terça-feira, 14 de maio de 2024
A opinião em palácio
O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
― Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:
― Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correcção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
― Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado.
― Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
― Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:
― Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correcção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
― Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado.
― Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
― Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
Carlos Drummond de Andrade, “Contos Plausíveis”
A égua no telhado
A foto é emblemática. Uma égua no alto do telhado de uma casa, olhando para a água que a cerca. Sem enxergar um palmo de terra firme que a encoraje a sair do desconforto. Na maior tragédia pluviométrica que assola o Rio Grande do Sul, o cavalo de Canoas, uma das cidades inundadas pelas enchentes, simboliza a perplexidade que toma conta não apenas dos gaúchos, mas de todos os brasileiros que nunca viram cenas tão devastadoras e intensas quanto as que lhe são expostas pela teia midiática. A cena de uma garotinha pedindo que o barqueiro pegasse uma boneca que flutuava na água é comovente. A boneca era um bebê. Realismo fantástico.
O Brasil vive um momento de triste perplexidade. Sem entender como e porque um Estado tão bem-dotado de infraestrutura, um dos mais desenvolvidos da Federação, a 5ª. maior economia nacional, seja impiedosamente destruído por precipitações pluviométricas. Como não se previu tamanha calamidade? Como tem sido possível que os danos às pessoas sejam de tal monta, que a vida de centenas de famílias seja jogada no despenhadeiro? Nietzche, o magistral filósofo, prenunciou: a ampulheta do tempo, vira e mexe, impõe o eterno recomeço como nosso conceito de devir.
A cada estação do ano, o Brasil ganha as cenas de vidas destroçadas. Vai, aqui, pequena memória.
Em 1975, um vazamento de 6 mil toneladas de óleo, do petroleiro Tarik Iba Ziyad, fretado pela Petrobras, contaminou a baía de Guanabara. O maior vazamento de óleo no Brasil. Em 1980, no Vale da Morte, em Cubatão, a liberação de gases tóxicos por indústrias do polo petroquímico, aumentou os problemas de saúde na região. Ainda em Cubatão, em 1984, na Vila Socó, um grande incêndio matou 93 pessoas. Falha na tubulação. Em 1987, foi a vez de Goiânia, com o acidente radiológico com um aparelho de radioterapia abandonado, dentro do qual estava uma cápsula de césio-137. Outro vazamento de óleo na baía de Guanabara, em 2000; responsabilidade da Petrobras. 25 praias contaminadas. Ainda em 2000, no Paraná, houve um vazamento de óleo nos rios Barigui e Iguaçu. 4 milhões de litros de óleo. Vimos, em 2001, o naufrágio da plataforma P-36, na bacia de Campos, que despejou 1500 toneladas de óleo a bordo, matando 11 pessoas. A seguir, em 2003, a indústria Cataguases, em Minas Gerais, despejou 1 bilhão e 400 milhões de lixívia nas águas da bacia hidrográfica do Paraíba do Sul. Em 2007, o rompimento de barragem Bom Jardim em MG. Em 2011, outro vazamento de óleo na bacia de Campos, RJ. No porto de Santos, em 2015, ocorreu o incêndio na Ultracargo, durante transferência de tanques de gasolina e etanol. Ainda em 2015, houve o vazamento da barragem do Fundão, em Mariana, MG, com 62 milhões de m3 de lama. Responsabilidade da empresa Samarco. Em janeiro de 2019, em Brumadinho, MG, viu-se um dos maiores desastres ambientais no Brasil, com o rompimento da barragem Mina do Feijão, sob responsabilidade da companhia Vale do Rio Doce. 270 mortos. Uma tragédia. E agora, a tragédia das tragédias, essa que conta mais de 100 mortos, atinge 83% dos municípios gaúchos e deixa mais de meio milhão de pessoas ao relento. O que essa calamidade expressa? Primeiro, a ausência de políticas voltadas para a prevenção de catástrofes. As forças naturais recebem as críticas, mas a mãe natureza não tem tanta culpa. A obra de devastação a cargo do homem, em sua incessante obstinação para apressar o fim do planeta, é a principal responsável por catástrofes. Quantos parlamentares dedicaram verbas para a prevenção de enchentes? Um, dois, três? Os homens públicos deveriam ir ao paredão da vergonha por não construírem barreiras preventivas nos espaços que administram.
O trabalho voluntário mostra a solidariedade de brasileiros na tragédia gaúcha. E serve de bálsamo para amenizar a dor de milhares de aflitos. Mas é isso que sobra ante a maré de improvisação que grassa na administração de Estados e municípios. Para arrematar o mosaico de desleixo, competências constitucionais são distribuídas de maneira irregular entre os entes federativos. União, estados e municípios repartem áreas comuns como serviços sociais, meio-ambiente e habitação etc. O resultado é uma sobreposição de ações, particularmente nos palanques midiáticos, aqueles que impressionam eleitores. Projetos escondidos, como os de saneamento, são relegados ao segundo plano. Um governo eficaz é aquele com aptidão para prever problemas e antecipar soluções.
