sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Brasil da banda podre


As Excelências e os bobos

No Brasil existem 32 partidos políticos cadastrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outras 76 legendas em formação. Dentre as novas agremiações que tentam o registro no TSE, está, por exemplo, o Partido Nacional Corinthiano (PNC). O processo, em fase avançada de tramitação, tem como relator o ministro Jorge Mussi. O punho cerrado levantado, gesto eternizado no Corinthians por Sócrates, é o símbolo do partido inspirado na Democracia Corinthiana.

Caso as novas legendas obtenham registro, o país terá 108 partidos políticos. Mesmo com a cláusula de desempenho, ainda parece ser um bom negócio, em fase de expansão e rentável.


Apesar de o rombo fiscal previsto para o próximo ano ser de R$ 124,1 bilhões, alguns parlamentares chegaram ao cúmulo de sugerir o valor de R$ 3,7 bilhões para o Fundo Eleitoral em 2020, o que representaria crescimento de R$ 2 bilhões (118%) em relação às eleições do ano passado. Mas, além do Fundo Eleitoral — criado quando foram proibidas as doações empresariais —, existe o Fundo Partidário, também bancado por recursos públicos, com valor de R$ 959 milhões já previsto no projeto de lei do Orçamento do próximo exercício.

Some-se aos “Fundos” o montante de R$ 815,7 milhões que o país pode deixar de arrecadar por conta da recriação — em outro formato — do indigesto horário eleitoral gratuito. Aliás, a propaganda eleitoral de gratuita não tem nada. O governo concede isenção fiscal aos veículos de comunicação que transmitem o horário eleitoral e deixa de arrecadar valor correspondente ao que as emissoras ganhariam nesse período com publicidade.

O presidente Bolsonaro sancionou em 27 de setembro, com vetos, a Lei 13.877/2019, que altera regras de funcionamento dos partidos e de organização das eleições. Convém ressaltar que uma coalizão de 22 entidades sociais (Transparência Partidária, Contas Abertas, Transparência Brasil, Instituto Ethos, Acredito, Livres, Renova, entre outras), ligadas à transparência, ao combate à corrupção e à renovação política, alertou quanto à possibilidade de a nova lei abrir brechas para aumentar a corrupção, o caixa dois e a lavagem de dinheiro.

Os vetos do presidente Bolsonaro em relação ao texto que saiu da Câmara dos Deputados foram corretos, ainda que pudessem ser mais amplos. Porém, há risco enorme de que hoje os vetos sejam derrubados no Congresso para que prevaleça o texto original, que contém absurdos do tipo:

1) Os recursos públicos do Fundo Eleitoral poderão ser utilizados para bancar a defesa de políticos acusados por corrupção e para custear ações de “interesse indireto” dos partidos. Você, leitor, concorda em pagar advogados para corruptos?

2) Penalidades já impostas aos partidos podem ser anistiadas, e há exigência de conduta dolosa para que as multas sejam aplicadas. Além disso, as penalidades podem ser pagas com recursos públicos. Você acha justa a anistia de multas e concorda em pagá-las?

3) Os partidos podem comprar passagens aéreas para qualquer pessoa, independentemente de o beneficiado estar filiado. Você acha justo pagarmos pelo turismo de apadrinhados de políticos?

4) Os partidos poderão apresentar suas prestações de contas em sistemas próprios, sem a obrigação de utilizar o modelo padrão disponibilizado pela Justiça Eleitoral. Imaginem o que aconteceria se cada um de nós fizesse a declaração de Imposto de Renda em qualquer formulário próprio?

5) A verificação da inelegibilidade do candidato não irá mais ocorrer quando do registro da candidatura, mas sim na época da posse. Você está disposto a correr o risco de votar em um ficha-suja?

Alguns políticos ainda não perceberam que o modelo democrático conservador está esgotado. A indignação começa nas redes sociais e transborda para as urnas, à revelia dos partidos. A imoralidade poderá ser hoje consagrada, e sairão vitoriosos os que trabalham contra o interesse público, a favor das causas próprias, do umbigo e do bolso.

