segunda-feira, 25 de maio de 2020

Pensamento do Dia


Vídeo, mentiras e palavrões

É raro ver um filme, depois de ler seu argumento e roteiro. Você sabe o que vai acontecer. No entanto, desconhece como os atores vão representar o texto, como reagirão às falas, como se movimentam no espaço cênico.

O famoso vídeo da reunião do Conselho de Ministros já foi vazado a ponto de termos uma ideia de como transcorreu. Sim, havia dúvidas sobre os palavrões. Como foram ditos, com que expressão facial, em que contexto, que tipo de olhar suscitaram.

Tenho impressão de que o vídeo veio na íntegra. O corte da fala de Weintraub é tão óbvio que todo mundo percebe o que disse: não queria ser escravo do PC chinês. Talvez seja uma das frases mais inocentes de todo o texto.

Não foi uma reunião de Conselho de Ministros tal como a supomos. Foi mais parecido com uma pajelança, uma tentativa de Bolsonaro de animar seu Ministério. O debate mesmo era sobre o plano Pró-Brasil.


O trecho básico, que interessa ao processo nascido com a queda de Moro, é o que afirma que não vai deixar sua família se foder, nem seus amigos. Por isso, mudaria até o ministro se necessário. Mudou o superintendente da Polícia Federal, e Moro caiu em seguida.

O nível das intervenções de Bolsonaro é bastante singular se cotejado com os documentos de reuniões presidenciais. Um dos momentos mais dramáticos foi afirmar que, se a esquerda vencesse, todos estariam cortando cana e ganhando 20 dólares por mês.

Como escritor, o que mais me impressionou foi a maneira como figurou a perda da liberdade: “Eles querem nossa hemorroida”, disse. Da primeira vez, hesitei. Seria isso mesmo? De onde tirou a hemorroida para expressar a perda da liberdade, não tenho a mínima ideia. Os analistas talvez nos ajudem.

A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados. Não apenas pelas palavras escolhidas, mas pela falta de conexão, de uma liderança que tivesse a agenda na cabeça e tentasse trabalhar o Ministério no conjunto como o maestro que rege uma orquestra afinada.

A perversidade ficou evidente na fala do ministro Ricardo Salles. Ele sabe que a Amazônia está sendo destruída num ritmo alucinante: de agosto de 2019 a abril de 2020 o desmatamento cresceu 94,4 % em relação ao período de agosto de 2018 a abril de 2019.

A tática explícita de Salles é aproveitar a grande preocupação com a pandemia e passar todas as agendas que significam enfraquecer a legislação ambiental e acelerar o processo destrutivo em curso.

Eu já intuía isso. O Human Rights Watch publicou um relatório semana passada, mostrando como as multas na Amazônia deixaram de ser devidamente cobradas desde outubro e como os funcionários sentem-se desamparados na execução da lei.

Consegui passar essa mensagem no meio de uma notícia sobre Covid. É preciso usar todas as brechas para neutralizar a tática perversa.

O general Heleno escreveu uma nota ameaçadora antes da divulgação do vídeo. Não entendeu que o ministro Celso de Mello apenas submeteu ao procurador-geral a hipótese de periciar o telefone de Bolsonaro e seu filho Carlos.

A ameaça é clara: intervenção militar. Heleno é um militar com experiência internacional. Creio que ele e as Forças Armadas sabem que existe uma pandemia e que ela é um tema decisivo para a Humanidade.

Creio também, caso leiam os jornais, que sabem o papel de Bolsonaro no imaginário internacional: o de um negacionista, cada vez mais perigoso na medida em que o Brasil torna-se o epicentro da pandemia mundial.

Um golpe militar no Brasil vai colocar o país em choque com o mundo. Dois temas vão se entrelaçar: a pandemia e a destruição da Amazônia.

Não creio que depois de tanta reflexão histórica, estudos, seminários, palestras, cursos no exterior, as Forças Armadas queiram participar dessa aventura. Já associaram sua imagem à cloroquina. Será que ouviriam o general Heleno e os defensores de uma intervenção militar?

Desta vez, não cairemos no erro de resistir com armas. Será uma luta longa e pacífica, alavancada pelo próprio mundo. Da primeira vez foi uma tragédia; agora, será uma farsa com consequências profundas. Se é possível dar um conselho, ai está: por favor, não tentem.

