Uma sociedade de consumo como a nossa produz mais (muito mais) do que necessita, e desperdiça grande parte do que produz.
Se a Cultura age assim, a Contracultura teria que lançar um contraponto. Viver do desperdício alheio seria, então, uma estratégia legítima, do ponto de vista econômico e do ponto de vista moral.
E não apenas do desperdício, mas das incontáveis brechas que um sistema como esse abre dentro de si mesmo.
Numa crônica publicada na revista Locus (# 582, julho de 2009), Cory Doctorow lembra:
Eu tinha 15 anos quando me caiu nas mãos uma cópia ensebada de Steal This Book, a obra clássica de Abbie Hofmann, um manual ensinando a cair fora do sistema, sobreviver a custo zero, e aplicar pequenos golpes. O livro estava repleto de dicas fascinantes: como produzir o som que liberava a linha para ligações interurbanas nos telefones públicos, como organizar a loja de uma cooperativa, como reciclar pneus fabricando sandálias, como produzir um jantar saqueando as latas de lixo de um restaurante. Fiquei fascinado, e naquele verão reli o livro uma dúzia de vezes.
Doctorow nasceu no ano em que o livro foi publicado, 1971, o que atesta a permanência da mentalidade contracultural que o produziu. Canibalizar os excessos do sistema é uma opção quase inevitável para quem não apenas se recusa a trabalhar para ele, mas precisa também dar-lhe algum prejuízo, ainda que num gesto meramente simbólico e pessoal.
Há outro aspecto mais preocupante. No meio século desde o livro de Abbie Huffmann, acho que o consumismo passou por uma mudança – para pior. Houve uma fase em que a compra descontrolada de coisas era tratada como um problema comportamental, principalmente nos EUA. Hoje, é um apocalipse coletivo.

Os norte-americanos não sabem o que fazer com tanto dinheiro, ou melhor, sabem: comprar coisas desnecessárias e depois jogá-las fora. Produziram para si mesmos uma civilização em que o prazer de Ter tornou-se maior que o de Fruir, e ambos são menores que o de Comprar. É o mundo da shopping-terapia, onde tantas neuroses são empurradas para baixo do tapete, e toda semana compra-se um tapete novo.
Lembro de uma época em que uma mulher com mais de dez pares de sapatos era apelidada de “Imelda Marcos” – nome da mulher do ditador das Filipinas, possuidora de mais de 1.000 pares de sapatos. Ter muitas bolsas, muitos vestidos, muitos ternos, muitas gravatas, tudo isso era o pecado do consumismo.
E não apenas os burguesões acomodados cediam a isso, porque no mundo artístico o que nunca faltou foram casas com mais de 3 mil DVDs, mais de 4 mil discos, mais de 5 mil livros, e assim por diante. Perdi a conta das cenas de filme ou livro em que uma esposa jovem pergunta, em desespero: “Querido, você precisa mesmo de uma décima-quinta guitarra?...”
Cada um gasta seu dinheiro como bem entende, diz a sabedoria popular enxugando as mãos junto à bacia de Pilatos. A questão é que hoje, cinquenta anos depois, o que era neurose individual e talvez inofensiva tornou-se uma psicose coletiva de dimensões catastróficas.
É impossível não achar isto quando se vê um filme como o documentário de Nic Stacey, A Conspiração Consumista (Netflix). O filme mostra em etapas sucessivas o gigantismo da máquina de consumo desenfreado que hoje em dia arrasta o mundo pelos pés. Ninguém escapa: Amazon, Unilever, Apple, Adidas são apenas algumas das empresas cujos ex-executivos são entrevistados no filme e abrem o jogo, sempre no tom de “eu não consegui continuar colaborando com aquilo”.
Na verdade, o consumismo não é uma conspiração, assim como não há conspiração alguma quando todas as pessoas de um barco correm para o mesmo lado e o fazem virar. É apenas “a natureza da fera”, é o escorpião que morre afogado mas precisa ferrar o sapo que o transporta.
Cada empresa procura apenas maximizar seus lucros, e todas pagam excelentes salários a pessoas inteligentes para que lhes tragam as soluções mais radicais.
O filme resume em cinco partes essas soluções:
1. Vender mais
2. Mentir mais
3. Desperdiçar mais
4. Ocultar mais
5. Controlar mais
“Compre, compre, compre”, repetem mecanicamente, invisivelmente, as mensagens espalhadas pelo mundo inteiro, lembrando os códigos subliminares do filme They Live de John Carpenter.