Mas, na minha opinião, um grande erro dos parlamentares “espertos” é achar que podem fazer todos de bobos.

Essa lei anticrime é criminosa

Gostei, TCU. O Tribunal de Contas da União suspendeu propaganda de Bolsonaro e Moro. Presidente e ministro queriam convencer a sociedade a apoiar um pacote anticrime que ainda depende de aprovação na Câmara dos Deputados. Não estamos numa democracia plebiscitária. E pontos do pacote já foram derrubados pelo Legislativo. O Executivo vive numa ilha da fantasia. Bolsonaro quer criar o PES: Partido do Eu Sozinho.

O lugar da fala hoje é de Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, morto a tiros em junho de 2018, aos 14 anos, no Complexo da Maré. Com a coragem das mães, com a fala desabrida de quem sabe que a verdade está de seu lado, Bruna levou camisa e mochila manchadas de sangue de Marcos para Rodrigo Maia. Pediu que a Câmara dos Deputados vete a lei anticrime. Não chorou. As lágrimas secaram. Bruna citou 13 vezes “meu filho”.




“Eu mandei meu filho impecável para a escola e o Estado me devolveu ele assim (mostra a camisa ensanguentada). Isso aqui não é uma afronta pro senhor não, tá bom? É pro senhor entender que foi o que o Estado me deu. A gente na favela cobra o estudo de nossos filhos, a única coisa que a gente fala para os filhos é que na nossa vida a gente só leva os estudo. Com a aprovação desse pacote criminoso, vai ficar ruim pra gente. Já tá ruim. Eu tenho uma única filha, a Maria Vitória, de 13. A minha filha continua sendo alvo. Na minha laje eu fui alvo a semana passada porque a Civil entrou dando tiro. Me viu em cima da laje. Atirou com helicóptero. Eu recolhi três projétil com a cápsula marcada de verde. Aí eu pergunto, o excludente de ilicitude. Será que essa Casa (a Câmara) tá pronta pra aprovar isso? Porque, se essa Casa estiver pronta, vai ser muito sangue derramado. E automaticamente vai ser aqui que a gente vai vir cobrar, porque essa aqui é uma Casa do povo. A maioria das leis que nos mata lá fora sai daqui de dentro. Se é do povo, não pode sair lei daqui que nos prejudique lá fora, tá entendendo? Então a gente tá aqui, representando o Brasil, aquelas pessoas que não têm voz, pedindo sua ajuda, que o senhor venha olhar pra gente, para cada história, eu não tenho mais o Marcos Vinícius em casa, o meu filho me faz falta. O meu filho me fez uma pergunta na UPA. ‘Mãe, pelo amor de Deus, o que foi que eu fiz? A polícia não me viu com roupa e material de escola?’ Eles viram. Porque meu filho foi morto numa Operação de Vingança. A Core (elite da Civil) veio se vingar do Complexo da Maré (pela morte de um policial em Acari). 

