sexta-feira, 17 de maio de 2024
Desastres institucionais
Quais os efeitos de longo prazo do desastre no Rio Grande do Sul? Sempre iluminador, Cesar Zucco me enviou um belo artigo dos economistas Guglielmo Barone e Sauro Mocetti que dá o que pensar. O paper se vale de um daqueles experimentos naturais com que as Parcas às vezes nos presenteiam.
Em 1976, um terremoto atingiu o Friul, no nordeste da Itália. Quatro anos depois, foi a vez do distrito de Irpinia, no sul do país, ser afetado por um sismo comparável. Os efeitos imediatos foram arrasadores em escala local, mas pouco significativos no plano nacional, o que permitiu aos autores criar controles para comparar o desempenho de cada uma das áreas com o que teria acontecido caso não tivessem sofrido os tremores.
A hipótese de Barone e Mocetti é que a recuperação seria afetada pela qualidade das instituições políticas e o nível de participação da sociedade civil. Eles mediram isso através de indicadores como processos por corrupção, comparecimento eleitoral e leitura de jornais.
A devastação inicial costuma ser reduzida ou até neutralizada pela ajuda financeira. Depois, se tudo funciona direitinho, a boa alocação dos recursos na reconstrução melhora a infraestrutura, o que leva a um aumento da produtividade. Se as instituições são ruins e a vigilância é baixa, o dinheiro vai para a corrupção ou é gasto em projetos que não ampliam o PIB potencial. Desanimados, moradores podem deixar a região.
Os resultados da dupla são de encher os olhos de economistas institucionalistas. Vinte anos após o sismo, o PIB per capita do Friul, que tinha instituições melhores que a média da Itália, apresentava crescimento de 23% em relação ao controle. Já em Irpinia, de baixa institucionalidade, houve queda de 12%. Mais surpreendente, os desastres parecem ter levado a uma melhora dos indicadores institucionais no Friul e a uma piora em Irpinia.
Os próximos anos dirão se o RS está mais para Friul ou para Irpinia.
Em 1976, um terremoto atingiu o Friul, no nordeste da Itália. Quatro anos depois, foi a vez do distrito de Irpinia, no sul do país, ser afetado por um sismo comparável. Os efeitos imediatos foram arrasadores em escala local, mas pouco significativos no plano nacional, o que permitiu aos autores criar controles para comparar o desempenho de cada uma das áreas com o que teria acontecido caso não tivessem sofrido os tremores.
A hipótese de Barone e Mocetti é que a recuperação seria afetada pela qualidade das instituições políticas e o nível de participação da sociedade civil. Eles mediram isso através de indicadores como processos por corrupção, comparecimento eleitoral e leitura de jornais.
A devastação inicial costuma ser reduzida ou até neutralizada pela ajuda financeira. Depois, se tudo funciona direitinho, a boa alocação dos recursos na reconstrução melhora a infraestrutura, o que leva a um aumento da produtividade. Se as instituições são ruins e a vigilância é baixa, o dinheiro vai para a corrupção ou é gasto em projetos que não ampliam o PIB potencial. Desanimados, moradores podem deixar a região.
Os resultados da dupla são de encher os olhos de economistas institucionalistas. Vinte anos após o sismo, o PIB per capita do Friul, que tinha instituições melhores que a média da Itália, apresentava crescimento de 23% em relação ao controle. Já em Irpinia, de baixa institucionalidade, houve queda de 12%. Mais surpreendente, os desastres parecem ter levado a uma melhora dos indicadores institucionais no Friul e a uma piora em Irpinia.
Os próximos anos dirão se o RS está mais para Friul ou para Irpinia.
A falta de representatividade no Brasil
A representatividade no mundo está em baixa. As teorias de democracia, que previam a eleição dos melhores, a representatividade dos grupos sociais, e a distribuição de renda, falharam. Na concentração do capital, a distância entre os ricos e os pobres inviabiliza a democracia, desterrados pela ignomínia do nada.
Vejamos o Brasil. O Brasil é a 9ª economia do mundo, com PIB estimado em US$ 2,1 trilhões em 2023. Em renda per capita, estamos na 63ª colocação, com US$ 11.073,00 anuais. No IDH, que mede a qualidade de vida em função de bens e serviços para 191 países, estamos na 87ª posição. No índice de GINI, que mede a distribuição de riqueza para 162 países, estamos na 154ª posição. No PISA, que mede o desempenho de alunos do ensino médio em 81 países, o Brasil encontra-se na 52ª posição em leitura, 61ª em ciências, e 65ª em matemática. Onde pode estar a nossa democracia?