E os resultados são ótimos, nos gráficos apresentados aos acionistas, e nos depósitos de dividendos. Mas o mundo está sendo cada vez mais soterrado por esse excesso de produção. São pessoas gastando um dinheiro que (às vezes) não têm para comprar coisas de que não precisam – precisam do ato de comprá-las, e depois as coisas serão jogadas fora, descartadas, queimadas, enterradas, não importa. Importa que a compra aconteceu.
No filme, Mara Einstein comenta: “Se você tiver que levantar da cama, pegar o carro, ir à loja, escolher o produto, pagar no caixa, trazer o pacote... isso é muito trabalhoso. Mas agora você pode Comprar Com Um Clique e o pacote é trazido até a porta de sua casa.”
As estatísticas que eles compartilham são curiosas.
2,5 milhões de sapatos produzidos por hora
68.733 celulares produzidos por hora
190.000 peças de vestuário por minuto
12 toneladas de plástico por segundo
13 milhões de celulares jogados fora todos os dias
Não sei se são verdadeiras, mas são verossímeis, o que já é um alerta. Sabemos que o mundo é capaz disto.
A “obsolescência programada” encurta a vida útil dos produtos para que eles possam ser comprados mais vezes. E a empresa não pode correr o risco de que os que vão para o descarte (os que ninguém comprou) vão parar nas mãos de mendigos ou de desocupados. É preciso danificá-los, torná-los inúteis, uma coisa que ninguém queira, ninguém aproveite. Há funcionários encarregados apenas de inutilizar as peças que vão para o descarte, rasgando roupas, malas, casacos; quebrando telas de aparelhos; riscando mídias eletrônicas, etc. É preciso inutilizar antes de descartar.
Anna Sacks (@thetrashwalker) é uma entrevistada que se dedica a tentar recuperar alguma parte desse material, catando produtos descartados e jogados no lixo. Sua atividade faz um link interessante com outro filme, Os Catadores e Eu (2000) de Agnès Varda. Nesse documentário, a diretora francesa investiga e entrevista, em princípio, os glaneurs, pessoas que catam frutas, legumes, etc., não recolhidos nas colheitas. A partir daí, vai fazendo conexões com outras ocupações paralelas, até chegar a um grupo de jovens estudantes meio sem-teto que saqueiam o lixo de um supermercado atrás de comida.
Um velho ditado popular fala que só existem ricos onde há pobres, e vice-versa. Não é só o futuro que está mal distribuído, como queriam os escritores cyberpunk; o presente também.
Cui bono – é uma pergunta clássica que sempre incomoda um pouco. “A quem isto beneficia?”. Um sistema de desperdício proposital é tão suicida (em termos coletivos) que deve ser útil para alguém, na mesma proporção. Em nosso caderno há nomes famosos: Jeff Bezos (que aparece nesse documentário da Netflix), Elon Musk, Bill Gates e outros. Mas estes são apenas os que cabem no círculo estreito dos holofotes. E os milhares que ficam na sombra?
O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta a história de uma mulher riquíssima que tenta manter-se eternamente jovem, e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira (“She”, 1887) de H. Rider Haggard.
John Brunner faz uma reflexão, neste conto, sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.)
Diz ele:
“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)
“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.
“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos” Braulio Tavares
Uma das operações discursivas mais bem-sucedidas das últimas décadas foi a transformação semântica da precarização do trabalho no palatável e amplo termo de "empreendedorismo". O que antes era inequivocamente reconhecido como degradação das condições mínimas de qualidade laboral ganhou uma nova roupagem linguística e um verniz midiático que não apenas mascarou a realidade, mas a tornou desejável aos mais incautos.
O chamado “rebranding” que é o ato de ressignificar a imagem de uma empresa ou produto, ou seja, uma estratégia planejada, cujo objetivo é mudar a percepção do público com relação à marca. No caso da transformação de precarização do trabalho em empreendedorismo foi profundamente exitosa, a instabilidade virou "flexibilidade". A ausência total de direitos trabalhistas se tornou "liberdade". A transferência integral do risco econômico para o trabalhador foi rebatizada como "ser dono do próprio negócio". As jornadas sem limite se transformaram em "mentalidade empreendedora". A falta de proteção social passou a ser "autonomia profissional".