A receita medieval contra o coronavírus que mistura Jesus, cloroquina, sementes milagrosas, jejuns e orações

O Brasil parece ser um daqueles países dos quais se conta nos romances que ficaram isolados na Idade Média sem saber que estamos no século XXI. Só assim se explica que, ao contrário do resto do mundo, tenta combater a pandemia de coronavírus com uma receita que mistura invocações a Jesus, cloroquina, sementes de feijão, orações e jejuns coletivos. Tudo parece bom, exceto seguir os passos da ciência e da medicina. O resultado de tudo isso é que já é o segundo país do mundo com mais pessoas contaminadas pelo vírus e o sexto com mais mortes pela covid-19.

Os fanáticos sequazes do presidente Jair Bolsonaro, que continua acreditando que é apenas mais uma gripe e que morrer todos devemos morrer, cantam entusiasmados: “Cloroquina, lá do SUS, eu sei que tu me curas, em nome de Jesus”. Por sua vez, o pastor evangélico Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, vendia a 1.000 reais sementes de feijão abençoadas que, segundo ele, curam milagrosamente do coronavírus. Na cidade de Ladário, no Mato Grosso do Sul, o prefeito evangélico ordenou pelo menos 21 dias de jejum e orações contra a epidemia. Tudo menos seguir os conselhos da ciência.

Na esfera íntima as pessoas têm todo o direito de se apegar a qualquer coisa para se defender da angústia, exorcizar o medo e tentar salvar suas vidas. Não na esfera política e social em um país laico como o Brasil, onde não é possível desempoeirar as ideias medievais quando a Igreja ditava as leis para toda a sociedade e, ao mesmo tempo, combatia a ciência e a medicina.

Escrevi em outra coluna que o coronavírus se cura com a ciência, não com a religião. Milagres religiosos não devem entrar na esfera do Estado. É verdade que a fé, como dizem os Evangelhos, “pode mover montanhas”, mas não tem porque ser a fé religiosa. Existe uma força dentro de nós que, como a ciência moderna está descobrindo cada vez mais, pode nos curar de certas doenças. Mas os agnósticos e ateus também têm essa fé. Está dentro do ser humano.

Se confundir religião com o Estado era uma característica medieval, a descoberta de que existe uma força dentro da pessoa humana que é capaz de curar pertence à modernidade em que práticas laicas de meditação e autoconhecimento são cada vez mais aconselhadas. Às vezes somos nós mesmos que somos capazes de superar os limites da natureza sem a necessidade de um Deus fora de nós que, por seu capricho, cura alguns e deixa outros morrerem.

Uma coisa é o respeito que devemos ter por todas as experiências religiosas que o homem criou ao longo da história para exorcizar seus medos diante do mistério e outra é querer impor certas receitas milagrosas àqueles que não possuem essa fé. Eu tive uma experiência curiosa quando criança. Minha mãe era uma mulher com a fé simples do carvoeiro para quem Deus era familiar e bom, que nos ajudava nos momentos difíceis da adversidade. Isso a ajudou a suportar com grande integridade e serenidade a morte de minha irmã que, com 41 anos deixou cinco filhos pequenos. Eu podia não respeitar sua fé?

Ao contrário, meu pai, professor rural como ela, era agnóstico, mas com uma grande sensibilidade social, o que fazia que além de professor se transformasse em advogado e conselheiro daqueles camponeses analfabetos quando se encontravam com algum problema burocrático para resolver. Eram tempos de guerra e de fome e minha mãe lutava para poder dar um pedaço de pão com toucinho a mim e aos meus dois irmãos. Esses camponeses ficavam muito agradecidos e às vezes nos traziam meia dúzia de ovos ou uma galinha, um tesouro. Meu pai havia nos proibido de receber esses presentes porque dizia: “Eles tiram isso da boca para nos dar”. Às vezes minha mãe aceitava às escondidas alguns desses presentes. Meu pai a censurava com carinho: “Mas que cristã você é, Josefa!”.

Anos mais tarde, meus estudos de História das Religiões me ensinaram a distinguir entre a fé religiosa e a fé laica. Hoje a Igreja mais aberta e moderna começa inclusive a examinar com maior atenção os milagres que exige para canonizar alguém. Conheci um médico importante na Itália que havia trabalhado como consultor do Vaticano no exame dos milagres atribuídos aos santos. Ele havia tido uma crise de consciência. Disse-me que, como médico, via a grande maioria do que a Igreja chamava de milagres de Deus como algo que é possível realizar com a fé laica que nasce da nossa força como resultado de um forte desejo interno.