Era 9 horas da manhã. Meu filho foi baleado na rua da minha casa. Não tinha operação. Tinha um blindado plantado na rua. E os policiais da Civil com touca Ninja e sem identificação, porque é assim que eles agem. Só que agora, né, tem a faca. Eles já matam a gente a bala, agora com faca também? A gente vai sofrer. Sofrer por que, se essa guerra não é nossa? Por que esse reflexo respinga na gente? Tá aqui. Isso aqui é o sangue de meu filho. É o meu DNA que tá aqui. Eu perdi meu primogênito, meu lado alegre, o meu filho homem, o meu filho tava doido pra ter barba no rosto, o meu filho não acreditou em quem deu aquele tiro. E a gente sempre conversava, filho, dia de operação cuidado quando você estiver vindo aí da escola, e ele, não, mãe, não corro esse risco porque eu tô com roupa, tá vendo. O meu filho usava uma mochila preta. O meu filho teve o cuidado de trocar a mochila dele. ‘Mãe, posso ficar com essa mochila abóbora?’ Eu falei, mas meu filho, a tua preta é nova. E ele, não, porque estudante de mochila preta na favela, o policial atira. A polícia atirou no meu filho com essa mochila abóbora. Essa aqui é a marca de sangue do Marcos. Aí eu te falo. Não dá pra gente cruzar os braços e deixar que o Estado entre, nos mate e fique por isso mesmo. O Estado tem que ser responsável por essas mortes. Tem que haver investigação, eles têm que cumprir pena. A gente cumpre pena...a gente paga quando a gente erra. E essa lei anticrime, ela é criminosa, porque vai diretamente pro povo. Essa lei é direcionada pra gente dentro de favela, da Baixada, no asfalto, essa lei não é válida para a Zona Sul do Rio de Janeiro. O sangue que jorra é o sangue do pobre, não é o sangue nobre. Então que o senhor venha acolher nosso pedido de socorro, o senhor como o presidente da gente”.

O “excludente de ilicitude” é aquele item do pacote de Moro que inocenta policiais que matam por “escusável medo, surpresa e violenta emoção”. Ora, esses sentimentos surgem em toda operação em favela porque policiais morrem também. Claro que a proporção de policiais mortos é infinitamente menor que a de suspeitos. Crianças assassinadas “por engano” se tornam “perdas colaterais” na guerra com bandidos em comunidades abandonadas pelo Estado. Em nenhum lugar do mundo isso deu certo. O pacote de Moro, como está, estimula a matança e a impunidade. 

A hipótese da estultice

Permanece em aberto a questão de saber se Jair Bolsonaro é um sujeito inteligente, isto é, alguém que se vale de estratégias elaboradas para alcançar seus objetivos, ou apenas um valentão que teve duas ou três intuições corretas e uma enorme dose de sorte.

Os defensores da hipótese de vida inteligente sempre poderão afirmar que ele venceu a eleição mais disputada do país e que vem presidindo um processo de recuperação econômica, ainda que timidíssimo.

Não faltam, porém, argumentos àqueles que sustentam que Bolsonaro não passa de um despreparado que as ruínas da administração petista aliadas às forças do acaso galgaram à Presidência. A prova mais eloquente disso estaria no fato de o primeiro mandatário levantar incessantemente polêmicas nas quais tem muito mais a perder do que a ganhar.

O caso do divórcio entre o bolsonarismo e o PSL reforça a hipótese da estultice. É possível que tudo não passe de um blefe, mas, se a separação for para valer, fica difícil vislumbrar o que Bolsonaro ganharia. Já a lista das perdas é graúda.

Para início de conversa, parlamentares que seguirem o presidente correriam um sério risco de perder seus mandatos. Mesmo que os advogados encontrem um modo de evitar isso, a debandada deixaria milhões de reais dos fundos partidário e eleitoral com uma sigla que terá rompido com Bolsonaro.
Em termos estruturais, o presidente se afasta ainda mais do projeto de criar uma base partidária razoavelmente sólida, que seria importante tanto para dar sustentação a seu governo como para ajudá-lo numa eventual disputa pela reeleição.

Ou Bolsonaro está tantos passos à frente de todos em suas maquinações políticas que temos dificuldade até para reconhecer-lhe a inteligência, ou temos motivos para temer que ele nem sequer consiga definir quais são seus objetivos, menos ainda a melhor estratégia para alcançá-los. Façam suas apostas.

Paisagem brasileira

Sabará, Rubens Vargas

Real people x fake news em 2022

Todos os meus amigos, sem exceção, estão convictos de que o pêndulo de opinião se deslocou para a direita por um bom tempo e de que a esquerda, desde já, deve ser descartada como opção eleitoral possível —se viável, aí o debate é outro— para 2022. Eu não estou. E olhem que isso nada tem a ver com “Lula livre” ou “Lula preso”.