Esta não foi uma mudança acidental de vocabulário, mas uma estratégia deliberada de ressignificação. O discurso empreendedor capturou aspirações legítimas da humanidade, como, autonomia, criatividade, realização pessoal, controle sobre a própria trajetória, e as utilizou para legitimar condições de trabalho que, sob qualquer outro nome, seriam consideradas inaceitáveis e que haviam sido superadas há muito tempo por lutas históricas.

O aspecto mais perverso desta operação é sua dimensão psicológica, ao transformar precarização em empreendedorismo, o sistema transferiu não apenas os riscos econômicos, mas também a responsabilidade moral para o indivíduo. Se você não prospera como "empreendedor", não é porque as condições estruturais são adversas é porque você não teve a "mentalidade certa", não foi suficientemente "resiliente", não se esforçou o bastante. então a culpa é toda sua, e não do sistema, muito menos do verdadeiro dono do negócio que são bilionárias empresas que operam os aplicativos.
Esta narrativa individualiza problemas que são fundamentalmente coletivos e estruturais no capitalismo. Ela impede a formação de consciência de classe ao transformar trabalhadores precarizados em "pequenos empresários" que competem entre si, em vez de se organizarem coletivamente por melhores condições de trabalho exigindo melhorias de quem realmente lucra com o modelo de negócios.
O sucesso desta operação discursiva foi notável, mesmo pessoas com formação crítica, que em outros contextos identificariam facilmente processos de exploração dos trabalhadores, passaram a reproduzir e celebrar a nova linguagem empreendedora. Cursos superiores criaram disciplinas de "empreendedorismo". Políticas públicas adotaram o vocabulário da "economia criativa" e do "microempreendedorismo", todos reproduzindo ativamente o manual de repaginação do trabalho precário e sem garantias. A própria esquerda, muitas vezes, abraçou acriticamente estas narrativas, falando em "empreendedorismo social" ou "economia solidária" sem perceber que, ao fazê-lo, legitimava a lógica primária do que pretendia ou deveria combater.
Logicamente Isso não significa que todo empreendedorismo seja uma farsa ou que não existam casos genuínos de inovação e criação de valor de jornadas pessoais. Há diferenças qualitativas entre o pequeno comerciante que constrói um negócio sólido, o inovador que desenvolve soluções originais, e o trabalhador uberizado que "empreende" para sobreviver sem direitos e apenas com muitos deveres sem nem perceber que os tem em abundancia, mas sem a contrapartida dos direitos.
O problema surge quando o termo "empreendedorismo" é usado indiscriminadamente para descrever situações que são, na essência, trabalho assalariado disfarçado ou a precarização pura e simples. Quando um entregador de aplicativo é chamado de "parceiro empreendedor" enquanto trabalha 12 horas por dia sem férias, 13º salário, licença paternidade ou maternidade, em um regime de escala de trabalho de 7x7, estamos diante de um eufemismo que serve apenas para nublar a mais que hedionda exploração.
Reconhecer e desmontar esta operação discursiva é mais que um exercício acadêmico, é uma urgência política. Palavras não são neutras elas moldam o que vemos, o que aceitamos e até o que ousamos contestar. Quando aceitamos chamar de “empreendedor” quem, na prática, é privado de direitos fundamentais e submetido a jornadas brutais, naturalizamos a desigualdade e colaboramos com sua perpetuação.
A tarefa agora é dupla: devolver às palavras seu sentido real e reconstruir o imaginário coletivo sobre o que é trabalho digno. Isso significa expor, sem eufemismos, cada instância em que a exploração se disfarça de “autonomia”, e recolocar o debate sobre direitos trabalhistas no centro da agenda pública. Esse debate vem sendo perdido a quase uma década, a reforma trabalhista aprovada em 2016 que foi vendida como a panaceia que resolveria todas questões fundamentais do desemprego, apenas desobrigou os patrões e não criou nenhuma onda de empregabilidade, pelo contrário, desempregou milhares e alguns que viriam a ser recontratados voltaram sob as novas condições impostas pela reforma que esmagou seus direitos.
