souberem aproveitá-la, poderão enfrentar o subdesenvolvimento com mais rapidez e melhor do que no passado, como mostram os países asiáticos e os países latino-americanos –caso do Chile, por exemplo– que, ao abrirem suas economias para o mundo, cresceram de forma espetacular nas últimas décadas. Parece-me um erro muito grave acreditar que progresso significa combate à riqueza. Não, o inimigo a ser eliminado é a pobreza, e também, é claro, a riqueza ilícita. A interconexão do mundo graças à lenta dissolução das fronteiras é uma coisa boa para todos, em especial para os pobres. Se ela prosseguir e não se afastar do caminho certo, talvez cheguemos a um mundo em que já não será preciso haver cidadãos raivosos para que as coisas melhorem.

Socorro. É guerra?

Não tem mais nem o tradicional mãos ao alto, isso é um assalto, aquele pedido de licença tradicional dos ladrões. Levante as mãos. Não, não levanta, cuidado com os movimentos bruscos. Esconde esse celular. Não vai para a praia que tem arrastão lá. Vigi, está tendo um tiroteio ali na esquina. Tá lá um corpo estendido no chão

Nananeném, era o que certamente Bruna entoava para por a filha de dois anos no berço quando uma bala atravessou a janela do quarto e a sua cabeça. Lá se foi a jovem mãe de 21 anos para o Reino dos Céus deixando a órfã e o Engenho da Rainha, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Um dia antes, 

Daiane, de 15 anos, chegava a sua casa em Belford Roxo. Não teve tempo de perguntar para a mãe o que tinha para o almoço. No fim da tarde de sexta um porco grunhia dentro do seu chiqueiro quando teve os miolos estourados. Não sei se virou bacon. Balas perdidas, balas amargas. A própria Polícia Civil do Rio contou: no Estado, 846 pessoas morreram ou ficaram feridas ao serem atingidas por balas perdidas – 83% morrem; quando não morrem 80% ficam paraplégicas – o que dá uma média de quase três vítimas por dia. Foram 72 apenas agora em outubro. Esse ano.

Feliz Dia dos Mortos. Rezemos por eles.

Precisamos falar sobre isso. Sobre a violência. Dar um basta, fazer algo. Mas nessa semana, quando esse assunto sério estava sentando na mesa, ficamos mais preocupados foi se o Renan Calheiros ia sentar ao lado da ministra Cármen Lúcia; se o new cabeludo Renan ia se pegar a tapas com o ministro careca brilhante que tem a língua solta. Se o Temer ia precisar ligar o extintor para apagar o incêndio entre os Poderes com aquele seu sorriso congelado. Quando era justamente para esses três Poderes estarem discutindo o Plano Nacional de Segurança Pública. Vai, me diz aí se leu em algum lugar o que foi que discutiram sobre esse assunto, quais foram as novas resoluções, que medidas serão tomadas para acabar com esse inferno que virou nossa vida, insegura, com medo até de nossas sombras.

É, eu também não soube de nada.

Mas nessa semana soube que em cinco anos houve mais assassinatos no Brasil do que na Síria, que está em guerra. De janeiro de 2011 a dezembro de 2015, 278.839 pessoas foram mortas aqui; na Síria, foram 256.124 vítimas. Uma pessoa foi assassinada a cada 9 minutos no Brasil em 2015. 58.383 pessoas foram assassinadas, 160 por dia, quando se fazem as contas. Imaginem quando computarem os dados desse difícil 2016.

13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil, informa o Atlas da Violência 2016. Uma pessoa é vítima de sequestro relâmpago na cidade de São Paulo a cada cinco horas.

Não sei se já perderam a conta, mas difícil também é ter dia de não se ouvir falar em caixas eletrônicos indo aos ares em pacatas cidades ou nos grandes centros urbanos, onde andam derrubando até as sedes das transportadoras de valores. Você aí ouviu falar de algum plano para controlar a venda de explosivos? Nem eu.

Os homicídios cometidos por armas de fogo no país somaram 42.291 casos em 2014, ou 21,2 para cada 100 mil habitantes. Fala de um especialista: “O Brasil não tem controle sobre vendas, não registra os compradores. Existe um mercado aberto, paralelo e ilegal, porque as indústrias estão registradas, estão vendendo, mas a gente não sabe quem compra e quem distribui isso”.