Ouso sugerir que se coloquem os pobres na equação. No país que teve deflação em setembro —e duvido que Paulo Guedes tenha tido tempo de explicar para Jair Bolsonaro que isso não é bom—, o presidente decidiu fazer um esparramo em seu próprio quintal ideológico ao detonar o PSL. Que importa que isso crie dificuldades adicionais para alguns objetivos que deveriam ser estratégicos para o governo, como as reformas?


Nesta quinta, li cheio de interesse uma fala de Guedes a investidores brasileiros e estrangeiros. O trecho que mais me encantou foi este: “Estamos com o crescimento subindo, a inflação descendo e retomando provavelmente agora um longo ciclo de crescimento. Num momento em que o mundo sincronizadamente desacelera, entrando em uma clínica de reabilitação após um período de excessos, o Brasil está saindo da clínica de reabilitação”.

O discurso do ministro sempre pareceu complexo demais para o meu curto entendimento. Como quando prometeu arrecadar R$ 1 trilhão com privatizações ou zerar o déficit ainda em 2019. Com o mundo na clínica de reabilitação, e o Brasil iniciando seu longo ciclo de crescimento, suponho que a sustentação de que trata estará ancorada no mercado interno.

Não sou especialista em economia. Ele é. O debate no país consegue ser bem despudorado quando o tema é o rendimento das famílias, não é mesmo?

Vejo o escarcéu que se fez com o estudo do Banco Mundial sobre os gastos com o funcionalismo. Os números parecem especialmente perversos porque o rendimento médio do trabalho no país é de R$ 2.300.

Quase metade das famílias tem renda de R$ 1.996. O aluguel de uma casa de dois cômodos, com banheiro e quintal coletivo, na Vila Brasilândia, na zona norte de São Paulo, custa R$ 700. Na parte nobre da favela de Paraisópolis, na Zona Sul, pode ser um pouco mais caro.

Precisamos cortar os excessos do funcionalismo, sem dúvida. Mas de quais categorias? Não vi se o estudo do Banco Mundial cruza a formação escolar dos servidores com a do conjunto dos brasileiros e dos trabalhadores da iniciativa privada. Professores do ensino público podem ser confundidos com nababos. São?

Ainda que a renda média das famílias não o escandalize, leitor, deve-se entender que Banânia vai sustentar o crescimento, na contramão do mundo, incentivando o mercado interno, mas tirando dinheiro das mãos dos brasileiros —ou da parcela que consegue guardar alguma coisinha. O tempo dirá se faz sentido.

Não sei, não... O encanto do discurso da direita disruptiva, entendo, já se quebrou. A extrema direita hidrófoba nas redes sociais está dividida. Suas celebridades de internet estão se estapeando pela prerrogativa de liderar o obscurantismo, a vulgaridade, a truculência, a burrice e a falta de empatia com a maioria dos brasileiros, formada de gente pobre.

Acreditem: os escuros, achados pelas balas perdidas destes dias aziagos, ressurgirão em 2022. Talvez já deem as caras em 2020. Quem sabe ver e ouvir já percebeu que o “real people” tende a diminuir a importância das “fake news”. Querem apostar? Não creio que multidões de duros vão manter a mesma disposição de lutar contra o comunismo...

Para encerrar: também nós somos os curdos de Donald Trump. Deu uma banana para “Bolsonaro I love you” e resolveu apoiar o ingresso da Romênia e da Argentina na OCDE. A Argentina é aquele país que decidiu resistir à orientação de Bolsonaro e que vai eleger os esquerdistas Alberto Fernández e Cristina Kirchner para a Presidência.

A propósito: Guedes já deixou claro à Organização Mundial do Comércio que os curdos da Vila Brasilândia não querem mais tratamento diferenciado? Afinal, sabem como é, estamos na contramão do mundo. E gozar de regalias na OMC é coisa para países atrasados, como a China.