Não basta indignar-se em privado é preciso disputar o vocabulário, os símbolos e as narrativas, seja nas ruas, nas redes, nas escolas, nas mesas de negociação, igrejas. Somente assim a promessa de liberdade e autonomia deixará de ser retórica vazia e poderá se tornar conquista concreta, o contrário disso é aceitar viver num país onde “empreender” virou sinônimo de sobreviver sozinho, carregando nas costas o peso de um sistema perverso que só muda para nadar mudar.
A história das sociedades humanas é também a história das batalhas invisíveis por símbolos e significados; por séculos, reis, impérios e religiões compreenderam que a força mais duradoura não se exerce apenas pela espada ou pelo decreto, mas pela capacidade de impregnar o imaginário coletivo com imagens, narrativas e crenças que parecem naturais, inevitáveis e eternas. Hoje, a extrema-direita compreendeu com uma nitidez impressionante que o verdadeiro poder se consolida quando se controla não apenas o que as pessoas pensam, mas como elas sentem diante das palavras, das bandeiras, das cores e dos gestos; que um símbolo carregado de emoção pode mover mais do que uma biblioteca inteira de argumentos.

Se, como ensinou Walter Benjamin, todo ato de transmissão cultural é também um ato político, então é preciso reconhecer que a guerra do nosso tempo não se trava apenas no parlamento ou nas urnas, mas nas ruas e nas redes, nos slogans e nas canções, nas metáforas que traduzem e distorcem a realidade. A extrema-direita compreendeu que cada hashtag é uma trincheira, que cada meme é uma flecha, que cada mito fabricado pode se infiltrar como verdade indiscutível nos recantos mais íntimos da consciência coletiva; e nós, tantas vezes, ficamos aprisionados na ingenuidade de repetir, corrigir, refutar, sem perceber que, ao fazê-lo, reforçamos os mesmos marcos simbólicos que nos aprisionam.
Pierre Bourdieu nos alertou sobre o poder invisível que se exerce através da linguagem, dos hábitos e dos rituais; esse poder que se disfarça de neutralidade e se apresenta como senso comum, mas que é, na verdade, um campo de disputa feroz. Quando a extrema-direita escolhe vestir-se de guardiã da tradição, da pátria e da família, ela não está apenas oferecendo um programa político, mas erguendo um altar simbólico ao redor do qual convoca devoção; e cada imagem, cada palavra e cada gesto são armas cuidadosamente calibradas para moldar um mundo que parece dado, mas que é profundamente fabricado.
Aqueles que se opõem a esse avanço muitas vezes se dedicam a apontar erros factuais, desmontar estatísticas distorcidas ou denunciar contradições; esquecem que o terreno decisivo dessa batalha é afetivo e imaginário. Hannah Arendt nos lembraria que a verdade política não se sustenta apenas na comprovação, mas na capacidade de se enraizar no mundo como algo que as pessoas sintam como real; e isso só se conquista quando se aprende a criar símbolos que não apenas informem, mas toquem e transformem.
Max Weber descreveu a política como a lenta perfuração de tábuas duras; mas, antes de perfurá-las, é preciso identificar de que madeira elas são feitas, quais fissuras já existem, quais imagens colam na sua superfície e quais não têm aderência. Disputar sentidos é aprender a trabalhar na gramática das emoções coletivas, compreender que um símbolo não é apenas um adorno do discurso, mas o próprio campo onde a disputa se decide; e que uma palavra, se dita com a imagem e o gesto certos, pode tornar-se um estandarte que arrasta multidões.
A resistência que se recusa a entrar nessa arena condena-se à irrelevância; quem se limita a reagir a símbolos alheios aceita as regras do jogo impostas pelo adversário. É preciso criar narrativas próprias, resgatar imagens ancestrais e reinventar outras; como ensinou Ernst Cassirer, o ser humano é, acima de tudo, um animal simbólico; portanto, abandonar essa dimensão equivale a abandonar a própria essência da política.
Erich Fromm, ao refletir sobre a liberdade, nos mostrou que as pessoas não apenas buscam emancipar-se, mas também anseiam por referências, por sinais que as orientem no caos do mundo moderno; e a extrema-direita soube oferecer esses sinais com uma força emocional capaz de suplantar qualquer racionalidade. A esquerda e os democratas, ao negligenciarem esse território, deixam órfãos aqueles que buscam pertencimento; e sem símbolos que sustentem o afeto e a identidade, qualquer projeto político se torna frágil diante da retórica sedutora do autoritarismo.
