sábado, 10 de julho de 2021

Brasil da urticária

 


Espuma tóxica

Reza o catastrofismo engajado que a democracia brasileira se encontra em via de extinção. Por essa cartilha, o golpe de Estado está em marcha e apenas os ingênuos não percebem. O mesmo manual ensina tratar-se de teoria vã a constatação de que as instituições funcionam.

Felizmente, a realidade desmente tal conjunto de ideias, cujos autores têm razão num ponto: o presidente Jair Bolsonaro adoraria estar no comando de um Brasil institucionalmente tão frágil que lhe permitisse materializar seus devaneios autoritários, mas não é assim que a banda vem tocando.

Se as tentativas presidenciais obtiveram êxitos pontuais — mas nem por isso menos importantes —, a maioria das investidas foi barrada ou rechaçada. E aqui falamos das instituições, considerando o conjunto, não atitudes individuais: Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional, Tribunal de Contas da União, Ministério Público, Polícia Federal, imprensa profissional e, mãe de todas, a opinião pública.


Há muita espuma no que se propõe o presidente. Não é fácil dissipar o fervo eivado de artificialismo devido ao seu caráter tóxico, mas não é impossível. O exemplo mais recente de espuma tóxica produzida pelo presidente e que vem sendo debelada a golpes de institucionalidade é a ameaça de arruaça pós-eleitoral travestida de preocupação com a confiabilidade do voto eletrônico.

Não há notícia de fraudes ocorridas desde a adoção dessa ferramenta de votação. Na história recente houve três de repercussão nacional: em 1982, 1990 e 1994. Todas da era da cédula de papel.

Impresso, “auditável”, confiável, seja lá o nome que se dê ao tipo de voto defendido por Bolsonaro e companhia, a ideia não é atuar em prol da confiança no resultado da votação. A intenção é disseminar a desconfiança no sistema a fim de fazer da suspeita de fraudes um antídoto para eventual derrota.

Pois muito bem. Tanto o Tribunal Superior Eleitoral — nas figuras do atual e do futuro presidente, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, respectivamente — quanto o STF e um conjunto significativo de partidos e lideranças políticas já desvendaram a tramoia.

Poderiam ter relegado o vaticínio sobre a ocorrência de “comoção social”, se não houver voto impresso, ao campo da vã perturbação mental. Mas os acontecimentos de 2018 para cá já mostraram que não se deve menosprezar (nem temer) o potencial de risco do fator Bolsonaro. Donde, organizou-se a reação.

No âmbito do Judiciário, Barroso e Moraes dedicam-se a uma cruzada constante para explicar à sociedade e aos congressistas que terão de decidir se aprovam ou desaprovam emenda constitucional para impressão dos votos, o benefício das urnas eletrônicas e os malefícios da mudança do sistema. No STF o tema já foi rejeitado duas vezes, em 2018 e 2020.

O norte político foi dado na recente manifestação de onze partidos, entre os quais três integrantes da base governista (PP, PL e Republicanos), contrários à PEC em tramitação na Câmara dos Deputados. E para que não restasse a menor dúvida sobre a clareza de propósito, as legendas trocaram seus representantes na comissão especial que examina o assunto, a fim de alterar a correlação de forças e matar no nascedouro a proposta que vinha avançando sob patrocínio da tropa bolsonarista.

O jogo dentro do Congresso está feito. No Supremo e na Justiça Eleitoral as barreiras estão postas. Resta convencer a sociedade para tornar a tese da confiabilidade de voto tão minoritária que o país consiga se precaver do que vem adiante. Sim, porque Jair Bolsonaro não vai desistir. Seguirá no confronto alegando a existência de um complô nas altas esferas da República para lhe subtrair a reeleição.

Alimentará para além de qualquer limite a impressão do forrobodó inevitável. Busca produzir desde já um terceiro turno antecipado. Faz isso com antecedência para dar tempo de repetir a mentira sobre a urdidura da fraude tantas vezes e com tal assertividade que um expressivo contingente de brasileiros passe a ver a lorota como verdade.

Nisso, seria fundamental a participação dos pretendentes à Presidência da República, venham eles a ter ou não confirmadas suas candidaturas, pois serão os principais personagens da cena política de 2022, à qual Jair Bolsonaro procura atribuir a faculdade de um ato de má-fé, com o intuito de semear a desordem e colher daí o retrocesso.

Exército: a serviço de quem?