Na tevê a reportagem mostra o roubo de celulares das mãos das pessoas em plena luz do dia, no centro da cidade, usando justamente isso, o movimento, como um artifício. Um bolinho de gente de todos os tipos vai atrás da vítima, têm velhinhos, jovens, negros, brancos, uma mulher. Teatral. Um esbarrão e tchau celular, carteira e a dignidade, já que no bando tem até quem pare para se solidarizar com a vítima, distraí-la ainda mais. A cena é dantesca. Parece inspirada naquele quadro do Fantástico que não foi para a frente, o tal Eles decidem, quando 20 pessoas ficavam o dia inteiro acompanhando para palpitar o coitado que tinha uma dúvida. Chatíssimo.

E os requintes que não ficam devendo aos mais violentos filmes de terror, mistério, seriados de investigação? As pessoas matando por nada. Tem sido normal cortar o corpo, decepar cabeças, afivelar malas cheias de pedaços, tem gente até emparedando com cimento, que cavar buraco é mais difícil. Se não é a bala, é a faca, a marreta, o martelo, o pedaço de pau, a corda. Teve até flecha disparada com arco. Casos de tentativas de envenenamento de crianças, com chumbinho, veneno de rato disfarçado em doces. Tentaram suavizar um pouco: uns gaiatos bandidos se vestiram de palhaços.

É crime organizado, requintado, quadrilhas especializadas, usando cibernética, tecnologia, inteligência, dinheiro graúdo rodando. Deixando trilhas de sangue de culpados e inocentes, muitos. Bandidos e policiais, às vezes até policiais bandidos. Nós ainda estamos atrasados, burros, lentos, aprendendo só agora, por exemplo, que as câmeras de radar podem ser usadas sabiamente para a segurança, revelar culpados. E filmam melhor que testemunhas com celular já que não tremem nem se assustam com tiros e explosões.

Enquanto isso não se pode ter nada, usar nada, andar pelas ruas, nem parar no trânsito, sair e chegar ileso vale reza e aleluias.

Não é por menos que o tal Halloween cresce no Brasil – as bruxas estão soltas e não há ninguém tentando capturá-las, assustá-las ou ensinar a importância da paz. Estamos em guerra.

Bandeira branca, amor.

O que de fato importa

De volta à Lava-Jato, que há dois anos e meio não sai de cena, mas que nos últimos quatro meses dividiu o protagonismo com as Olimpíadas, as Paraolimpíadas e, por último, as eleições municipais encerradas, ontem, com a mais avassaladora derrota já colhida pelo PT em todos os seus anos de vida, a vitória do PSDB nas maiores cidades do país e o fortalecimento, por ora, do governo de Michel Temer.

Tudo o mais de previsível que possa acontecer nos próximos seis meses dificilmente será capaz de superar o que a Lava-Jato nos reserva em termos de fortes emoções.

O destino de Lula, por exemplo, será definido até o fim do ano ou início de 2017. O juiz Sérgio Moro, na segunda quinzena de novembro, tomará o depoimento de quem delatou Lula por corrupção.

Em seguida, a confirmar-se o que o próprio PT espera, Moro condenará Lula. Poderá mandar prendê-lo ou não. Se não prender, Lula aguardará em liberdade a decisão posterior do Tribunal Regional Federal da 4ª Região com sede em Porto Alegre.

Até aqui, o tribunal avalizou ou agravou as sentenças de Moro. Caso isso se repita, Lula deverá ser preso e, como ficha-suja, não disputará a eleição de 2018.

A delação de Marcelo Odebrecht e de cerca de 70 executivos da maior empreiteira do país ainda não foi fechada, mas falta pouco para que seja.


Apontada desde já como “a delação do fim do mundo” e, certamente, a maior de todos os tempos aqui ou em qualquer lugar, ela perece destinada a varrer como um tsunami o que ainda resta de pé do atual e carcomido sistema político.