Ele me contou que muitas das curas ocorridas, por exemplo, nas visitas aos santuários marianos, eram mais o resultado da força da fé pessoal sem necessidade da intervenção divina, que de outro modo seria racista ao curar alguns e deixar outros morrerem. Aquele médico me disse que nunca havia visto em tais lugares de culto ressuscitar um morto nem crescer um braço ou uma perna a um mutilado. As outras curas, disse, podiam ser o resultado da força pessoal de cada um. Quando os Evangelhos dizem que “quem tem fé é capaz de mover montanhas”, não têm porque se referir à fé religiosa. Basta a fé em nós mesmos, em nossa força interior, muitas vezes adormecida e que é capaz de realizar transformações consideradas como milagres religiosos.

Tudo isso para dizer que quando os seguidores de Bolsonaro cantam misturando Jesus com a cloroquina, que mais do que um medicamento a estão transformando em um talismã religioso, ou em uma estratégia político-comercial, cometem um sacrilégio. Enquanto os pastores que oferecem sementes milagrosas ou os prefeitos que impõem semanas de jejuns e orações contra o perigo do coronavírus nos recuam para a Idade Média.

Aos fariseus que para tentar Jesus lhe perguntaram se deviam pagar tributo a César, respondeu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Isso nos lembra hoje que devemos saber distinguir entre a fé religiosa e a fé laica. Entre a religião, a ciência e a medicina. Todo o resto é superstição, atraso cultural, política rasteira e crime contra a modernidade.

Devagar, a democracia extrai o tumor autoritário

Diante da pornografia em que se converteu o exercício do poder presidencial sob Jair Bolsonaro, o que na pandemia custa vidas e empregos, dá para entender a ansiedade de quem preza a democracia e o bom governo pela solução rápida do impasse. Mas ela dificilmente virá.

Não deve vir porque uma das características das democracias é a prevalência da forma sobre a vontade.

Esse mecanismo é o mesmo que dificulta a intromissão do presidente da República nos órgãos policiais do Estado, impede a ministra rompedora dos Direitos Humanos de prender governadores e prefeitos e evita que o desmatador do Meio Ambiente vá passando a boiada por cima das regulamentações antimotosserra.

A pauta de fato da reunião de 22 de abril na sede da Presidência era imprecar contra esse sistema. Ali uma súcia de sádicos reprimidos sonhou acordada com adversários esmagados, sujos de excrementos e acometidos de dores lancinantes. O que as instituições vedam ao grupo foi por ele verbalizado no drama psicótico.

Autoritários são assim. Odeiam o que embota os seus desejos imediatos. Tomam atalhos para contornar a norma e jamais dispensam a força em benefício próprio. Que morra depressa quem tiver de morrer com o vírus para eu tocar o barco da economia. Que vão para a cadeia os juízes que me importunam. Que se evaporem o delegado que investiga minha família e o fiscal que me multou.

Democratas são feitos de outro tecido. Não admitem fulminar a cartilagem que os protege do despotismo nem quando ela também contribui, no presente, para postergar a depuração do regime das liberdades. Formam o partido da paciência cívica.

Daí vem a nota otimista destes dias. Quem cabeceia na fossa obscura dos apetites e das alucinações perdeu a perspectiva do tempo. Trava uma batalha de vida ou morte a cada minuto. Comemora não ter sido atingido pela “bala de prata”, mas não enxerga que afundou mais um pouco nem que a derrocada continua.

A democracia, com vagar sacramental, empurra o tumor para fora.

Gente fora do mapa


Bolsonaro planeja guerra civil, não autogolpe

A interferência ilegal de Jair Bolsonaro na Polícia Federal pode estar nos fatos, mas não no vídeo tarja-preta. Ingerência sim, crime não. De gravidade inédita é outra coisa: o presidente não investe num autogolpe, mas numa guerra civil. Confessou ainda ter um sistema particular de informações. E usa as Forças Armadas, que se deixam usar, para seus propósitos criminosos.

Trata-se de confissão, não de interpretação: “Por que eu tou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”. A arma é um fermento político. E o crime tem atos de ofício, como evidencio abaixo.

Na reunião, dá ordem a Sergio Moro e a Fernando Azevedo e Silva (Defesa): “Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!” No dia seguinte, saiu a portaria, que elevou a munição que pode ser comprada por um civil de 200 unidades por ano para 550 por mês.


No dia 18 de abril, ele já havia baixado a portaria 62/20, pondo fim ao rastreamento de armas e munições. Escreveu no Twitter: “Determinei a revogação das Portarias Colog nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e demais produtos controlados por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos".

As portarias revogadas tinham sido assinadas pelo general de brigada Eugênio Pacelli, do Comando de Logística do Exército. O presidente mandou exonerá-lo da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados sem poderes para isso.