É nesse ponto que a música, as telenovelas, a literatura, as paixões populares e o entretenimento cotidiano revelam-se não como meros adornos culturais, mas como chaves poderosas de compreensão e abertura para o mundo dos sentidos; nelas, vivem e respiram símbolos arraigados ao coração da maioria da população no Brasil inteiro. Uma canção pode condensar décadas de dor e esperança; uma novela pode traduzir dramas sociais em tramas íntimas que falam à alma; um romance pode tornar palpável a dignidade ou a humilhação de um povo; um time de futebol pode ser o estandarte emocional de comunidades inteiras. No Brasil, artistas como Arlindo Cruz, compositor, sambista e cronista das emoções populares da cidade do Rio de Janeiro, mostram que é possível produzir sentido, compreensão, simpatia e emoção de forma tão profunda que sua obra se torna um território de pertencimento para milhões. Ele é exemplo de como a cultura popular, quando atravessa a vida cotidiana, molda a forma como as pessoas percebem o mundo e a si mesmas. Quem ignora essa dimensão simbólica abdica de dialogar com o campo mais fértil da imaginação coletiva; quem despreza a cultura popular despreza o próprio chão onde se formam as identidades e os afetos que movem a política.
Não basta achar, é preciso compreender; e compreender é mais do que decifrar intenções ou calcular interesses; é aprender a ver que cada bandeira hasteada, cada música entoada, cada cor escolhida, cada trama televisiva assistida por milhões, está inscrita em um mapa de significados onde se definem lealdades e inimizades. Aquele que conhece essa cartografia sabe que as palavras não são inocentes e que a disputa por elas é, ao mesmo tempo, a disputa por mundos possíveis; e que, sem ocupar esse território, qualquer vitória será apenas provisória e frágil.
A disputa simbólica exige persistência, imaginação e coragem; exige a capacidade de falar para além das convicções já consolidadas, de penetrar no imaginário daqueles que ainda não se decidiram e de oferecer-lhes algo mais profundo do que um argumento correto: oferecer uma narrativa que faça sentido para sua vida, que conecte sua experiência cotidiana a um horizonte coletivo. Nessa disputa, o que está em jogo não é apenas a política, mas a própria noção de verdade, de justiça e de humanidade. Por isso, a pergunta que se coloca é urgente: vamos continuar repetindo discursos prontos, sempre respondendo aos símbolos dos outros, ou vamos aprender a criar os nossos; símbolos que inspirem, que encantem, que convoquem; símbolos que façam do ato político não apenas um cálculo, mas uma experiência de pertencimento, de esperança e de transformação? Quem domina os símbolos não apenas vence eleições; molda o horizonte do que é possível imaginar e, portanto, do que é possível viver. E é aí que se decide o futuro.
Tenho receio que os brasileiros de um modo geral ainda não se deram conta de que as tarifas do Presidente americano não são algo cujos efeitos vão se dissipar com o tempo. Elas são uma mudança permanente no comércio e na economia do mundo, que deve sobreviver ao poder imperial de Donald Trump.
O nível médio das tarifas americanas a esta altura do processo está estimado em 18%, nove vezes mais alto do que a média de 2% que vigorava antes. No entanto, para além do nível inédito das tarifas, uma mudança muito mais importante está ocorrendo no sistema de comércio, que tem tudo para se tornar irreversível. O princípio fundamental do comércio internacional baseado em regras é o que determina que tarifas são impostas sobre bens e não sobre os países de origem. Se o Brasil, por exemplo, taxar a importação de automóveis americanos em 10%, estará obrigado a estender a mesma tarifa sobre a importação de automóveis de todas as origens, sem discriminar nenhum país.

Há mais de um século o comércio internacional vem sendo regido por esta regra. Ao tratar cada país, e não cada mercadoria, de um modo separado, Trump fez ruir a única regra que organizava o comércio entre os países, e, uma vez em ruinas, o comércio internacional nunca mais será o mesmo. Portanto, aqueles brasileiros que, por alguma perversão cognitiva, estão torcendo a favor das tarifas, à espera de benefícios imediatos, é preciso que sejam advertidos que os seus efeitos podem durar muito tempo, se não para sempre, e as vítimas seremos todos.