Vida ingrata! Lula – sempre ele – será alvo da delação daqueles a quem tanto ajudou como presidente da República e, depois, como lobista internacional. Nada de pessoal, é claro. Foi bem recompensado pelo que fez.

Mas além de Lula, a delação atingirá cabeças coroadas de quase todos os partidos, algumas delas aspirantes à sucessão de Temer.

O governo não escapará incólume. Temer talvez se veja obrigado a promover uma pequena reforma ministerial. Talvez promova uma reforma de médio porte, aproveitando para livrar-se de alguns ministros que não correspondem às exigências dos seus cargos.

Estilhaços da delação poderão alcançar o próprio Temer. Embora protegido pelo exercício do mandato, ele não ficará bem.

O Supremo Tribunal Federal (STF) não ficará bem se ali continuarem seguindo devagar, quase parando, as denúncias e os processos que envolvem políticos e autoridades com direito a fórum especial.

Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, é um desses políticos. Responde no STF a onze processos. O primeiro, depois de sete anos emperrado, está pronto para ser julgado.

Quando chegar ao seu final, a Lava-Jato de pouco terá servido na ausência de uma reforma política que de fato desmonte o que a provocou.

Políticos que se imaginam a salvo da Lava-Jato, ou que rezam para se salvar, falam em reforma política a ser aprovada para produzir efeitos em 2018. Mas serão eles (cruzes!) que votarão tal reforma. É de se acreditar que produzirão algo decente?

Outro dia, em meio a uma sessão da Câmara dos Deputados, tentou-se aprovar uma anistia para quem se elegeu com dinheiro não declarado à Justiça. E também para os doadores do dinheiro.

A proposta de anistia está sendo revista. Deverá ser reapresentada em breve. Estamos nos estertores de um sistema político moribundo que teima em respirar. Todo cuidado com ele é pouco.

A desinvenção do inimigo

No verão de 2014, a polícia portuguesa deteve Calunga Gima, de 29 anos, cidadão angolano, naturalizado holandês, que invadiu a pista do aeroporto da Portela, em Lisboa, armado de uma faca. Levado a julgamento, sob a acusação de terrorismo, Calunga Gima confessou que estivera na Síria, com uns “rapazes amigos” e que “fingira converter-se ao islão” para não parecer indelicado. O que mais o terá chocado, durante a breve visita à Síria, foi constatar que alguns dos rapazes seus amigos, fundamentalistas islâmicos, eram homossexuais. Veio para Lisboa, de trem, porque (como tentou explicar aos juízes) estava a ser perseguido por maus espíritos. Achou que na capital portuguesa estaria mais sossegado. Bebês de poucos dias olhavam-no com estranheza, por onde quer que ele passasse, gritavam o seu nome e choravam. Após uma série de estranhas peripécias e desventuras, achou-se próximo ao Aeroporto da Portela. Saltou a vedação, sempre perseguido por uma legião de espíritos, e aproximou-se de um avião das linhas aéreas angolanas, já com os motores ligados: “Queria enfiar a minha cabeça nas turbinas” — justificou, perante os juízes atônitos. — “Queria encher a cabeça de turbulência, porque talvez assim confundisse os maus espíritos”.

O episódio acima, absolutamente verídico, serviu de base para a construção do personagem principal da peça “O terrorista elegante”, que eu e Mia Couto escrevemos em Moçambique, em janeiro, e que estreou há poucos dias em Lisboa. A peça, uma encomenda do grupo de teatro A Comuna, pretende discutir o clima de medo que se instalou um pouco por todo o Ocidente, e vem justificando as piores arbitrariedades e criando um ambiente de intolerância contra os imigrantes e as minorias étnicas e religiosas, que é, afinal, o que o terrorismo islâmico pretende. A intolerância gera azedume e revolta; a revolta faz surgir novos combatentes, num ciclo de violência que apenas serve para alimentar o próprio fascismo islâmico. O terrorismo triunfa no instante em que a inteligência colapsa.