Pacelli passou para a reserva no dia 24 de março. Na despedida, desculpou-se com empresários do ramo de armas por não ter atendido a seus interesses: “Nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social”. O de Bolsonaro é outro. O PSOL entrou com uma ação no STF contra a portaria 62. O relator é Alexandre de Moraes.

Não menos grave é a outra confissão: “Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente, desinforma.” Que sistema é esse? A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-aliada da turma, disse à CPMI das Fake News que Carlos Bolsonaro, o amigão de Alexandre Ramagem, queria criar a “Abin paralela”.

Bolsonaro maratonou os crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079. E arregaçou a 7.170, de segurança nacional. Poderia pegar até 19 anos de cadeia. General Augusto Heleno ameaçou o país com um golpe, na sexta-feira (22), assinando, literalmente de próprio punho, uma nota que evoca, sub-reptícia e erradamente, o artigo 142 da Constituição.

O golpe de 1964 foi desferido “contra a subversão e a corrupção”. Os corruptos já estão sendo contratados junto ao fundão do centrão. E o subversivo confesso usa o aparelho de Estado e as Forças Armadas para organizar a guerra civil. Um novo Brasil, certo, senhores oficiais-generais?

A propósito: não fosse a demissão de Maurício Valeixo, Moro teria ficado calado em abril, como ficou em março, assistindo ao planejamento da guerra civil?

Bolsonaro, Hugo Chávez e Mussolini

Num dos trechos mais fortes da reunião ministerial do dia 22 de abril, um colérico Jair Bolsonaro defendeu armar a população.

Disse Bolsonaro, entre um palavrão e outro:

— Um puta de um recado para esses bostas: estou armando o povo porque não quero uma ditadura, não dá para segurar mais. (...) Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! ".


No dia 12 de maio de 1937, o "Correio da Manhã" estampava em manchete: "Mussolini diz que só um povo armado é forte e livre". A reportagem relatava um discurso para cem mil italianos feito na Sicília por Benito Mussolini — uma fala "entrecortada por delirantes aplausos".

Em 2006, Hugo Chávez bradava, também em praça pública, depois de comprar milhares de fuzis russos:

— A Venezuela precisa ter 1 milhão de homens e mulheres bem equipados e bem armados. (...) Os gringos querem nos desarmar. Temos de defender nossa pátria.

A essência das três falas é a mesma. Qualquer semelhança...

A conspiração do atraso

Há uma tendência incontida de atribuir aos outros o que é de nossa responsabilidade. Principalmente, se o assunto for o fracasso em qualquer que seja as múltiplas faces da individualidade ou mesmo da sociedade da qual fazemos parte.

Neste sentido, Sartre, na peça “Entre quatro paredes” disse, em cinco palavras, “o inferno são os outros”, a síntese do existencialismo. Esta aparente simplicidade decorre de uma complexa construção segundo a qual “a existência precede a essência”: significa primeiro existir para criar a essência; uma vez criada e visível, a existência tende a não se enxergar ou ouvir. Tudo o que não queremos ouvir é que o inferno somos nós mesmos.

Na dimensão política, “as verdades” são idealizadas, os debates derivam para a aniquilação dialética do outro e, no limite, quando a política é vencida pela força, o outro é simplesmente eliminado.

O Brasil é um caso para estudo permanente. Desafia os abismos e flerta, de vez em quando, com uma prosperidade sistêmica que alia democracia política, livre iniciativa, carecendo, porém, de equidade, mais ética e educação de qualidade. Já ouvi, em várias momentos, e de pessoas de saberes incontestes: “o Brasil é o país das oportunidades perdidas”.


Neste ponto, não falta a retórica na busca de responsáveis e culpados pelo atraso. Vai dos colonizadores mercantilistas à perversidade do capitalismo global ou, quem sabe, uma conspiração virótica sino-comunista?

Antecede uma pergunta desafiadora da sociologia de botequim: quem e como somos nós? A rigor, pelo menos quatro “ismos” estão presente no nosso DNA social com intensidade variável.

Primeiro “ismo”: o autoritarismo. Vem de longe, da base social escravocrata, à família patriarcal e à autoridade que pensa, diz e pratica: “manda quem pode, obedece que tem juízo” ou “sabe com quem está falando?”.

Segundo “ismo”: o estatismo. O brasileiro é viciado em Estado. O “empreendimento” colonizador foi uma iniciativa estatal: nobres cortesãos, militares e padres. Com ordenações criando regras e privilégios estatais antes que a nação nascesse.