Na briga com o PSL, Bolsonaro já conseguiu o que queria

Fala-se agora, novamente, na possibilidade de Jair Bolsonaro investir na constituição de um novo partido. Isso vai e vem, a depender das conveniências bolsonaristas. Há mesmo gente, nas franjas do bolsonarismo, trabalhando para tanto. O argumento é o de que a mobilização bolsonarista precisaria de organização de base - de coesão programática e ideológica - para não perder o viço e deixar esfarelar o fenômeno que sustentou a eleição de Bolsonaro.

Tenho, porém, dificuldade em acreditar que o presidente apoie - para valer - a iniciativa. É inconsistente com a mentalidade bolsonarista e com o histórico partidário de Jair Bolsonaro; daí por que seja bem mais provável, segundo avalio, que ele autorize a ventilação da hipótese como ameaça e, óbvio, como parte fundamental da estratégia de desqualificação da ideia de partido.

A lógica do bolsonarismo, força autocrática e personalista, é a de depreciar e esvaziar o valor de toda e qualquer forma de mediação, de representação. Partido é a máxima expressão da atividade política, da impessoalidade e da concertação entre agentes, que se manifesta - por excelência - no exercício parlamentar. Não e à toa, diga-se, que o bolsonarismo ataca o Congresso. A impessoalidade e a desconcetração decisória são riscos ao propósito populista.

De resto, objetivamente, organizar um partido novo, agora, seria complicar, arriscar mesmo, o projeto de poder bolsonarista - que precisa (incontornavelmente) eleger braços municipais fortes - para as eleições de 2020; que pode se servir bem daquilo já montado, inclusive em termos financeiros, no PSL.

Mais provável é, pois, que Bolsonaro e corte fiquem; ao menos até o fim do ano que vem. Não há dúvida de que examina alternativas. O presidente, contudo, já conseguiu o que pretendia: rebaixou o próprio partido; que é, também, investimento no rebaixamento da democracia representativa. E colocou sua insatisfação na mesma sintonia de sempre, uma das frequência de sua eleição: o da - falsa - indignação com desvios e falta de clareza na gestão dos fundos partidários pela direção do PSL; isto sem falar na podridão que ainda se pode cheirar desde o laranjal de Marcelo Alvaro Antonio. Tem método. Bolsonaro faz isso. Está sempre se limpando. Sempre criando condições para se cercar de descartáveis.

Por essa exata razão é que não se pode desconsiderar a chance de uma eventual mudança de partido; mas para outro entre esses de aluguel.

Cabe registrar, adicionalmente, que parte influente do bolsonarismo prega por uma reforma eleitoral que admita candidaturas avulsas - conforme há em algumas democracias do mundo. Gente muito boa, fora do bolsonarismo, também defende essa tese. Sou contra. No Brasil, radicalmente contra. Candidatura avulsa, neste país, com o histórico de líderes carismáticos que temos, seria erro grave: o estabelecimento mesmo do chão para o reino do populismo, do personalismo, do messianismo, em detrimento do equilíbrio próprio à cultura da representação e da mediação política. Cuidado.

Finalmente, a partir de um exemplo típico da gramática bolsonarista, proponho aqui uma breve reflexão sobre a linguagem influente do bolsonarismo. Ontem, em entrevista - sobre esse imbróglio partidário - ao site O Antagonista, o presidente afirmou que não sairia do PSL por "livre e espontânea vontade" e que não queria "entrar nessa briga".

Note, leitor, o grau de manipulação discursiva para o objetivo de inverter a ordem dos fatos e se vitimizar. O presidente faz isso diariamente. Age como se não fosse ele, Jair Bolsonaro, o gerador - a própria origem - da crise; como se não tivesse sido ele a pedir que se esquecesse o PSL e a se referir ao dono do partido como "queimado".

>Isto é o bolsonarismo: uma fábrica de conflitos artificiais. No caso, com efeito, para diminuir o PSL, situar - reforçar a ideia de - o partido como mais um no meio de um sistema corrupto, e se destacar novamente como aquele de fora, puro, que nada tem a ver com isso e aponta os erros. Ele fica; o partido mingua mais um pouco; e ainda joga fumaça sobre as denúncias contra o ministro do Turismo do qual - dono do PSL em Minas - não abre mão.