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Charles Poitier Bentinho, o nosso terrorista elegante, parece, de início, tão desnorteado quanto o personagem que lhe deu origem. Contudo, ao invés daquele, não foge de espíritos maus: pelo contrário, ganha a vida a combatê-los. Uma vez preso, rapidamente se apercebe que os três policiais que o interrogam, um homem e duas mulheres, uma das quais ao serviço de uma agência antiterrorista norte-americana, sofrem, todos eles, de demônios vários: o medo, a culpa, o ciúme, um persistente rancor colonial. Bentinho, o prisioneiro, compreende que a sua missão é ajudar os interrogadores a libertarem-se de tais demônios — e é o que faz.

Passando dos palcos para a realidade, creio que nos fazem muita falta figuras como Charles Poitier Bentinho, capazes de apaziguar os espíritos, mostrando que só é possível vencer a violência através da aproximação. Isto é, quando os homens se aproximarem tanto que, olhando-se nos olhos, consigam ver-se a si mesmos refletidos na alma uns dos outros, como num espelho.

Para desencadear uma guerra, é preciso primeiro fabricar o inimigo. O ato inicial de tal processo consiste em afastar o outro de nós; precisamos torná-lo alheio: o inimigo não é como nós porque não fala a nossa língua, porque não partilha as nossas crenças religiosas, porque não gosta de samba ou de feijoada. Na fase seguinte, o inimigo já não é bem humano. Não sendo humano, pode ser exterminado. Deve ser exterminado.

Para encerrar uma guerra, para pacificar um país ou uma região, urge desencadear o processo inverso: devolver ao outro a humanidade. Aproximá-lo de nós.

A música, a literatura, o cinema, o teatro, constituem, desde sempre, instrumentos de aproximação. Talvez por isso todas as artes sejam tão odiadas e reprimidas nos territórios ainda dominados pelos fascistas islâmicos. A melhor maneira de combater a intolerância é através da cultura. Apoiando escritores, músicos, artistas plásticos etc. nos países de maioria islâmica e dando a conhecer essas expressões artísticas no nosso próprio universo. Tenho a certeza de que haveria enormes surpresas. Quantos brasileiros conhecem, só a título de exemplo, o novo rap argelino ou a vibrante cena rock e de música alternativa das noites de Beirute?

Calunga Gima foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão efetiva pelo crime de atentado à segurança de um transporte aéreo e posse de arma branca. Não se provou que tivesse ligações a nenhum grupo terrorista.
José Eduardo Agualusa

Bandidos bancados por nós?

O chamado Congresso Nacional se converteu num tremendo pau de galinheiro. E custa caríssimo aos cofres públicos.

Aproveito, aliás, para dar uma sugestão ao governo: se é para economizar, por que continuar mantendo o Senado e a Câmara? Basta um deles. Um pode muito bem fazer o que o outro faz – e, além disso, a roubalheira seria reduzida.

Bastava ter o Senado, que é numericamente menor e, portanto, deve ter um número menor de ladrões.

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O problema é que, em vez de economizar, essa turma quer enfiar mais grana em suas contas. Nossos políticos profissionais são insaciáveis. Não foi por acaso que elegeram o meliante Cunha presidente deles.

Agora mesmo circula na Câmara projeto de um tal de Marcus Pestana, do PSDB de Minas, destinado a encher a burra dos partidos políticos. Quem pagaria? Nós, os eternos otários.

A ideia é passar anualmente três bilhões aos partidos (ou clubes de gatunos): 2% da arrecadação do imposto de renda de pessoa física.

Isto é: querem nos obrigar, por lei, a financiar um bando de vigaristas, que já vivem de meter a mão no bolso dos outros. A bancar uma corja de canalhas para que eles continuem agindo contra os reais interesses e as reais necessidades da população.

O nome do projeto é uma pérola de cinismo: Fundo de Financiamento da Democracia. Mais uma vez, é a retórica cafajeste dos políticos profissionais para tentar engabelar a sociedade brasileira.

Anteontem, aliás, também Renan Calheiros, o Réu, abriu a boca para falar de democracia. Não dá.

Renan e seus pestanas deveriam ser proibidos de pronunciar a palavra “democracia”. Toda vez que o fazem, desmoralizam a expressão. Mas, para se proibirem de falar de democracia, eles precisariam de uma ética da linguagem. E como a teriam, se não fazem questão de ética para nada?