Além do desmoronamento do sistema de comércio, é preciso ter em conta que tarifas, uma vez erguidas, são muito difíceis de serem revogadas. A economia americana vai se acostumar com a nova realidade tarifária e um novo sistema de interesses vai se constituir à sua sombra, pronto para compor no futuro uma barreira de resistência à sua anulação. A ideia, tal como exposta sem meias palavras por Jamieson Greer, a mais alta autoridade de comércio americana, em artigo, é eliminar sistematicamente todas as barreiras às exportações americanas no exterior e, ao mesmo tempo, assegurar proteção tarifária à toda produção dos Estados Unidos.
A história das tarifas sobre as exportações brasileiras está apenas começando. Em algum momento haverá alguma negociação sobre o tema exclusivo do comércio. Que negociação será essa? A melhor pista que temos são os acordos que estão sendo fechados e seus termos têm sido sistematicamente assimétricos, quase leoninos. Três exemplos recentes são a Indonésia, a Tailândia e o Vietnã. Os dois primeiros foram ameaçados com tarifas de 32 e 36%, enquanto o Vietnã com 46%. Concluídos apressadamente os acordos, as tarifas sobre as exportações desses países foram reduzidas para 19%. Em troca foram obrigados a retirar todas as tarifas e todas as barreiras não tarifárias para as exportações dos Estados Unidos, abrindo completamente seus mercados e expondo à destruição a sua indústria.
O Brasil, quando negociar, vai partir de uma tarifa maior, de 50%. Se for mantido o padrão dos acordos e ainda conforme as palavras do Ministro americano, para que nossas tarifas se reduzam para 25 ou 20%, ainda muito altas, não há dúvida de que nos será exigida a abertura total de nosso mercado para as exportações americanas. Se concordarmos, exporemos nossa indústria, e até setores do agronegócio, a uma competição desigual.
Na hipótese de zerarmos as tarifas para os Estados Unidos, o que faremos com nossos parceiros comerciais, a China e a União Europeia, por exemplo, que não nos agridem com suas tarifas? Se lhes dermos o mesmo tratamento, será o fim da indústria brasileira. Se não dermos, eles certamente vão retaliar nossas exportações e ficaremos irremediavelmente isolados. Por isso, em termos puramente comerciais, talvez um acordo com Trump não seja possível para nós.
Os cenários que estão à nossa frente apontam para várias hipóteses de desastre. Será isto suficiente para contentar todos os maus brasileiros a quem a política cegou? Ou ainda teremos, além disso, de vender nossa soberania?
Sob Donald Trump, o governo dos Estados Unidos retomou a pior tradição da política externa norte-americana para a América Latina. Se sob Barack Obama e Joe Biden predominava o desinteresse, Trump volta a tentar impor a vontade de Washington à região. Insere-se, assim, na linha da política imperialista que, ao longo do século 20, resultou em ditaduras, guerra civis, miséria, deslocamentos forçados e sociedades desestruturadas.
Trump impôs ao Brasil tarifas de 50% para pressionar pela suspensão do processo contra o seu aliado Jair Bolsonaro. A ameaça já nasceu absurda: acreditar que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria qualquer instrumento jurídico para interromper o julgamento — o que exigiria violar a Constituição — é pura fantasia.
Torna-se ainda mais escandalosa diante das provas esmagadoras contra Bolsonaro, acusado de planejar um golpe de Estado. Vários militares — entre eles seu próprio ajudante de ordens e os comandantes do Exército e da Aeronáutica — confirmaram os preparativos golpistas. Falar em "caça às bruxas" significa, portanto, apoiar as intenções autoritárias da extrema direita brasileira e desprezar a democracia do país.

Torna-se absolutamente ridículo, porém, quando o governo Trump, por meio de Christopher Landau, o vice-secretário do Departamento de Estado dos EUA, afirma que a separação democrática dos poderes "é a maior garantia de liberdade já concebida pelo espírito humano". Foi assim que Landau publicou na rede X. Ele escreveu: "Nenhum poder — e nenhuma pessoa — pode acumular poder demais, se for controlado pelos outros. Mas uma separação formal de poderes nada significaria se um deles tiver a possibilidade de intimidar os demais."