Guedes está dois lances atrás da própria língua

O governo de Jair Bolsonaro seria outro se o presidente trouxesse suas palavras na coleira e o ministro da Ecomomia convertesse gogó em resultados. O problema é que Jair Bolsonaro não para de produzir insensatez —a crise com o PSL foi apenas a penúltima— e Paulo Guedes parece estar sempre dois lances atrás da sua própria língua. Bolsonaro preocupa-se mais com as urnas de 2022 do que com os cofres de 2019. Cofres que a língua de Guedes havia prometido sanear no primeiro ano de governo.


Falando num fórum de investidores, o ministro celebrou o fato de que a economia mundial entra numa clínica de reabilitação num instante em que o Brasil está saindo dessa clínica. A economia brasileira melhora, mas não recebeu alta hospitalar. Vai crescer menos de 1% neste ano. Na comparação com o PIB mundial, que terá crescimento médio acima de 2%, o Brasil está mais enfermo. E o declínio da economia do resto do mundo tornará a recuperação ainda mais lenta. Guedes disse a certa altura que, depois de quatro décadas de economia fechada, impostos elevados, Bolsonaro "começou a revolução em relação ao que há de melhor no mundo ocidental".

A gestão Bolsonaro está a dois meses e meio de fazer aniversário de um ano. E Paulo Guedes ainda não levou ao Congresso uma proposta de reforma tributária. O fim dos subsídios? Nada. A facada na mamata do Sistema S? Nem sinal. A coleta de R$ 1 trilhão com a venda de estatais e imóveis públicos? Necas. São coisas que a língua prometeu e o ministro não entregou. Por enquanto, o que há de concreto é uma reforma previdenciária lipoaspirada e inconclusa, um presidente que produz crises na saída do Alvorada e um ministro da Economia com a garganta maior do que as atitudes. Um pouco de sinceridade talvez causasse melhor impressão nos investidores.

Os governos do Brasil têm convivido com ministros econômicos que se consideram extraordinários. Alguns têm o prestígio de super-ministros. Mas a maioria, no fim das contas, apresenta um defeito comum. Costumam encontrar as verdadeiras soluções para os problemas nacionais quando se transferem do palco para a crítica. Para evitar a sina dos ex-ministros geniais, Paulo Guedes deveria serenar a retórica e perseguir resultados.

Pensamento do Dia


Cheiro de gás

Solange M. T. Hernandes foi lembrada por mais de um comentarista político nos últimos dias. Funcionária da Polícia Federal, ficou tão conhecida nos anos 1970 que seu nome virou sinônimo da censura a jornais, revistas, livros, filmes, peças, músicas, noticiários e novelas, amplamente praticada pelo regime militar. Sua tesoura inoxidável mutilava não só manifestações de oposição, mas tudo aquilo que ela considerasse atentatório à moral e aos bons costumes.


Estaríamos assistindo à volta dos tristes tempos de dona Solange? É o que se perguntam todos quantos se preocupam com a escalada dos destemperos verbais do presidente Bolsonaro e de seus subalternos contra a imprensa e artistas conhecidos; a ameaça de impor filtro à produção cinematográfica; as demissões em organismos ligados ao Ministério da Cultura; e a suspensão de financiamentos de empresas públicas a atividades culturais se os beneficiados tiverem o perfil “errado”.

Há quem sustente que, a despeito do linguajar chulo do presidente, apenas estaríamos diante de mudanças esperáveis de um governo de extrema direita eleito segundos as regras do jogo: governo de extrema direita, políticas culturais de extrema direita, executadas por funcionários de mesma orientação. Bolsonaro retruca que não se trata de censura, mas de defesa dos valores cristãos compartilhados por faixas extensas da população —das quais se imagina representante.