Para ser levado a sério, o Congresso terá de acabar com o escândalo da sociedade jurídica de castas (vale dizer: dar um fim ao foro privilegiado) e com a aposentadoria especialíssima dos políticos, além de não anistiar o crime do caixa 2. No mínimo.

Outro dia, por sinal, o mesmo Renan elogiou o caráter de Cármen Lúcia. Ou seja: ele sabe o que é caráter. Se não tem, é porque não quer.

Na verdade, se o Congresso tivesse caráter, as coisas estariam andando de outro modo no Brasil.

Mas também o STF tem de apressar o passo. Mandar para a cadeia, com os bens confiscados, essa legião de larápios que suja o nome do país.

Até lá, os bandidos que financiem suas bandidagens. Não queiram nos obrigar a fazer isso.

Um alegre bom-dia

Doris Day e Gene Nelson no filme "Lullaby of Broadway".(1951)

Lobista não é parlamentar

Recentemente, foi apresentada no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 47/2016 para regulamentar a atividade de representação de interesses perante o poder público, o famoso lobby. O tema gera controvérsias. Desde a promulgação da Constituição de 1988, vários projetos foram apresentados com o objetivo de atribuir à atividade um caráter legítimo e legal. Até agora nenhum prosperou, revelando o interesse de boa parte dos congressistas em manter a atividade à margem da lei.

50 Ilustrações que vão Mexer com Você:
Pawel Kuczynski

Na defesa da regularização do lobby, alega-se com frequência seu caráter inevitável. Tendo em vista que sempre existirá, é preferível que a defesa de interesses privados seja feita sob a luz da lei, dizem os apoiadores da causa. O argumento, porém, dá ao lobby uma injusta conotação de mal necessário. A representação de interesses privados é legítima e pode contribuir para a melhoria da qualidade da representação política. Não há razão para considerar que tais interesses – tanto o lucrativo como o terceiro setor, beneficente – obrigatoriamente contrariem o interesse público. Nesse assunto não cabem ingenuidades, como também não cabem preconceitos. E, justamente por isso, a regulamentação do lobby deve estabelecer regras que, tornando a prática mais transparente, dificultem a proliferação de interesses e atuações pouco legítimas.

Assim, seria razoável olhar com bons olhos a PEC 47/2016. O texto, porém, apresenta sérios inconvenientes. Em primeiro lugar, ele inclui o Poder Judiciário como possível espaço para o exercício do lobby. Ora, na esfera judiciária, a defesa de interesses já tem um trilho bem definido, que é o processo judicial. A admissão de outras vias seria conferir um indevido caráter político ao Judiciário, cuja missão institucional exige precisamente uma delicada isenção. Definitivamente, o Judiciário não é território para o lobby.

Outro grave defeito da PEC 47/2016 está em abrir a possibilidade de se conceder aos “agentes de representação de interesses” prerrogativas que de modo nenhum devem ter. Por exemplo, segundo a proposta, as entidades federativas poderão conceder aos lobistas do Poder Legislativo o “direito a voz no âmbito de reunião de comissão; direito à apresentação formal de emendas a proposições; direito ao acompanhamento pessoal da tramitação de matéria de seu interesse, vedado o acesso aos ambientes exclusivos de parlamentares; direito de acostar memoriais e documentos a proposições de seu interesse”.

Ao tratar dos lobistas do Poder Executivo, a PEC também vai além do razoável, e menciona a possibilidade de lhes conceder o “direito de acostar memoriais e documentos aos processos de seu interesse”.

A concessão de tais prerrogativas é um evidente exagero. No caso do Legislativo, os lobistas são presenteados indevidamente com o instituto da representação: poderão apresentar emendas e propostas como se parlamentares fossem. No caso do Executivo, o texto é vago a ponto de admitir interferências em qualquer etapa do processo de elaboração de projetos e estudos.

O exercício da atividade de representação de interesses não requer esse tipo de atuação, com intromissões diretas e extemporâneas. Afinal, um dos objetivos da regulamentação do lobby é estabelecer uma clara e saudável distinção institucional entre o lobby e o exercício do cargo de parlamentar ou das atribuições executivas. A propositura de emendas em projetos legislativos, principalmente, deve continuar sendo prerrogativa exclusiva dos parlamentares, para que não haja dúvidas quanto à vigência do sistema representativo.

