segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Subsídios que põem fogo no planeta

Na Cúpula de Ambição Climática, realizada dia 20 na sede das Nações Unidas, em Nova York, o secretário-geral da ONU, António Guterres, citou um levantamento do Fundo Monetário Internacional para pedir urgência no tratamento da crise ambiental.

Os subsídios para produção e consumo de combustíveis fósseis atingiram no mundo, em 2022, a bagatela de US$ 7 trilhões – o equivalente a 7,1% do PIB global.

São recursos que poderiam financiar investimentos para acelerar a transição energética. Essa substituição enfrenta a resistência dos governos, seja porque temem o impacto da alta dos combustíveis sobre o custo de vida, seja porque não querem abrir mão da renda proporcionada pelo petróleo ou pelo carvão.

O governo brasileiro participa desse jogo perverso porque tomou a decisão de achatar os preços dos combustíveis tanto por meio da redução dos impostos como por atraso no reajuste dos preços ao varejo.


O resultado da falta de empenho global para reduzir as mudanças climáticas é esse aí: temperaturas sufocantes, mesmo no inverno, como por aqui; incêndios de intensidade nunca vista ao redor do mundo; secas terríveis intercaladas com ocorrência de enchentes que matam, desalojam, destroem cidades e plantações.

Se nada mudar, a despeito da arenga dos negacionistas, o planeta ficará mais instável e imprevisível, e os custos econômicos talvez não serão mais relevantes do que os políticos, uma vez que catástrofes e um mundo muito perigoso podem gerar movimentos totalitários – como a História nos ensina.

No momento, não há muita opção. Em grande parte do mundo, a geração por meio da queima de óleo combustível e de carvão ainda predomina na matriz energética.

Até agora, o carro elétrico, que vem contando com fortes incentivos dos governos, é a melhor resposta ao problema, mas se restringe à energia destinada à mobilidade. Ainda assim, pouco poderá mudar as condições atmosféricas, se a energia elétrica consumida pelo carro elétrico continuar sendo produzida por fontes fósseis.

Mesmo na produção de combustíveis destinados aos veículos, há campo enorme à espera de desenvolvimentos. Os biocombustíveis parecem ser solução temporária, destinada a complementar a fase de transição. Se o Brasil precisa exportar veículos, não pode contar com eles. Será preciso desenvolver baterias baratas e sustentáveis. Esperar que outros países ou as multinacionais façam o que tem de ser feito implica aceitar maior dependência tecnológica.

Enquanto isso, subsidiar a produção e o consumo de combustíveis fósseis continuará a queimar o planeta.

Solidão

“All the lonely people/Where do they all come from?”, perguntava em 1961, com terna insistência, o refrão de “Eleanor Rigby”. Pois foi justamente uma chefe de governo britânica, a ultraconservadora Theresa May, que procurou responder à canção dos Beatles quase seis décadas depois. Para espanto e descrédito generalizado, em 2018 ela criou uma nova pasta — o Ministério da Solidão —, cujo nome oficial logo fez a festa em redes sociais e programas de humor.

— Isso soa a eufemismo vitoriano para gigolô — lançou o comediante Stephen Colbert.

— Poderia ser a criação literária de um José Saramago, Haruki Murakami ou Gabriel García Márquez — arriscou Carmen Graciela Díaz.


De lá para cá, a pasta já trocou de titular múltiplas vezes devido à óbvia dificuldade de pensar em estratégias de governo para um problema emocional e individual. Ainda assim, ao completar cinco anos de existência, o ministério já gerou filhotes no Japão e na Alemanha, criou demanda na Austrália e países escandinavos e integra definitivamente as preocupações do doutor Vivek Murthy, atual cirurgião-geral dos Estados Unidos, responsável pela saúde pública do país. Os argumentos de Murthy estão em recente relatório de 81 páginas: a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia e superior à do álcool pra quem consome seis doses diárias. Sem falar em possíveis desdobramentos numa série de doenças.

— Além de esmagar a alma, (...) a solidão quebra o coração, literal e figuradamente — resumiu o colunista do New York Times Nicholas Kristof.

Como as demais emoções, a solidão ou o sentimento de isolamento social são difíceis de mensurar. Em consequência, o êxito ou a inutilidade de intervenções destinadas a abrandá-los também são. A mera elaboração de um questionário capaz de captar o desalento íntimo de cidadãos já é complexa e exige dos recenseadores treinamento especial. Nesse quesito, o Office for National Statistics britânico (equivalente ao nosso IBGE) foi pioneiro, a ponto de captar o crescimento quase linear da solidão social entre jovens de 18 a 34 anos. Na Alemanha, é o inverso: o perigo ronda quem já ultrapassou a vida produtiva. O ambicioso programa interministerial A Connected Society, publicado com a criação do ministério de Theresa May, elencou mais de 50 estratégias para enfrentar a solidão nacional. Alocou fundos para pesquisa, contratou mais de mil funcionários públicos para conectar grupos comunitários, levou a Cruz Vermelha a instruir carteiros de todo o país a reportar sinais de isolamento social e muito mais.

Os resultados têm sido desiguais, claro. Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos. Abrir espaço, mesmo que mínimo, para pracinhas compartilhadas, instalar iluminação quente no lugar do branco hospitalar em estruturas públicas também. Médicos foram instruídos a prescrever atividades sociais, em vez de receitar remédios, e iniciativas locais receberam financiamento. Para a recente coroação do Rei Charles, o Ministério da Solidão organizou uma ação de voluntariado que fez sair da toca mais de 6 milhões de pessoas sem convívio social. Do outro lado do Atlântico, o cirurgião-geral adverte: se os Estados Unidos não tomarem medidas concretas, os que se sentem excluídos se retrairão ainda mais — e estarão mais zangados, mais doentes, mais à deriva. No Japão, onde uma conferência interministerial de emergência resultou dois anos atrás na criação do Ministério da Solidão e Isolamento, o enfrentamento da dor social é ainda mais difícil. Culturalmente enraizado na sociedade quase como virtude, o isolamento ainda é visto como algo estritamente pessoal, privado e de responsabilidade intransferível.

É de Julio Cortázar, na obra-prima “O jogo da amarelinha”, a descrição da “solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que entrar no cinema ou no prostíbulo ou na casa dos amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos só-entre-os-demais”. É dela que devemos tentar arrancar quem está ao alcance de um esforço nosso. A sociedade como um todo agradece. Solidão não é solitude — a primeira corrói a alma, a outra, por opcional, pode ser linda.