É triste concluir que as calamidades de hoje se repetiram no passado e serão vividas no amanhã. Um eterno retorno, um eterno recomeço. O olhar da égua no telhado parece responder ao presidente Lula, que fez a provocação: o que estaria ela pensando? Ora, pensando na malandragem que dita a conduta de demagogos, oportunistas, gente que tenta tirar proveito da miséria humana.
O Brasil vive um momento de triste perplexidade. Sem entender como e porque um Estado tão bem-dotado de infraestrutura, um dos mais desenvolvidos da Federação, a 5ª. maior economia nacional, seja impiedosamente destruído por precipitações pluviométricas. Como não se previu tamanha calamidade? Como tem sido possível que os danos às pessoas sejam de tal monta, que a vida de centenas de famílias seja jogada no despenhadeiro? Nietzche, o magistral filósofo, prenunciou: a ampulheta do tempo, vira e mexe, impõe o eterno recomeço como nosso conceito de devir.
A cada estação do ano, o Brasil ganha as cenas de vidas destroçadas. Vai, aqui, pequena memória.
Em 1975, um vazamento de 6 mil toneladas de óleo, do petroleiro Tarik Iba Ziyad, fretado pela Petrobras, contaminou a baía de Guanabara. O maior vazamento de óleo no Brasil. Em 1980, no Vale da Morte, em Cubatão, a liberação de gases tóxicos por indústrias do polo petroquímico, aumentou os problemas de saúde na região. Ainda em Cubatão, em 1984, na Vila Socó, um grande incêndio matou 93 pessoas. Falha na tubulação. Em 1987, foi a vez de Goiânia, com o acidente radiológico com um aparelho de radioterapia abandonado, dentro do qual estava uma cápsula de césio-137. Outro vazamento de óleo na baía de Guanabara, em 2000; responsabilidade da Petrobras. 25 praias contaminadas. Ainda em 2000, no Paraná, houve um vazamento de óleo nos rios Barigui e Iguaçu. 4 milhões de litros de óleo. Vimos, em 2001, o naufrágio da plataforma P-36, na bacia de Campos, que despejou 1500 toneladas de óleo a bordo, matando 11 pessoas. A seguir, em 2003, a indústria Cataguases, em Minas Gerais, despejou 1 bilhão e 400 milhões de lixívia nas águas da bacia hidrográfica do Paraíba do Sul. Em 2007, o rompimento de barragem Bom Jardim em MG. Em 2011, outro vazamento de óleo na bacia de Campos, RJ. No porto de Santos, em 2015, ocorreu o incêndio na Ultracargo, durante transferência de tanques de gasolina e etanol. Ainda em 2015, houve o vazamento da barragem do Fundão, em Mariana, MG, com 62 milhões de m3 de lama. Responsabilidade da empresa Samarco. Em janeiro de 2019, em Brumadinho, MG, viu-se um dos maiores desastres ambientais no Brasil, com o rompimento da barragem Mina do Feijão, sob responsabilidade da companhia Vale do Rio Doce. 270 mortos. Uma tragédia. E agora, a tragédia das tragédias, essa que conta mais de 100 mortos, atinge 83% dos municípios gaúchos e deixa mais de meio milhão de pessoas ao relento. O que essa calamidade expressa? Primeiro, a ausência de políticas voltadas para a prevenção de catástrofes. As forças naturais recebem as críticas, mas a mãe natureza não tem tanta culpa. A obra de devastação a cargo do homem, em sua incessante obstinação para apressar o fim do planeta, é a principal responsável por catástrofes. Quantos parlamentares dedicaram verbas para a prevenção de enchentes? Um, dois, três? Os homens públicos deveriam ir ao paredão da vergonha por não construírem barreiras preventivas nos espaços que administram.
O trabalho voluntário mostra a solidariedade de brasileiros na tragédia gaúcha. E serve de bálsamo para amenizar a dor de milhares de aflitos. Mas é isso que sobra ante a maré de improvisação que grassa na administração de Estados e municípios. Para arrematar o mosaico de desleixo, competências constitucionais são distribuídas de maneira irregular entre os entes federativos. União, estados e municípios repartem áreas comuns como serviços sociais, meio-ambiente e habitação etc. O resultado é uma sobreposição de ações, particularmente nos palanques midiáticos, aqueles que impressionam eleitores. Projetos escondidos, como os de saneamento, são relegados ao segundo plano. Um governo eficaz é aquele com aptidão para prever problemas e antecipar soluções.
