terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Brasil evangélico

 


Novo slogan político

Alguém escreveu num muro branco da Universidade do Porto, em Portugal, a sua exigência política: “Queremos mentiras novas!”. Quem o escreveu sabia das coisas. Sabia que seria inútil pedir o impossível: “Basta de mentiras!”. Na política, apenas as mentiras são possíveis. Mas ele já estava cansado das mentiras velhas, batidas, como piadas cujo fim já se conhece, que diariamente aparecem nos jornais. Mentiras velhas são um desrespeito à inteligência daqueles a quem são dirigidas. Que mintam, mas que respeitem a minha inteligência! Mintam usando a imaginação! Por isso escrevia, em nome da inteligência, do possível e do humor: “Queremos mentiras novas!”.

Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"

Yanomamis

Tento, no presente texto, contribuir para o debate que já começou sobre a perplexidade “ampliada”, já em voga de maneira acelerada, sobre a barbárie bolsonarista e os seus efeitos cada vez mais visíveis na nossa subjetividade brasileira “cordial”, que irá nos acompanhar ainda por muito tempo. Trata-se de um texto de memória, mais de um militante político um pouco intelectualizado, menos de um ensaio escrito e subsumido em pretensões teóricas. Como foi possível?

Começo com a transcrição de uma parte da Carta de 18 outubro de 2021, que me foi remetida pelo meu amigo Professor Flávio Aguiar, residente em Berlim, que me brindou com o afeto de uma pesquisa sobre alguns familiares meus, de origem judia – do lado da minha mãe – que era filha de uma alemã “pura”, com um judeu “puro” – cuja família inicialmente viveu – no Século XX – na região de Santa Maria, aqui no nosso Rio Grande do Sul. Meu nome completo é Tarso Fernando Herz Genro e o Herz vem desta procedência.

O relato do meu amigo Flávio Aguiar tem uma solidariedade dolorosa, expressa na sua secura medida, bem como uma precisão material que deixar ali – naquele conjunto de palavras – um testemunho de rejeição radical justificada a tudo que cheira a nazismo. A tudo que se reporta ao fascismo e ao nazifascismo, sejam seus sopros trazidos pela presença fétida das pessoas que com ele conciliam, seja pelas milhares de inscrições nazistas e fascistas que transitam nas redes estão nas paredes das cidades sem alma, nos discursos de ódio de todas as classes e estão no coração dos grandes e pequenos artífices, que abraçaram a dança da morte em cada dia da sua vida degradada.

Diz o meu amigo: “Caro Tarso, prepare-se para mais emoções. Estou te enviando o link do relato mais circunstanciado que encontrei sobre os Herz. Junto uma foto do sobrinho do teu avô, Günther Herz, que foi assassinado em Auschwitz em 1944, aos 25 anos de idade. Encontrei outros relatos mais centrados na vida política de Carl Herz. Está tudo em alemão.” Aos 25 anos de idade!

Os meus ascendentes diretos judeus viveram em Altona e depois, já com três filhos, se mudaram para Berlim, onde militaram na socialdemocracia alemã, ao lado de Bebel, Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Carl Herz meu tio-avô, foi sacado da Prefeitura de Kreusberg, onde era Prefeito, em março de 1933, por um grupo de nazistas da SS. Quando a Polícia Municipal interferiu foi para prender quem estava sofrendo a violência, deixando livre a milícia hitlerista que espancava Carl Herz duramente.

Junto com a carta de Flávio veio uma foto do meu primo Günter, assassinado pelos nazistas, aos 25 anos de idade, em 31 de março de 1944, cujo semblante imediatamente me lembrou o meu avô Hermann Herz, seu tio, com quem convivi por mais de duas décadas, em São Borja e depois em Santa Maria para onde nossa família se mudou em 1953.

A carta de Flávio é posterior aos eventos da Hebraica, onde Jair Bolsonaro se apresentou em 3 de abril de 2017, com uma limpidez nazista extraordinária, arremetendo taticamente seu ódio psicopático, não contra os judeus, mas contra os negros, pessoas com identidade sexual diversa, gente com algum tipo de deficiência física (no caso Lula, originária de acidente de trabalho) e indígenas Amazônia e de toda a América

O discurso de Jair Bolsonaro recebeu provavelmente a repulsa da maior parte da comunidade judia, mas seus impropérios contra a esquerda mantiveram-no – até o final da eleição – com certo apoio nesta comunidade, bem como seu nome espraiou-se por outros setores sociais, mais ricos ou mais pobres, em todo o território nacional, tornando-o presidente do Brasil e ao mesmo tempo um pária mundial.