A regulamentação do lobby só tem sentido se reforçar a representação política prevista na Constituição, que se dá exclusivamente por meio do voto. Uma legislação sobre o tema deve garantir transparência ao trabalho do lobista, permitindo o acompanhamento pela sociedade da lisura e da legitimidade dos interesses defendidos por meio dessa atividade. Afinal, o objetivo da regulamentação não é aumentar o poder do lobby. É torná-lo mais visível e, assim, mais controlado.

Editorial - Estadão

Muitos caciques, poucos índios

O recente falecimento de Carlos Alberto Torres, capitão do escrete canarinho de 1970 na Copa do México, a qual nos sagrou tricampeões, fez-me lembrar de um tema interessante: nossos líderes em campo. Tite, um treinador acima de qualquer suspeita, conseguiu a proeza de tomar uma decisão pior do que a de Dunga, o técnico anterior (e sobre o qual tenho tanta simpatia quanto reservas). Consta ter instituído um rodízio da braçadeira em contraste com a decisão anterior, que era a braçadeira no pior braço possível – o do Neymar Jr., e isso é minha opinião.

Liderança é um assunto fascinante. Assim como a autoridade, ela emana de uma pessoa, porém apenas se concretiza no outro. Ou melhor, o verdadeiro líder não é quem está numa posição de comando, e sim quem as pessoas ao seu redor identificam ser. E não adianta adjetivar, dourar a pílula, enfeitar. Onde começamos a classificar, tipo “liderança técnica”, “liderança moral” e “liderança anímica”, ali pode não existir um líder autêntico. Tomando o exemplo do futebol, a braçadeira nos identifica como sendo o capitão, mas não vem acompanhada dos predicados para que ocupemos o cargo.

Paz seja convosco!  Palavra para meditação: Somos responsáveis uns pelos outros  O Senhor perguntou a Caim: Onde está o seu irmão Abel(Gênesis 4:9)  Desde o início, dica claro que Deus coloca prioridades nos relacionamentos familiares, ou seja, os fraternais.  O marido tem a responsabilidade de vigiar pela sua família, a esposa o mesmo, uns velando pelos outros.  Nos tempos atuais, as pessoas não querem se responsabilizar por muito tempo com as pessoas de seu relacionamento(família):
Ultimamente, o termo “liderança” anda no foco. Parece que em todos os escritórios de RH há uma gincana instituída para caçar líderes. Está pior do que buscas de Pokemón. As escolas também se preocupam em “formar líderes”, como se o sucesso pessoal e profissional dependesse desta posição. Por resultado, o que vemos é muito cacique para pouco índio. Com isso, um problema: onde só há líderes, não há líder. Como referi, a autoridade existe apenas quando reconhecida pelo outro, e este será, lógico, um liderado. Se eu me submeto e passo a me sentir menos – ou menor ou fracassado –, tal posição não servirá. Assim nasce a imensa crise de autoridade.

A braçadeira de capitão só faz mal a quem não é líder. Ela confundiu a cabeça do Neymar Jr. o tempo inteiro e segue a atrapalhar o time até hoje (destituí-lo se tornou um dilema). E a solução mágica encontrada por Tite foi o tal rodízio, um pecado inverso – muitos líderes, nenhum líder. Carlos Alberto, o “Capita”, liderava diversos gênios (Tostão, Jairzinho, Rivelino…) e um rei (Pelé). A braçadeira lhe caía tão bem como a poucos. Quem sabe Tite, olhando as reportagens sobre seu falecimento, reveja suas posições e identifique no grupo um líder, um capitão. Isso, ou minha suspeita recai sobre a própria autoridade enquanto técnico. Porque isso eu não disse: muito mais do que liderados, líderes se reconhecem a distância.