A democracia liberal em crise no mundo – no Brasil que degrada de forma planejada o Estado Social – agora faz uma paródia de si mesma. Nesta degradação, a relação do fascismo societal, racista e escravocrata, com o escárnio da República promovido pelo Presidente Bolsonaro, chega ao momento da sua potência máxima. E este máximo – o inferno tão temido, como no conto de Onetti – ainda está incompleto. Não se sabe, ainda, se o nosso destino está tolhido pela última manifestação da Caserna ou se ele vai ser reaberto pelo que nos resta de vergonha republicana.

A nota do Ministro da Defesa, firmada pelos demais Comandantes das Forças Armadas, não tem a finalidade principal de atemorizar, mas tem um objetivo muito mais complexo: tirar a dúvida dos políticos tradicionais sobre “de quem” é o Exército: se é de Bolsonaro ou da República, como determina a Constituição.

Esta dúvida, no pensamento tutelador que a escreveu, deve ser expurgada da mente do corpo político (deve ter pensado o Ministro da Defesa) porque se ela prosperar, um militar fracassado que é Presidente, pode deixar de contaminar a caserna, que então absorverá – finalmente – que o Exército não é uma guarda pretoriana a serviço de uma família, mas uma instituição a serviço da Constituição e da Soberania Nacional.


O excelente livro de Marcia Tiburi, Complexo de vira-lata (Civilização Brasileira, 2021) é um conjunto invejável de ideias sobre a dominação e a humilhação dos brasileiros – de antes da República e de agora- que tem vários momentos de brilho. A obra ajuda na compreensão da tragédia nacional em andamento e em alguns momentos – como quando a autora discorre sobre o que designa como “Complexo de Colombo” – ilumina toda uma época. Este complexo seria no plano da subjetividade popular o modo de criar consensos, através de uma adesão formatada pela violência.

Esta seria a “matriz subjetiva fundamental que constitui o sujeito do surgimento das Américas” (…) “padrão de dominação que envolve Estado, Igrejas” (…) processo “reiterado por séculos” (…) “que é um padrão de relação com o outro, no qual não se pode dizer que haja comunicação”, (…) no qual “não se promovem trocas”, senão “a reprodução da invasão e da violência”. Nesse padrão, os indígenas e os escravos são primariamente os “outros” desconhecidos, invadidos e violentados – nas suas mentes e corpos – para serem desalojados das terras mercantilizadas e dos seus corpos tornados mercadorias.

Este padrão de dominação no capitalismo moderno envolve desde o controle da informação pelos oligopólios da mídia, a reprodução da ignorância e do charlatanismo pelas religiões fundamentalistas do dinheiro, até a eterna tutela das Forças Armadas sobre os processos políticos da democracia liberal. Esta tutela se explicita em momentos de crise, nos quais ela não informa, nem pretende intercambiar opiniões, mas quer ordenar o estado de coisas e advertir dos perigos identificáveis.

Mas quais seriam estes perigos, na paródia atual? Seria a possibilidade de que quadros militares em funções civis podem ser identificados como corruptos e tal fato poderia ferir a corporação tuteladora? Se este era o “perigo” a ser superado, o que fez a Nota – na verdade – foi promover o aumento do perigo e o esvaziamento da Constituição: os atos criminosos de militares em funções civis, se ocorreram, deveriam promover o expurgo legal destes militares e a sua punição por delitos cometidos naquelas funções civis, onde desonraram a farda e agrediram a honra das Forças Armadas e das instituições civis do Estado.

A afirmação do modo de dominação nas crises se serve, sempre, de “homens-bomba” para concentrar as culpas e simular a superação das mazelas da velha democracia liberal, que há mais de 200 anos não renova as suas instituições. Na sua etapa ultraliberal, porém, ela satisfaz as identidades pessoais dos cidadãos pelos fetichismos da igualdade no mercado, não pelo direito de participar de uma comunidade de destino na formação da nação. É o momento em que a democracia tateia em busca de uma luz, que não seja um trem no fundo do túnel, que venha tutelar as promessas da República.

Esta Nota dos militares foi o trem do momento. Tomara seja apenas uma ficção das trevas que a Constituição cidadã tentou sepultar para sempre. Pensar que os militares do país possam se conceber como guardiões do bolsonarismo demente é matar toda a esperança e acolher a possibilidade de que o “Haiti é aqui!”. Ou que estamos vivendo a entrada do Inferno de Dante, ou que o fantasma de Hitler se firme num horizonte de sangue, como um Vampiro da história, encarnando o “Complexo de Colombo”.