Terceiro “ismo”: o patrimonialismo. A fonte do clientelismo e da corrupção. Resulta da promiscuidade entre a coisa pública e a esfera privada. Cria o capitalismo de compadrio.

Quarto “ismo”: o populismo. Praga que agrava o esgarçamento da democracia liberal. Já experimentamos todos os tipos. De charmosos a loucos. Devastam instituições e explodem o tesouro.

Não há conspiração. Nós somos responsáveis pelo atraso. Seria razoável afirmar que o Presidente da República é uma assustadora caricatura dos nossos defeitos. Não é só isso. Vai muito além.

O vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril que veio a público em 22 de maio não é apenas peça probatória de um processo judicial: é um documento histórico que atesta a insanidade e a estupidez de um governante que põe em risco a estabilidade institucional do País.

O que há de mais evidente e chocante é a falta de decoro pessoal e de respeito político às instituições republicanas de membros do governo, traduzidos numa linguagem incompatível de quem deve dar aos governados o exemplo de civilidade.

Apesar dos defeitos formadores da sociedade brasileira a que me referi, linhas atrás, há contrapartidas de comprovadas virtudes, entre as quais, a rejeição ao autoritarismo, avanço demonstrado na penosa construção e sólido apego à democracia esculpida pela Constituição Federal de 1988.

Ciência e autoritarismo

Não é qualquer ideia, por ser uma mera opinião, que tem validade. Se isso fosse verdade, o conhecimento não se estruturaria, a civilização não avançaria e a vida humana seria impossível. Ideias argumentadas são as que, tendo pretensão de validade, são submetidas à discussão e ao confronto, aceitando testes, debates e verificações. O primeiro tipo conduz ao arbítrio e o segundo, a ordenações políticas baseadas na liberdade.

A ciência, grande expoente do processo civilizatório, aquele que torna um bípede falante qualquer um verdadeiro ser humano, teve um longo percurso histórico, com pensadores mais avançados pagando até com sua própria vida. Foi um processo penoso e difícil através do qual a força das ideias terminou por vigorar contra a violência da dominação política.

O conhecimento se estrutura, a experiência é valorizada, o confronto público de ideias torna-se uma condição deste progresso e seus efeitos se fazem sentir no bem-estar de todos, graças à descoberta de novas técnicas. Vacinas, protocolos de saúde e medicamentos são seus frutos. A pesquisa termina por estabelecer suas próprias regras, de modo que todos se possam reconhecer enquanto agentes de um conhecimento de dimensões coletivas.

Do ponto de vista político, a liberdade no nível do conhecimento se traduz por novas formas de estruturação do Estado, vindo a ser um princípio a organizar as relações sociais e políticas. O espaço do arbítrio, embora não possa ser eliminado, é então circunscrito, de onde surge a noção moderna de cidadania.


Ora, o que estamos hoje presenciando no País é um retrocesso civilizatório. O bolsonarismo, nome para designar um amontoado de ideias carentes de fundamentação, porém eficaz do ponto de vista do convencimento de uma parte da população, tem como uma de suas características principais o menosprezo da ciência e, por via de consequência, da liberdade. O desrespeito ao outro é total, tanto do ponto de vista científico quanto moral, este último se traduzindo pela ausência de compaixão e pela banalização da morte.

Trata-se de um movimento de extrema direita, que deve, evidentemente, ser distinguido da direita conservadora e da direita liberal, que prezam a ciência, a moral, o debate livre a democracia, a despeito, muitas vezes, de divergências sobre o significado desses conceitos. Quisera aqui salientar princípios comuns por eles compartilhados, como os que são igualmente vigentes no campo da esquerda, excluindo sua franja autoritária e totalitária. A extrema direita não adere a esses valores democráticos.

O que temos visto no tratamento da atual pandemia é a afirmação de meras opiniões do presidente Bolsonaro como se fosse um pesquisador a emitir “verdades” de que só ele conheceria o fundamento. O exercício autoritário do poder se conjuga com o desrespeito completo aos procedimentos científicos. É simplesmente aterrador que dois ministros da saúde tenham sido substituídos em curto espaço de tempo por não concordarem com as opiniões “médicas” do presidente. Um presidente não precisa ser especialista em nada, basta cercar-se de assessores competentes. E o que fez o terceiro ministro? Simplesmente seguiu o arbítrio presidencial.

O que faz o presidente? Assessora-se com seus filhos e seguidores, cujo único “princípio”, se é que essa palavra possa ser aqui empregada, consiste em construir uma narrativa que lhe sirva, nas redes sociais, para seu projeto reeleitoral. Que isso seja bom para a saúde dos brasileiros é algo meramente secundário.