É fato que dona Solange serviu a um regime de força, sua atuação autorizada pelo Ato Institucional n°5 e pela Lei de Censura. Hoje vivemos outros tempos, sob democracia e com ampla liberdade de expressão. Mas não há como ignorar a tensão permanente entre as instituições democráticas vigentes e um presidente de clamorosa inclinação populista e autoritária. Nesse particular, de todo modo, o Brasil não é um caso único.

Ali onde populistas de esquerda ou de direita conquistaram o governo, a imprensa independente, intelectuais e artistas tornaram-se alvos prioritários de tentativas de censura e descrédito. Em alguns países, as investidas tiveram êxito —a exemplo de Hungria, Filipinas, Polônia, Rússia e Venezuela. Em outros, nem tanto. Apenas irritam e poluem a atmosfera política, como nos Estados Unidos e na Itália. Tudo parece depender da resiliência das instituições democráticas.

Não é possível saber de antemão como será aqui. Os tempos de dona Solange ainda não estão de volta. Mas as manifestações e as medidas tópicas tomadas pelo governo são como o gás que escapa lentamente de um vazamento sem que se dê muita atenção. Até que seja tarde demais.
Maria Hermínia Tavares de Almeida

Atendendo à chefia...

São agressões generalizadas, graves, e com a conivência do poder Público, do Estado. Parece que fizeram uma seleção de psicopatas, e deram o direito a eles se regozijarem nos presos – o que a gente vê é a banalização do mal
Servidor estadual descreve horror nos presídios do Pará implantado por agentes federais da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) 

Bolsonaro não ficou nem saiu do PSL, e virou um OVNI político, perdido no espaço

O presidente Jair Bolsonaro conseguiu chegar à Presidência da República mediante uma série de circunstâncias, diria o grande filósofo e analista político espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Depois de chegar ao poder, porém, as circunstâncias mudaram muito e o presidente brasileiro enfrenta dificuldades cada vez maiores. Na política interna ou externa, seu amadorismo é cada vez mais surpreendente, porque formou uma péssima equipe e está pagando esse preço, porque não tem assessores qualificados que possam sugerir os caminhos mais seguros para trafegar. O resultado é patético.

Como toma as importantes decisões sem antes discuti-las, os resultados são patéticos e surpreendentes, A cada dia sai uma novidade (no mau sentido), como uma deselegância, um erro de avaliação, uma ofensa ou mesmo um desatino.


Não adianta esperar que o presidente da República aprimore seu comportamento, porque ele é assim mesmo, todos sabem que não irá mudar. Na verdade, Jair Bolsonaro não se comporta como presidente da República. Posiciona-se preferencialmente como chefe da família Bolsonaro.

Um bom exemplo é essa briga com o presidente do PSL, Luciano Bivar, que nunca foi, não é e jamais será referência. Bolsonaro tentou destruí-lo com uma declaração explosiva: “Cara, não divulga isso não. O cara tá queimado pra caramba lá. Vai queimar o meu filme. Esquece o Bivar, esquece o partido”, disse, sem entrar em detalhes.

E o motivo? Ora, tudo isso é porque Bivar não impediu que o líder do PSL no Senado, Major Olimpio, criticasse publicamente Flávio Bolsonaro e sugerido que deixasse o partido. Ou seja, Bolsonaro agiu como pai, ao invés de se comportar como presidente da República.

O resultado foi o contrário do que Bolsonaro esperava, porque caiu no centro da roda e começou a levar pancada de todo lado. Bivar acusa pessoas ligadas a Bolsonaro de querem controlar as finanças do PSL, o que significa uma maluquice total, enquanto Olímpio aumenta as críticas aos filhos de Bolsonaro, dizendo que eles são filiados como qualquer outro, o que é pura verdade.

Todos sabem que seu partido, o PSL, não é nenhum primor democrático, mas foi a legenda que o levou ao poder e se tornou a maior do país. Agora Bolsonaro está na berlinda, não saiu, mas também não é mais do partido, igual à Viúva Porcina, aquela que foi, sem nunca ter sido, na definição genial de Dias Gomes.