Neste, a humilhação deixa de ser uma tática fundamental e passa a ser a estratégia estatal da morte. Ninguém acreditava que isso fosse possível na Alemanha dos anos 1920, mas hoje estamos começando a aprender que a História pode se repetir, tanto como tragédia pura, mas também como farsa e paródia coexistindo com ela.

Fora Bolsonaro, antes que seja tarde!

Bolsonaro, a vida como desgraça

Quando Bolsonaro fez aquele discurso dizendo que a vida dele era uma desgraça, possivelmente ainda não estava consciente do que o esperava. Suas queixas eram prosaicas, como não poder tomar um caldo de cana do outro lado da rua.

À medida que o tempo passa, sua situação fica cada vez mais difícil. Não diria que a vida de Bolsonaro seja uma desgraça porque a vida, por definição, é uma graça. Mas nunca ele foi acossado por uma constelação de problemas tão sérios. A fase de negacionismo, que pode ter provocado a morte de milhares de brasileiros, já está documentada satisfatoriamente pela CPI da pandemia.

Da mesma forma, a política de estimular a destruição dos principais biomas brasileiros tornou-se um fato reconhecido no mundo. E com a queda do então ministro Ricardo Salles, o que parecia apenas uma posição retrógrada se tornou suspeita também de ser corrupção. E exatamente nesse terceiro capítulo, o da corrupção, o governo agora se move num pântano de desculpas e evasivas que não convencem ninguém.

O contrato para a compra da vacina Covaxin, conforme o próprio Tribunal de Contas acentua, começou tratando de um preço de US$ 10 a dose e terminou em US$ 15. Além disso, o negócio foi acertado com uma empresa chamada Precisa, que em outra encarnação já deu calote no Ministério da Saúde. Empresa que manda uma nota fiscal de US$ 45 milhões para ser paga a uma offshore em Cingapura e, distraidamente, cobra US$ 1 milhão por frete que, pelo contrato, deveria ser pago por ela. E, finalmente, produz documentos com erros em número de doses que jamais entregaria ao País.


Ao ser informado de tanta confusão, Bolsonaro limitou-se a dizer que aquilo era um rolo do deputado Ricardo Barros. Acontece que é um rolo de seu governo: ele próprio escreveu ao primeiro-ministro da Índia manifestando interesse na vacina, o que não fez com nenhum outro imunizante. Ao contrário, Bolsonaro desqualifica a Coronavac e insinua que a Pfizer nos transforma em jacarés.

O resultado de tudo isso é uma substancial perda de apoiadores. E mais: o surgimento de um movimento popular que ganha corpo nas ruas. Inicialmente era um movimento marcadamente de esquerda e agora se amplia para o centro e para a própria direita.

Bolsonaro aproveitou algumas ações violentas para desqualificar a presença da oposição nas ruas. Mas foram atos de violência muito suspeitos de terem sido cometidos por elementos infiltrados.

Repercutiu também uma ação do PCO, o Partido da Causa Operária, contra um grupo do PSDB que defende a diversidade. É algo também explicável: o PCO não consegue eleger ninguém e nos editoriais de seu jornal defende as manifestações homofóbicas das torcidas de futebol como liberdade de expressão. Qualquer pessoa sensata vai compreender que, na verdade, manifestações de sectarismo e homofobia não representam uma ampla frente contra Bolsonaro.

Neste momento, em que Bolsonaro está acuado, surge a discussão: pedir o impeachment ou deixá-lo sangrar? Esses termos não são contraditórios. O pedido de impeachment é um instrumento que agrega forças e ele significa um desgaste constante. Há quem afirme que o impeachment enfraquece o governante quando ele o supera no Parlamento. Mas não foi isso que aconteceu com Trump.

Quando se está num movimento descendente, quase tudo empurra para baixo. O famoso caso das rachadinhas, por exemplo, não tem efeito jurídico sobre Bolsonaro. Mas recentes gravações divulgadas pela colunista Juliana Dal Piva no site UOL mostram que Bolsonaro também contratava parentes para receber parte de seu salário. Na verdade, tudo indica que seja ele o pioneiro familiar dessa técnica, posteriormente ensinada aos filhos parlamentares.

Tudo isso serve para confirmar a tese de que Bolsonaro, ao longo de sua longa carreira, não participou de grandes esquemas de corrupção porque criou a sua própria fonte de financiamento, destinada a manter campanhas e aumentar o patrimônio pessoal, principalmente por meio da compra de imóveis.