As Emendas Parlamentares são o maior indicador da dissensão social. Em 2014, com Dilma, o valor total das Emendas Parlamentares atingiu R$ 10 bilhões; em 2017, com Temer, R$ 15 bilhões; em 2020, com Bolsonaro, R$ 35 bilhões; neste ano de 2024, com Lula, chegamos a R$ 55 bilhões.
O Orçamento da União para 2024 é de R$ 5,5 trilhões. Destes, 95% estão comprometidos com gastos correntes, como pessoal, dívida pública, e outras despesas comprometidas. O total previsto para investimentos é de R$ 279 bilhões, 5% do orçamento total. Destes, R$ 151 bilhões são para investimentos em estatais, 2,7% do orçamento total. Sobram, portanto, R$ 128 bilhões para investimentos de livre alocação, 2,3% do orçamento total. Destes, R$ 73 bilhões são para investimentos pelo Executivo, e R$ 55 bilhões em Emendas Parlamentares. Ou seja, dos R$ 128 bilhões para investimento de livre alocação, 57% são por parte do Governo, e 47% por parte dos Parlamentares. Em percentuais, no total do Orçamento da União, 1,4% é para investimentos pelo Governo, e 1,0% pelos Parlamentares. Ou seja, 1,0% do total do Orçamento da União cabe à alocação pelos 594 Senadores e Deputados no Congresso, equivalente a R$ 92,5 milhões em aplicações “per capita”. Um desvio de função. Assim, sobra pouco tempo para se pensar na população.
Caso exacerbado o do Brasil. Como se diz no dito popular, “ninguém aguenta”.
Vejamos o Brasil. O Brasil é a 9ª economia do mundo, com PIB estimado em US$ 2,1 trilhões em 2023. Em renda per capita, estamos na 63ª colocação, com US$ 11.073,00 anuais. No IDH, que mede a qualidade de vida em função de bens e serviços para 191 países, estamos na 87ª posição. No índice de GINI, que mede a distribuição de riqueza para 162 países, estamos na 154ª posição. No PISA, que mede o desempenho de alunos do ensino médio em 81 países, o Brasil encontra-se na 52ª posição em leitura, 61ª em ciências, e 65ª em matemática. Onde pode estar a nossa democracia?
As Emendas Parlamentares são o maior indicador da dissensão social. Em 2014, com Dilma, o valor total das Emendas Parlamentares atingiu R$ 10 bilhões; em 2017, com Temer, R$ 15 bilhões; em 2020, com Bolsonaro, R$ 35 bilhões; neste ano de 2024, com Lula, chegamos a R$ 55 bilhões.
O Orçamento da União para 2024 é de R$ 5,5 trilhões. Destes, 95% estão comprometidos com gastos correntes, como pessoal, dívida pública, e outras despesas comprometidas. O total previsto para investimentos é de R$ 279 bilhões, 5% do orçamento total. Destes, R$ 151 bilhões são para investimentos em estatais, 2,7% do orçamento total. Sobram, portanto, R$ 128 bilhões para investimentos de livre alocação, 2,3% do orçamento total. Destes, R$ 73 bilhões são para investimentos pelo Executivo, e R$ 55 bilhões em Emendas Parlamentares. Ou seja, dos R$ 128 bilhões para investimento de livre alocação, 57% são por parte do Governo, e 47% por parte dos Parlamentares. Em percentuais, no total do Orçamento da União, 1,4% é para investimentos pelo Governo, e 1,0% pelos Parlamentares. Ou seja, 1,0% do total do Orçamento da União cabe à alocação pelos 594 Senadores e Deputados no Congresso, equivalente a R$ 92,5 milhões em aplicações “per capita”. Um desvio de função. Assim, sobra pouco tempo para se pensar na população.
Caso exacerbado o do Brasil. Como se diz no dito popular, “ninguém aguenta”.
Ainda há só rebanho
A comunidade é uma coisa muito bela. Mas o que vemos florescer agora não é a verdadeira comunidade. Essa surgirá, nova, do conhecimento mútuo dos indivíduos e transformará por algum tempo o mundo. O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais… E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios impulsos interiores. Uma comunidade formada por indivíduos atemorizados com o desconhecido que levam dentro de si. Sentem que já periclitaram todas as leis em que baseiam suas vidas, que vivem conforme mandamentos antiquados e que nem sua religião nem sua moral são aquelas de que ora necessitamos.