Receber lições de democracia de Trump é um insulto
É preciso lembrar que Landau é um representante do governo de Donald Trump, o próprio símbolo da intimidação ao Legislativo e ao Judiciário. Trump já convocou seus apoiadores a invadirem o Capitólio; ameaça congressistas de seu próprio partido; pressiona e ataca publicamente juízes cujas decisões o contrariam; afasta procuradores e altos funcionários da Justiça quando investigações se aproximam de seu círculo; demitiu o diretor do FBI e outros chefes de agências federais; aciona a Guarda Nacional contra cidadãos. Nas ruas americanas, sob Trump, pessoas são sequestradas por homens mascarados em veículos sem placas e desaparecem por dias.
Agora, o presidente exige redesenhar distritos eleitorais para garantir vitórias futuras de seus aliados. Além disso, normalizou a mentira como método político — um vício que já contamina o Brasil, onde a falsidade passou a ser tratada como "liberdade de expressão". Mas liberdade exige responsabilidade e acordo social: se todos os motoristas ignorassem as leis de trânsito sob o argumento de que limitam sua liberdade, o tráfego seria impossível. Para Trump e seus seguidores, contudo, liberdade significa apenas o direito do mais forte.
Receber lições de democracia de tal governo é um insulto. É verdade que o Brasil é uma democracia com falhas graves, enraizadas na desigualdade extrema e na corrupção endêmica. Mas também os Estados Unidos são classificados pela Economist Intelligence Unit como uma "democracia com falhas" (flawed democracy), com déficits em liberdade de imprensa, degradação da cultura democrática e um processo legislativo cada vez mais capturado por ricos e grupos de interesse.
Não é o Brasil que precisa aprender com os EUA sobre democracia. Ao contrário: enquanto as eleições americanas são frequentemente marcadas por caos e contestação, o processo eleitoral brasileiro é seguro, rápido e confiável. Mais importante: no Brasil, a maioria escolhe o chefe de Estado.
Nos EUA, um sistema eleitoral arcaico permite que uma minoria conservadora e provinciana eleja o presidente contra a vontade da maioria. Foi assim em 2016, quando Donald Trump chegou à Casa Branca apesar de Hillary Clinton ter obtido quase três milhões de votos a mais. A distorção é ainda maior no Senado: os dois senadores do conservador estado de Wyoming (600 mil habitantes) têm o mesmo peso que os dois da progressista Califórnia (40 milhões!). E são justamente o presidente desse país e seus representantes que pretendem dar lições de democracia aos brasileiros?
A tentativa de atacar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes segue o manual já aplicado por Trump nos EUA: descredibilizar e ameaçar juízes, questionar cada decisão sob a acusação de motivação política e, assim, corroer a separação de poderes. É isso que destrói o equilíbrio institucional.
As semelhanças são evidentes: a desestabilização já foi, ao longo do século 20, a receita utilizada por Washington na América Latina para derrubar governos que tentavam limitar a exploração da região por empresas norte-americanas. A riqueza da América Latina deveria beneficiar o seu próprio povo. Sob o pretexto de defender "a liberdade e a democracia”, tais governos eram rotulados por Washington de "socialistas" ou "comunistas" e alvos de intervenções. Hoje, o governo Trump evoca o mesmo discurso de "liberdade e democracia", enquanto, na prática, fortalece justamente seus inimigos.
Por isso, os brasileiros deveriam valorizar o papel de Moraes, que atua como muralha contra as tendências autoritárias do bolsonarismo. Suas ações cumprem o mandato constitucional do STF de proteger a democracia — ainda que algumas possam soar duras e excessivas —, mas o fato de o governo Trump dar ouvidos a Eduardo Bolsonaro, herdeiro de um clã sustentado há décadas por dinheiro público e cujo "negócio" é o extremismo e a divisão social, diz muito. Não se trata de defesa da democracia ou da liberdade, mas de promover, a partir de Washington, a agenda da extrema direita brasileira.
Alguns historiadores veem Donald Trump como o símbolo do último espasmo do império americano em declínio. Quando impérios se desfazem, costumam reagir com violência, agir de forma irracional e tentar, a qualquer custo, retornar a uma fase que consideram gloriosa — sem jamais conseguir. "Quando o velho morre e o novo não pode nascer", escreveu Antonio Gramsci, "nesse interregno surgem os monstros." O movimento trumpista MAGA é um desses monstros, e o Brasil, bem como o resto do mundo, faria bem em manter distância de suas garras.