As redes sociais, aliás, são campo particularmente propício para esse tipo de prática autoritária, pois lá passa a valer a narrativa, a pluralidade e a desordem das narrativas, como se todas as opiniões fossem de igual valor. Uma ideia científica passa a ser uma simples narrativa, com a qual se confrontam outras narrativas que, uma vez desmentidas, são substituídas por outras narrativas carentes de validade, e assim por diante. A ideia balizada, argumentada, desaparece ante uma avalanche “informativa”, hoje identificada como fake news.

Protocolos científicos, laboriosamente elaborados e estabelecidos há décadas, se não séculos, são simplesmente atirados para o ar, passando a valer a solução mágica de um medicamento determinado, lançado ao léu por supostos cientistas que nem seguiram as regras do seu meio. No caos do vale-tudo, seria uma “solução” entre todas, como se fosse igual escolher entre a conservação da vida, a cura da doença e aventuras perigosas no corpo de cada um.

As consequências do desprezo pela ciência e pelos princípios democráticos se fazem igualmente sentir no domínio dos valores morais. Joga-se contra a ciência, a favor do autoritarismo, quando corpos se amontoam em hospitais e cemitérios. A compaixão humana desaparece, entra-se numa contabilidade de necrotérios, como se as pessoas devessem estar submetidas ao espectro desse tipo de morte. A política põe-se a serviço das trevas e da ignorância – em linguagem popular, do capeta.

Imagem do Dia


Convém não esquecer

Na véspera, dia 12, eu estava em Brasília. De madrugada, Carlos Castello Branco e eu fomos acordar o deputado Márcio Moreira Alves. Ninguém duvidava de que a tempestade ia desabar dentro de algumas horas. Nossa preocupação era saber se o Marcito tinha um esquema de fuga. Claro que tinha. Como apertar as cravelhas do arbítrio sem cair no ridículo? Era o que eu me perguntava, entre tantas interrogações e perplexidades.

Mas o discurso do Marcito era simples pretexto. Os acontecimentos tinham tomado o freio nos dentes, desde que se rompera a ordem constitucional em 1964. O primeiro ato era para durar seis meses e ponto final. Tudo voltaria à ordem democrática. Voltou? Uma ova! Com os freios nos dentes ou não, os acontecimentos conduzem os oportunistas de toda espécie. Chega um ponto em que fica difícil saber quem quer o quê.


O país se divide então entre vítimas e algozes. Muitas e poucos. Entre uns e outros, os espectadores. Há sempre o risco de bancar o Fabrice del Dongo. O herói de Stendhal não sabia que aquele pega-pra-capar era nada mais nada menos do que a batalha de Waterloo. Num país periférico, onde a história passa pelo ridículo sem se chamuscar, o espetáculo é de fato chinfrim. Bom. No dia seguinte, um agourento 13 de dezembro como hoje, só que de 1968, eu saí à noitinha do Jornal do Brasil.

Na praia do Flamengo, o táxi parou. Chovia fininho e triste. Pneu furado. E o carro não tinha estepe. Parece mentira, mas a realidade é inverossímil. Abrigado na porta do prédio, de repente me dei conta de que ali morava o Carlos Lacerda. Era o famoso triplex, de que a Última Hora tinha feito alarde. Subi até a cobertura. Uma empregada me abriu a porta. O dr. Carlos está lá em cima. Lá estava, sim, na bela biblioteca, sentado na cadeira de balanço. Sozinho.

A Frente Ampla tinha sido fechada em abril. O Carlos estava interessado em parapsicologia. Foi o nosso primeiro assunto. Depois, os anjos. Ele e eu, mera coincidência, tínhamos comprado um dicionário americano sobre anjos. Até que caímos na real. Sim, o AI-5. Ele achava que ia ser preso. E foi. O silêncio do telefone me afligia. Mais de uma hora depois, chegou o Renato Archer. Deixei lá os dois na conversa de gente grande. Fui ler o AI-5. Você já leu? Que coisa pífia, santo Deus! E aconteceu. No Brasil.

Felicidade de 'patriota'

Felizes dos patriotas que jamais precisam duvidar de si próprios, pois nunca sentiram a menor culpa da desgraça e da ruína de suas pátria! (...)

Talvez até vivam invejavelmente satisfeitos e tanquilos dentro da couraça de sua estupidez ou de sua extrema e nojenta periculosidade
Herman Hesse

Gana de Bolsonaro armar ‘todo mundo’ vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia

Ninguém, nem o próprio Bolsonaro, sabia que nele se escondia, até agora, uma vontade stalinista de exterminar fisicamente os ricos e os bem remediados. Sabê-lo foi, a meu ver, o mais importante efeito do vídeo —liberado em decisão retilínea do decano Celso de Mello no Supremo— da reunião de gente do governo. Como ato, a reunião está acima e abaixo de qualquer qualificativo.