Rubem Penz

Exploração política da pobreza

Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela". Conquanto as coxinhas fossem meramente simbólicas e não aparecessem fisicamente, a mortadela, essa sim, chegava em cestos, servida com pão. Em torno desses sanduíches se comprimiam manifestantes trazidos em ônibus para atuarem como figurantes nos eventos governistas. Faziam lembrar os filmes épicos do cineasta norte-americano Cecil B. DeMille, nos quais multidões eram contratadas para povoar a tela em cenas que causavam grande impressão. Nas manifestações contra o impeachment, quando a câmera dava um close, viam-se homens e mulheres humildes, em camisetas vermelhas, atacando com disposição o prometido sanduíche.

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Não raro, alguém se infiltrava nessa multidão, entrevistando-a e testando-a sobre suas convicções. As respostas, como seria de se esperar, mostravam que a quase totalidade não tinha ideia sobre a razão de ali estar. Embora muitos assistissem a essas cenas, posteriormente exibidas nas redes sociais, como coisa jocosa, tratava-se, na verdade, de algo constrangedor e triste. Triste e constrangedor. Como não se constranger ante a falsificação da cidadania? Como não se entristecer quando seres humanos têm sua dignidade rebaixada à condição de figurante de cidadão, ao preço de um sanduíche e alguns vinténs, num ato presumivelmente político? Nada contra quem foi levado a esse nível de carência. Apenas dó e respeito. Mas tudo contra quem se vale dessas pessoas e de suas precariedades para difundir uma mensagem de araque em comícios com figurantes. Após tantos anos no poder, precisam valer-se dos apelos da pobreza para atribuir vigor e atrair adesão à falácia de que acabaram com ela.

Pobre pobreza, sempre tão na ponta da língua e longe dos corações! Eleição após eleição, governo após governo, com crescente vigor a partir do "Tudo pelo social" do companheiro José Sarney, a pobreza ganhou o primeiro plano da retórica eleitoral. Na prática, os resultados são tão escassos quanto pode ser percebido tão logo se dissipa a algaravia dos discursos. Tudo se passa como se o discurso fosse capaz de superar os fatos e a autolouvação alterasse as estatísticas, proporcionasse emprego aos desempregados, salário e renda aos devedores. E pão com mortadela a quem tem fome. Sim, porque o pão com mortadela sumiu com o desinteresse pelas massas de figurantes. A volta vem e os "calaveras" se secam, ensinam os fronteiriços.

A economia nacional, que surfou sobre a crise no mar da China compradora crendo que o céu seria sempre azul e a brisa suave, se espatifou contra os rochedos da realidade. Era inevitável. A casa foi assaltada. O poço secou. A responsabilidade fiscal foi demitida das contas públicas. As maiores empreiteiras no Brasil abasteceram seus cofres diretamente do PIB nacional. A turma do Pixuleco enricou como Tio Patinhas jamais imaginou. Com o dinheiro do BNDES, o Brasil se transformou em mecenas ideológico de nossos satélites ibero-americanos e africanos. Mas tudo foi feito, dizem-nos, por incondicional amor aos pobres.

Pior do que isso. Agora, quando se pretende reerguer o país e medidas de austeridade se impõem, retomam o discurso da irresponsabilidade fiscal. Exigem que não se pague a dívida que quintuplicaram, cobram que se baixe a taxa de juros que elevaram e que o novo governo faça logo e faça bem, pela saúde e pela educação, tudo que não foi feito em 13 anos. Por amor e em defesa dos pobres.

O zelo pelos mais necessitados não é saliva de discurso. Antes de tudo é criar condições para que as pessoas, elas mesmas, promovam seu desenvolvimento humano e social. A pobreza, por si só, é uma chaga nacional. Explorá-la politicamente, em nome dela, é perverso.

Paisagem do Dia

Nature Photography by Oer-Wout
Oer-Wout

A anistia vem a galope

Enquanto a torcida se distrai com as eleições municipais, os deputados articulam uma nova jogada na Câmara. O plano é driblar o Ministério Público e aprovar uma anistia geral ao caixa dois. Se der certo, será um gol de placa do sistema político ameaçado pela Lava Jato.