As pessoas que o apoiavam, “racionalmente”, tinham duas formulações básicas, para responder aos seus contendores: “pelo menos ele é autêntico” e “na verdade ele faz um tipo”, não fará tudo aquilo de “mal”, que ele diz. São as duas argumentações na política mais calhordas e desqualificantes que ouvi ao longo da minha já não curta vida. Ambas naturalizam o mal e fazem dele uma opção contra a civilização, a humanidade, a urbanidade e a mínima socialidade comunitária, que surgiu a partir das evoluções democráticas que resistiram mais de 200 anos de provas e agressões de todos os tipos.

Lembrei-me hoje do meu primo que não conheci, Günter Herz, que se recusou a sair de Berlim, com os demais membros da família, porque pensava poder manter-se na luta junto às organizações clandestinas contra Hitler e seus assassinos de uniforme. Lembrei-me dele quando vi as fotos das crianças Yanomami, suas mães, pais irmãos, irmãs: esquálidos, famélicos, doentes, morrendo, que seguiram os oitocentos mil brasileiros e brasileiras de todas as idades, fulminados pela impiedade fascista de Bolsonaro.

Como foi possível que este formidável engano coletivo vencesse aqui no Brasil – como venceu na Alemanha – nação mais culta e desenvolvida daquela época? Só foi e é possível a morte vencer porque, ao ser naturalizada de forma racional e em escala industrial – aqui como na Alemanha – foi tornada uma ficção inofensiva na consciência dos humanos. E assim, vencedora, domina o espírito de uma maioria, não ingênua ou enganada – naquele momento – mas uma maioria que queria ver o demônio funcionar como operador escondido das suas vidas sem rumo. Isso se faz pela política, pela propaganda, pela informação.

Vejo o meu primo Günter, que não conheci, em alguma fila de execução nazista do Campo de Auschwitz. Ele vai triste, mas sereno, sabe que perdeu e que deveria ter saído, mas pensa que o que viveu valeu. E muito. Sua consciência política de jovem rebelde e corajoso também já sabe – como sabemos hoje para sempre – que tudo isso pode se repetir: tanto como sonho sonhado, como sendo um pesadelo vivido. Não adianta só perplexidades generosas ou arrependimentos tardios. O que adianta é a Justiça imperfeita dos homens ser erguida como uma luz matinal, que nos acordará numa primavera improvável que dura certo tempo. E que queremos seja para sempre.

A tragédia Yanomâmi

Qual tribunal vai julgar os devoradores de florestas, de montanhas, dos solos, dos rios e do ar que respiramos?

Os fatos e as imagens anunciam e anunciavam a tragédia Yanomâmi. O Brasil e o mundo hoje e nos próximos dias vai saber, de maneira espetacularizada, a amplitude desta triste realidade. Ausências e responsabilidades escancaradas.

Quem vai responder pela tragédia Yanomâmi? Temos sociedade, estado e cidadania? Quais são os valores das nossas humanidades?

As montanhas estão sendo comidas pela mineração. Os rios estão sendo mortos por nós a cada dia. A floresta incendiada reaparece em forma de bizarros esqueletos seculares, um dia árvores frondosas… Os solos calcinados ficam esperando agrotóxicos para contemplar o ciclo da morte. As mudanças climáticas vão nos atormentando a vida.

Estamos vendo a vida sendo levada pela fumaça, pela falta de natureza, de trabalho, moradia, educação, comida, saúde… de quase tudo! A humanidade Yanomâmi vai a massacre, vertiginosamente.

Qual tribunal vai julgar os devoradores de florestas, de montanhas, dos solos, dos rios e do ar que respiramos?

A natureza vai se cansando de sinalizar. A tragédia foi anunciada, tantas vezes em gritos, lamentos e frustrações.

E o Brasil vai reagir? O que ainda pode acontecer? Ainda há tempo de ouvir e dialogar com a sabedoria e a espiritualidade Yanomâmi?

Qual é a nossa humanidade? 

George Gurgel