Hermann Hesse
Hermann Hesse
A era das catástrofes
As enchentes diluvianas que devastam o Rio Grande do Sul, somadas a outros desastres ambientais em todo o planeta, não deixam dúvida: vivemos uma era de eventos catastróficos que só tendem a se ampliar e se intensificar. Mesmo assim, os governantes e as sociedades se comportam como ébrios delirantes que caminham alegremente para o abismo.
Não existem mais dúvidas científicas de que essa era é provocada pela ação depredadora dos seres humanos. Catástrofes ambientais ocorreram no passado, mas, pela primeira vez na história do planeta, as violentas mudanças ambientais são provocadas pelas ações humanas. O antropocentrismo tem gerado o caminho de uma mudança de era geológica, caracterizada como Antropoceno. Embora o Comitê da União Internacional de Ciências Geológicas, em votação realizada em fevereiro de 2024, tenha recusado reconhecer a presente era como Antropogênica, muitos cientistas e pesquisadores argumentam que as evidências e as marcas das ações humanas no planeta legitimam a adoção da tese.A tese do Antropoceno foi formulada em 2000 pelo químico e Prêmio Nobel holandês Paul Crutzen. O Antropoceno expressa a ideia de uma nova era, na qual o ser humano tornou-se a força impulsionadora da degradação ambiental e catalisadora das condições para a catástrofe ecológica. Essa dimensão da crise é consequência da cisão que as pessoas promoveram entre o humano, a vida e o planeta. Todo o sistema de mediações socioeconômicas passou a basear-se apenas no jogo de interesses desmedidos e sem critérios de indivíduos, grupos (classes), nações e povos. A vida, a natureza, as espécies e o planeta passaram a ser considerados instrumentos e meios dos interesses socioeconômicos dos humanos.
O modo de produção capitalista, com suas variantes, é a causa principal da destruição ecológica e da degradação socioambiental. Os paradigmas teóricos, as construções do conhecimento e os padrões industriais e tecnológicos geraram modelos de desenvolvimento depredadores, orientados para a maximização do lucro no curto prazo, a expansão ilimitada do consumo, o crescimento descontrolado da mão de obra e das populações, gerando pesados custos aos sistemas sociais e naturais.
A degradação ambiental, que provoca a morte entrópica do planeta, é resultado de uma concepção de mundo, de formas de conhecimento científico, social e religioso com que a humanidade construiu um mundo no qual se destrói a natureza e mantém bilhões de indivíduos na pobreza. O parâmetro principal da medida de todas as coisas não é a vida ou o bem-estar, mas o lucro rápido.
A combinação das variantes do modelo econômico depredador, do crescimento demográfico e do modelo industrial e tecnológico gerou um processo descontrolado que rompeu os limites da sustentabilidade do planeta. Esse modelo chegou ao limite e tornou-se incompatível com os fundamentos da continuidade adequada da vida na Terra. A agressividade da ação humana sobre e contra a natureza bloqueou a capacidade de regeneração dos ecossistemas. Esse descontrole violento compromete os objetivos econômicos e sociais do próprio sistema depredador.
Vários estudos apontam um limite do crescimento econômico, que não pode mais continuar indefinido. A violência e a velocidade da transformação dos recursos naturais e os resíduos nefastos que produzem são muito mais rápidas do que a capacidade de recuperação, regeneração e reposição da natureza. Tudo isso se agrava quando nos deparamos com políticos e governantes que praticam o negacionismo, outros que se omitem em adotar as medidas urgentes e necessárias para mitigar os efeitos desastrosos das mudanças climáticas e em adotar medidas de resiliência nas cidades, no campo e na produção.
O próprio governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, tem patrocinado ações de teor criminoso contra o meio ambiente. Nos últimos anos, promoveu cortes absurdos no orçamento da Defesa Civil e nos projetos de resposta a desastres ambientais. Em 2019, propôs um projeto que alterou 480 pontos do Código Florestal estadual. A prefeitura de Porto Alegre não investiu nenhum centavo na prevenção contra enchentes em 2023. Já em Brasília, em março, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, com 38 votos a favor e 18 contra, um projeto que permite devastar campos nativos do tamanho do Rio Grande do Sul e do Paraná juntos.