A ideia é ousada: usar um pacote moralizador para legalizar o financiamento ilegal de campanhas. Os parlamentares prometem aprovar a criminalização do caixa dois, uma das chamadas dez medidas contra a corrupção. Parece boa notícia, mas há um detalhe. Ao proibir o trambique no futuro, a Câmara quer perdoar quem o praticou no passado.

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O lance já foi ensaiado em setembro. A bola não entrou graças a deputados da Rede e do PSOL, que se insurgiram contra o acordo fechado pelos grandes partidos. Agora a anistia ameaça voltar a galope. O motivo da pressa é a delação da Odebrecht, que deve entregar mais de 200 políticos de todas as siglas.

O novo acordão para "estancar a sangria" tem o aval do governo Temer e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Na quarta (26), ele repetiu uma tese dos réus do mensalão: caixa dois e corrupção seriam "coisas distintas", sem ligação entre si.

Em entrevista a Mario Sergio Conti, na Globo News, o deputado indicou que apoia o perdão ao financiamento irregular das eleições passadas. "Nós temos que dar um corte e dizer que daqui para a frente está criminalizado", disse, apesar de a lei já prever punições ao caixa dois.

Questionado se estava defendendo uma anistia a criminosos, Maia abriu o jogo: "Alguma solução vai ter que ser dada. Eu acho que anistia é uma palavra forte". De falta de transparência, não poderemos acusá-lo.

Pac-man do terror


Às vésperas da decisão do Congresso sobre cortar recursos públicos para partidos nanicos, multiplicam-se pedidos de registro de siglas na Justiça Eleitoral. O número cresceu em duas semanas de 34 para 52 novos grupos tentando se oficializar, o que engrossará a milícia de 35 siglas oficiais

Gregos e troianos Na lista, há os ligados a causas ambientais, como o Animais; os religiosos, como a UDC do B (União da Democracia Cristã do Brasil); e os esportistas, como o já notório PNC (Partido Nacional Corinthiano). 
Deu na Folha 

Vergonha, lágrimas e mágoa no berço do PT

 
PT virou aquele partido que foi feito para ser diferente, mas briga para ser igual 
Gilson Menezes, ex-prefeito de Diadema deixou o PT antes da primeira eleição de Lula à Presidência
Pouco sobrou do Primeiro de Maio original, quase não se encontram vestígios daquele estádio que, no dia 13 de maio de 1979, abrigou a mais emblemática greve da história do Brasil, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Com boa vontade, é possível identificar o local em que o palco daquele ato foi montado, ouvir o som dos helicópteros da polícia voando baixo e, em resposta, a turba que cantava o Hino da Independência – bem como recordar de um problema no equipamento de som que fez cerca de 60 mil trabalhadores repetirem, como se estivessem em um jogral, as palavras de um líder emergente, Luiz Inácio Lula da Silva.

Todas essas reminiscências só são possíveis se você for uma testemunha ocular daquela história, se você for alguém como Gilson Menezes, de 67 anos, o primeiro prefeito eleito pelo PT.

Ali, no centro do gramado do Primeiro de Maio, o homem que venceu as eleições de 1982, em Diadema, caiu em prantos: “A ideia da criação do PT já estava presente nesse estádio, já estava presente nessa greve, já era quase uma realidade. E agora? Está tudo desmoronando. Por que fizeram isso?”, pergunta.

De fato, menos de um ano depois daquele movimento, no início de 1980, nascia o PT. Menezes, que em 1978 havia se destacado como liderança sindical, principalmente por conseguir paralisar a Scania (fabricante de caminhões), participou das primeiras conversas sobre a criação do partido. “No começo, discutíamos nos bares, restaurantes e nas nossas casas. O partido ainda nem tinha um nome definido. Havia quem defendesse o nome PP (Partido Popular)”, recorda.

Em 1982, Menezes acabou sendo candidato contra sua vontade – mais para consolidar a legenda e dar visibilidade a lideranças locais. “Eu tinha vergonha de dizer que era candidato”, lembra. Chances de vencer? Quase não se pensava na possibilidade. Na época, Paulo Afonso, que era o vice na chapa, dizia: ‘Não devemos ganhar. Vencer seria um fel amargo’”. Menezes recorda ainda que concorrer à prefeitura significava apenas “fincar bandeira do PT”.

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