Enfim, os dados estão na mesa, o movimento nas ruas e o prestígio de Bolsonaro declinando nas pesquisas. Tudo aponta para uma nova época cujos contornos exatos ainda não estão desenhados. O que se sabe é que futuro exclui um presidente que devastou vidas, matas e a imagem internacional do Brasil.

Chega-se a um momento em que a habilidade da oposição se torna o fator decisivo. Só uma sucessão de erros gigantescos pode tornar viável Bolsonaro nas eleições de 22. Ao menos essa é a leitura que o momento permite. Daqui para a frente ele poderá até tomar um caldo de cana do outro lado da rua. Mas sua vida política será uma desgraça.

De qualquer forma, abre-se um tempo de discussão sobre as causas da ascensão de Bolsonaro, o pensamento de seus apoiadores. Em função disso será possível descortinar um horizonte mais amplo que sua simples derrota: um esforço para que isso não mais se repita na História do Brasil .

Essa seria a prova de que, apesar de tanto sofrimento humano e destruição ambiental, pelo menos sabemos fazer a lição de casa.

Meio milhão

Meio milhão de qualquer coisa é muita coisa, umas a gente nem nota, outras a gente vai levando, algumas se atura. Meio milhão de vidas perdidas é tragédia insuportável.

Meio milhão de atestados de óbito é papel tamanho ofício que não acaba mais. Milhares e milhares de resmas que um dia foram celulose que um dia foram árvores que um dia foram matas. Meio milhão de documentos que ocuparam centenas e centenas de cartórios com milhares e milhares de tabeliães durante meses e meses.

Meio milhão de caixões é caixão pra desolar. Cada caixão precisa de uns 4m2 de madeira, aí já vão 2 milhões de m2 de madeira. Que um dia foi árvore que um dia foi floresta e que agora é um desmatamento mais doloroso que os tristes desmatamentos de sempre. E cada caixão leva uns 100 pregos, vários ornamentos e seis puxadores, feito por milhares de marceneiros que um dia tiveram muito menos trabalho.

Meio milhão de velórios, apesar de breves e quase sem presença, é velório inimaginável. Para tanto serviço fúnebre, milhares de funerárias nos 5.568 municípios brasileiros e no distrito federal atenderam dia e noite, semana após semana, mês após mês. Funerárias que nem sempre tiveram tantos clientes e faturamento tão alto em tão curto prazo.

Meio milhão de enterros é cova das mais profundas, é como desenterrar uma montanha de terra e depois ter que aterrar de novo. São sete palmos de esforço e suor de milhares e milhares de coveiros que um dia tiveram dias de folga. E muitos coveiros tiveram que enterrar corpos que um dia foram seus parentes, amigos e conhecidos. O que também vale para os crematórios, em câmaras ardentes com milhares de cerimônias semi desertas que em dias sem protocolo sanitário foram lotadas. Crematórios que consumiram gás como jamais foi consumido, que um dia foi fóssil que um dia foram animais vivos como foram os entes queridos cremados, agora cinzas e nada mais.

Meio milhão de defuntos é cadáver que não tem onde meter. Foram corpos acumulados, amontoados, empilhados nos IMLs por todo o país, atulhados em contêineres refrigerados nas maiores cidades. Tantos corpos que as 24h de cada dia foram insuficientes para infindáveis autópsias e tão exaustos legistas, embora a multiplicação funcional de milhares deles.

Meio milhão de mortos em ano e meio é falecimento incompreensível: é como se o Brasil não tivesse o SUS, a maior assistência pública à saúde no mundo. Como se a rede hospitalar não fosse tão competente e nem a medicina tão adiantada. Como se as exauridas equipes médicas e assistentes fracassassem na sua incansável dedicação 24h. É como se sacrificar no trabalho em um país onde a saúde pública foi negligenciada por um governo omisso em plena pandemia, como de fato é isso mesmo.

Meio milhão de vidas perdidas é o mesmo que um super terremoto devastasse uma cidade inteira. Como nossa geografia não tem nada com a nossa tragédia, é dor e lágrimas sem fim, sofrimento impensável para qualquer nação. Mas é também a gota d´água para a incapacidade administrativa e a desumanidade do deprimente da república. Ou o genocida cai ou não demora muito vamos chegar a um milhão de brasileiros mortos pela covid.