Os políticos negacionistas e aqueles que agem para afrouxar a legislação de proteção ambiental deveriam passar a ser vistos como criminosos pela sociedade. Eles devem ser denunciados de forma ampla para que paguem o preço de seus crimes contra a sociedade, contra a vida, contra as espécies e contra a natureza.
A ocasião e a maldade
É inegável que a ocasião faz o ladrão, mas não é a única coisa que a ocasião faz.
O argumento da tentação é moralmente duvidoso – não é só por encontrar uma carteira cheia de dinheiro que somos tentados a roubar – mas funciona, porque todos somos capazes de imaginar o ladrão preguiçoso que é incapaz de dar um passo para roubar, mas não resiste quando é Deus Nosso Senhor a pôr-lhe as pérolas da marquesa no caminho.
“Estava mesmo ali à mão de semear” é uma desculpa que põe os juízes de todo o mundo a bocejar. As pessoas que sorriem quando a ouvem, ou quando lêem Oscar Wilde a dizer que resiste a tudo menos à tentação, já acharão menos graça quando é o violador a dizer que a vítima estava de minissaia.
Mas o argumento é sempre o mesmo: um homem não é de ferro e a ocasião é que faz o ladrão, pelo que, no fundo, senhor doutor juiz, a culpa não é só minha!
Na minha vida, tenho-me espantado com pessoas que, não sendo sempre maldosas, são capazes de actos de grande maldade. Se calhar, também elas não resistem à tentação de ser más. A diferença é que não podem ser apanhadas, nem apresentadas a nenhum juiz – precisamente porque só são más quando pressentem que não há maneira de serem castigadas.
Estas maldosas ocasionais são moralmente piores do que as maldosas permanentes, porque estas últimas não têm remédio e é fácil detectá-las e evitá-las.
São más quando têm a faca e o queijo na mão. Não resistem à vertigem da desigualdade. Abusam sempre que o abuso é possível – e indetectável. Isto é, abusam sempre que o abuso não impede que possam continuar toda a vida a abusar.
Diriam estas pessoas, caso pudessem ser chamadas à pedra, que é a ocasião que faz a maldade? Que são como criancinhas, com a crueldade das criancinhas, mas também a inocência?
A verdade é que as ocasiões só despertam o que já lá está. Acontece a mesma coisa com o bem: há muita gente que agradece uma oportunidade de ajudar os outros. A tentação nunca tem culpa.
O argumento da tentação é moralmente duvidoso – não é só por encontrar uma carteira cheia de dinheiro que somos tentados a roubar – mas funciona, porque todos somos capazes de imaginar o ladrão preguiçoso que é incapaz de dar um passo para roubar, mas não resiste quando é Deus Nosso Senhor a pôr-lhe as pérolas da marquesa no caminho.
“Estava mesmo ali à mão de semear” é uma desculpa que põe os juízes de todo o mundo a bocejar. As pessoas que sorriem quando a ouvem, ou quando lêem Oscar Wilde a dizer que resiste a tudo menos à tentação, já acharão menos graça quando é o violador a dizer que a vítima estava de minissaia.
Mas o argumento é sempre o mesmo: um homem não é de ferro e a ocasião é que faz o ladrão, pelo que, no fundo, senhor doutor juiz, a culpa não é só minha!
Na minha vida, tenho-me espantado com pessoas que, não sendo sempre maldosas, são capazes de actos de grande maldade. Se calhar, também elas não resistem à tentação de ser más. A diferença é que não podem ser apanhadas, nem apresentadas a nenhum juiz – precisamente porque só são más quando pressentem que não há maneira de serem castigadas.
Estas maldosas ocasionais são moralmente piores do que as maldosas permanentes, porque estas últimas não têm remédio e é fácil detectá-las e evitá-las.
São más quando têm a faca e o queijo na mão. Não resistem à vertigem da desigualdade. Abusam sempre que o abuso é possível – e indetectável. Isto é, abusam sempre que o abuso não impede que possam continuar toda a vida a abusar.
Diriam estas pessoas, caso pudessem ser chamadas à pedra, que é a ocasião que faz a maldade? Que são como criancinhas, com a crueldade das criancinhas, mas também a inocência?
A verdade é que as ocasiões só despertam o que já lá está. Acontece a mesma coisa com o bem: há muita gente que agradece uma oportunidade de ajudar os outros. A tentação nunca tem culpa.
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