Ele pode trocar de partido mais uma vez, porém os deputados e senadores que elegeu não podem acompanhá-lo com facilidade, há regras na Lei Eleitoral a serem obedecidos. A chamada janela só se abre em 2022. Até continuará reinando a esculhambação.

A nova literatura de Brasília

Estamos tão acostumados com o surrealismo que impera na política brasileira que a revelação de que um procurador-geral da República pretendia assassinar um ministro do Supremo Tribunal Federal e depois se suicidar passa como uma espécie de anedota para a opinião pública. Mais uma dessas maluquices de Brasília.

Mas a verdade é que a revelação de Janot abre um novo capítulo naquilo que podemos esperar de nossos homens públicos. Imagine se cada desses protagonistas da história republicana recente decidisse publicar livros com relatos bombásticos? Aí sim valeria a pena ler, reler e guardar todos os jornais da semana. A Netflix teria que produzir minisséries em série — com o perdão do trocadilho. Ainda que eu esteja convencido de que poucos escritores de ficção teriam talento para superar o ex-procurador-geral, não posso deixar de imaginar o potencial dessas histórias. Eis alguns trechos que permitirão aos leitores saber quem está narrando.

No livro de um poderoso ex-deputado federal: “No dia da votação do impeachment, estava convencido que precisava garantir que o processo passasse para o Senado. Pedi que colocassem uma bazuca embaixo da mesa da presidência. Já havia negociado com todos os deputados que podia, mesmo assim ainda tinha medo de alguma mudança de lado na última hora. Então chamei um deputado com experiência militar e decidimos espalhar algumas bombas em locais estratégicos do plenário, just in case. Graças a Deus, não foi necessário utilizá-las.”

Nas memórias de um ex-vice-presidente: “Quando ele veio me visitar, temi que fosse me chantagear. Então pedi para que ficássemos na garagem de casa, para não haver testemunhas. Minha intenção era esconder seu corpo no porta-malas depois de assassiná-lo, já que não conseguiria arrastá-lo da sala até o carro. Sou um senhor de idade, entendam. Além do mais, poderia chamar a atenção dos empregados. No entanto, quando percebi que ele estava seguindo todas as minhas instruções, mudei de ideia. Ah, se eu soubesse que o safado estava nos gravando…”

Na biografia autorizada de uma ex-presidente: “Se tinha uma coisa que eu odiava, era quando ele me chamava de ‘querida’. Sério. Aquilo me tirava do sério. Mas fazer o quê? Sendo ele quem era, podia chamar a gente do que bem entendesse. Então, naquele dia que liguei para ele, aquele dia que eu ia chamá-lo para a Casa Civil, tinha certeza que a conversa estava sendo gravada. E eu sabia que ele ia me chamar de ‘querida’. Foi minha vingança. É como eu sempre digo: Mais vale um pássaro na mão do que um peixe que morre pela boca.”

Em “A Verdadeira História do Brasil”, de um ex-presidente-presidiário: “Isso eu nunca contei para ninguém. Guardei para esse livro. Antes desse escândalo todo começar, o tal juiz veio falar comigo. Pouca gente sabe disso. Eu o recebi no meu apartamento. Ele tinha uma proposta. Queria trocar a chácara pela minha liberdade. Queria tudo. Até os pedalinhos. Disse que se eu passasse a chácara para o nome dele, encerraria o processo. Expliquei que não era dono da chácara. Ele ficou maluco e começou a me perseguir. Veja você como funciona a Justiça no Brasil.”

E, finalmente, no romance “Meus Amores”, de um ministro do STF: “Naquele dia em que ele veio ter comigo, decidi que iria matá-lo e depois me suicidaria. Depois que li que essa também era sua intenção, percebi como somos parecidos. Nos aproximamos. Agora moramos juntos num apartamento funcional, em Brasília. Temos um labrador chamado Jairzinho e estamos muito felizes.”