A exibição justificou a expectativa, mas não pelo pretendido esclarecimento entre as versões de Bolsonaro e Moro sobre manipulações do primeiro na Polícia Federal. Tivemos o privilégio de ver e ouvir um fato, mais do que sem precedente, sem sequer algo assemelhado no que se sabe dos 520 anos brasileiros.

Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos como o então ministro Nelson Teich. E alguém que se divertiu, sem dar descanso ao ríctus irônico, às vezes insuficiente para deter o sorriso —o vice Mourão, um general, ora veja, com senso de humor.

A exibição do ambiente de alta cafajestada, enfeitado pelo idioma doméstico de Bolsonaro, seguiu-se a uma sessão preparatória, da lavra do general Augusto Heleno e convalidada pelos generais palacianos. Resumido de corpo e ressentido típico, Augusto Heleno é dos que não falham: onde esteja, sua soma de arrogância e agressividade frutificará em problemas.

Exemplo definitivo: sua única missão propriamente militar levou a ONU ao ato inédito de pedir ao governo brasileiro a sua retirada do Haiti, onde manchou com operações desastradas e numerosas mortes o comando brasileiro de uma força internacional contra a violência local.

A nota de Augusto Heleno contra Celso de Mello e o Supremo é uma dupla consagração da ignorância que nunca deveria estar no generalato. Nesse nível, tomar uma tramitação judicial corriqueira por uma medida “inaceitável e inacreditável”, de “consequências imprevisíveis” sobre a “estabilidade nacional”, é ameaça criminosa. Essas consequências silenciadas por covardia resumem-se a uma, que conhecemos. Por um acaso preciso, apenas horas antes da nota obtusa e ameaçadora a Folha trazia este título: “Militares não vão dar golpe no país”. Nota e declaração do general Augusto Heleno.

O vídeo não nega, nem reforça, a intenção de manipular a PF, já clara em fatos anteriores e posteriores à reunião. Mas o confessado propósito de proteção policial também para amigos, além de familiares, não é bondade ilegal de Bolsonaro. É necessidade e recado.

Com dois balaços, o capitão PM Adriano Nóbrega deixou de ser amizade preocupante, mas para o sumido Fabrício Queiroz, e sabe-se lá para quantos outros, continua a preocupação protetora e mútua. Isso vale vidas, em meios peculiares como milícias, gangues e tráficos.

As vidas que nada valem são outras. “Eu quero todo mundo com arma!”, “eu quero todo brasileiro armado!”, “eu quero o povo armado!”, berrou o chefe aos seus generais impassíveis e paisanos desossados.

Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta.

Em quase três décadas no Congresso e ano e meio com o título de presidente, Bolsonaro só teve atos e posições prejudiciais aos assalariados, aos trabalhadores aposentados, aos que sobrevivem do trabalho informal —à larga maioria brasileira, ao povo.

Para isso tem Paulo Guedes na orientação do que pode fazer para destruir os ralos programas sociais, a educação, o arremedo de assistência à saúde. A gana de armar “todo mundo” não vem de insuspeitada e extremada revolta de Bolsonaro com a desumanidade dominante no Brasil. Vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia, até mesmo por meio de um vírus.

O desespero de Bolsonaro por certo corresponde à gravidade do que teme, se levadas com decência as investigações que o envolvam e a seus filhos maiores. Daí que a figura de Bolsonaro no vídeo seja a de quem não está longe da implosão.​

Gestos que salvam

Estamos no olho do ciclone. A maior tragédia que já atingiu nosso país está devastando uma população desgovernada, entregue ao heroísmo dos médicos e do pessoal da saúde. Quem deveria nos governar, mergulhado na insanidade, é a maior ameaça à saúde dos brasileiros. Joga contra. Dele não se espere senão o pior e cada vez pior.

A pandemia põe à prova nossa humanidade. Nunca tantos, ao mesmo tempo e por tanto tempo, vivemos o medo da morte. Apesar do medo, da dor e do luto, a espécie humana sendo movida a esperança, sabemos que a Ciência, incansável, vencerá esse vírus, como venceu outros. A pandemia vai passar e é bom que façamos planos para o futuro, desejemos e imaginemos um mundo que será mais justo e a desigualdade menos indecente. Mas é a solidariedade de que formos capazes agora, como seres humanos e como cidadãos, que dirá se esse mundo tem alguma chance de vingar amanhã. Mesmo trancados dentro de casa há formas de lutar contra a pandemia. Somos capazes de gestos que têm e dão sentido ao nosso dia a dia.

O grau zero da nossa resistência é nos cuidarmos porque assim estaremos também cuidando dos outros. Talvez nem percebamos o valor dessa dimensão solidária no que parece ser apenas autodefesa. Ficar em casa salva vidas.

Ajudar também aos mais próximos, os que estão ao nosso alcance direto e que precisam de ajuda.

Socorrer os vulneráveis, com os recursos disponíveis, das pequenas organizações às redes, dos indivíduos aos grandes bancos, cada um na medida das suas possibilidades, numa corrente de apoio à sobrevivência dos mais fragilizados.

Todos esses gestos, afirmando o valor de cada vida, ajudam não apenas a quem precisa, ajudam também a cada um de nós, nos arrancam da situação de vítimas paralisadas pelo medo, nos devolvem à condição de pessoas ativas e reconstroem por dentro a nossa humanidade.

Ou a solidariedade se afirma agora, no auge da pandemia, como uma convicção moral e uma virtude cívica, ou não será depois que esse sonhado mundo melhor se realizará.
Rosiska Darcy de Oliveira

O país da piada

No chiste atualizado, o venezuelano indaga a Deus: por que o Senhor é tão injusto com a Humanidade? Temos uma das maiores reservas de petróleo do mundo, o grande herói Simon Bolívar, mas hoje mera estampa na parede de Nicolas Maduro. Temos fome, miséria, mais de 3 milhões de pessoas já fugiram e uma inflação de 2,5 milhões. E agora essa Covid.

Deus disse: Tenho procurado ser justo. Vejam o Japão, tripinha de terra com tufões, mas um gigante tecnológico. Olhe os Estados Unidos, a maior potência mundial, atormentada por ciclones. E mais: o Covid-19 mata milhares no país e contamina milhões. Aliás, esse coronavírus é a resposta para os malefícios que as Nações provocam contra a natureza, o ódio e a ambição de governantes e políticos.

Veja os encantos da Índia e contemple as belas paisagens africanas, mas fuja daquela miséria. Botei muito petróleo no Oriente para compensar a tristeza dos costumes desumanos.

Deus arrematou: Veja o Brasil, imenso e fértil território, muito sol, costa monumental, sem terremotos ou guerras. E por que tanta condescendência? Deus foi taxativo: conhece o povinho que coloquei lá? Eles não estão livres desse vírus. Veja o governante eleito.

Acabou a conversa.


Pois é, esse governante acaba de acrescentar mais uma ao seu besteirol: "quem é de direita usa cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína".

O castigo divino parece que chegou. O Brasil padece hoje da improvisação dos homens públicos.

Incúria, desleixo e falta de planejamento estão na base da gravidade da pandemia que nos assola. Crise dentro de crise: sanitária, econômica e políticas em escalada crescente.

Um governante "receita" cloroquina contra o Covid. Ministros da Saúde, médicos, saem por discordar do uso indiscriminado da droga. Um novo ministro da Saúde, general bom de logística, mas que nada sabe de medicina. De uma tacada só, nomeou dez militares.

Mais: uma Secretária da Cultura, atriz famosa, deixa seu cargo depois de fritada pelo chefe. Um ministro da Educação que atropela o vernáculo. Um grupo de generais do Exército, instituição séria e respeitada, que parece concordar com os impropérios do capitão. Um ministro da Economia que dá sinais de desespero ante a projeção de queda de mais de 5% do PIB este ano. Um chanceler com uma estapafúrdia visão do mundo, cultor de nova "guerra fria". Paro por aqui.

Ganância, ambição, ataque feroz à natureza e ausência do Estado são responsáveis pela ocupação maior dos cemitérios.

Continuaremos a viver de improviso caso as normas de boa conduta sejam jogadas no lixo. Temos boas leis para proteger a sociedade e o meio ambiente. São desprezadas. Agora, a guerra entre potências é para saber onde nasceu o vírus. Ora, o foco deve ser o combate a ele. Política não pode balizar a ciência.

O momento é de civismo. A grandeza de uma Nação não é apenas a soma de riquezas materiais, abriga um conjunto de valores, sentimento de pátria, o sentido de família, culto às tradições e costumes, respeito às leis, visão de liberdade, seiva na qual o cidadão forja o orgulho pela terra em que nasceu.

Só assim deixaremos de ser o país da piada.