É triste concluir que as calamidades de hoje se repetiram no passado e serão vividas no amanhã. Um eterno retorno, um eterno recomeço. O olhar da égua no telhado parece responder ao presidente Lula, que fez a provocação: o que estaria ela pensando? Ora, pensando na malandragem que dita a conduta de demagogos, oportunistas, gente que tenta tirar proveito da miséria humana.
O jornalismo em extinção
Encontrámo-la recentemente nos títulos de dois diagnósticos desta situação nos Estados Unidos: um, publicado no final de janeiro na revista Atlantic assinado por Paul Farhi, que foi um importante repórter do Washington Post; outro, no mês seguinte, da autoria de Clare Malone, na The New Yorker.
Usando um acento catastrófico que uma prudente interrogação não consegue relativizar, ambos evocam a extinção como um horizonte plausível. O primeiro pergunta: “Is American Journalism Headed Toward an ‘Extinction-Level Event?’”; o segunda insiste quase com os mesmos termos: “Is the Media Prepared for an Extinction-Level Event?”. Não é ainda um réquiem, mas está próximo.
O que se passa nos Estados Unidos, neste domínio, não é certamente muito diferente do que se passa na Europa, só que talvez num grau mais elevado e com algum avanço no tempo. O horizonte é o mesmo.
O que ficamos então a saber acerca do estado de coisas nos Estados Unidos, informados por estes e outros artigos sobre o mesmo assunto? Ficamos a saber que a hemorragia mais forte é a da imprensa regional: em média, todas as semanas morrem duas publicações e meia (jornais diários, semanários, mensais).
Num país tão extenso como os Estados Unidos, os jornais regionais tiveram sempre um papel importantíssimo e foram um factor fundamental dos equilíbrios democráticos e da vida cultural e comunitária. Quando esse espaço é ocupado pelas redes sociais, ficam à solta as teorias do complot, as fake news, os conteúdos gerados pela inteligência artificial que multiplicam a desinformação, o caos, o convite à passagem aos actos de violência. O ambiente de radicalização e pré-guerra civil que se vive nos Estados Unidos faz parte deste panorama que promove e alimenta a divisão e os extremismos.
Há uma pergunta que começa a ser posta e que leva a pensar os caminhos que estão a tomar as tradicionais democracias liberais: “Estamos ainda em democracia?”. Esta pergunta tem uma especial incidência quando se pensa no que está a acontecer aos jornais e ao jornalismo. Alguns números fornecidos nos artigos citados: em 2023 foram eliminados nos Estados Unidos 21.400 postos de trabalho nos media tradicionais. Grandes jornais como o Los Angeles Times (que despediu mais de 20% da sua redacção) e o Washington Post não foram poupados. Este último teve no ano passado um défice de cem milhões de dólares. No entanto, tinha sido um dos que mais prosperou durante a presidência de Donald Trump. Como é sabido, o “espectáculo” Trump proporcionou aos jornais um festim permanente que lhes valeu um grande aumento de leitores.
O declínio dos meios de comunicação tradicionais já suscita esta pergunta formulada pela autora do artigo da New Yorker: “Estamos a assistir ao fim da era dos meios de comunicação de massa?”. Este declínio já começou há décadas, mas foi acelerado pela Internet, pela digitalização generalizada, pelas plataformas. As receitas publicitárias que garantiam o negócio dos jornais passaram a fluir na direcção de colossos como a Google. Quando deixa de ser possível sustentar o jornalismo como um negócio, muitas publicações usam um pseudojornalismo como operação de fachada para outros negócios e entram numa zona obscura.
De todas as “grandes regressões” que se deram desde o início deste século, esta é uma das mais velozes e contundentes. O seu efeito político é bem visível, no avanço de factores que levam à degradação do espaço público, ao enorme teor de conflito social e político, ao empobrecimento cultural. As noções de pós-verdade e pós-democracia assentam nestes terrenos onde vacila tudo o que dantes parecia seguro.
E assim estão criadas as condições para promover um mundo em que já nem serve a distinção entre o verdadeiro e o falso, nem faz apelo a uma ideologia dotada de uma coerência sistemática, como acontecia nos regimes totalitários do século XX. A mentira ideológica e a propaganda eram ainda uma peça da engrenagem da política moderna.
Aquilo a que hoje se chama pós-verdade tem que ver com a hegemonia das novas fontes de informação e dos meios de produção e circulação de notícias, dados e visões do mundo que apelam à divisão e à violência, subtraindo-se a qualquer controlo editorial.
Perante isto, o jornalismo está a revelar-se tanto mais impotente quanto está obrigado a investir a sua energia na luta pela própria sobrevivência.
Usando um acento catastrófico que uma prudente interrogação não consegue relativizar, ambos evocam a extinção como um horizonte plausível. O primeiro pergunta: “Is American Journalism Headed Toward an ‘Extinction-Level Event?’”; o segunda insiste quase com os mesmos termos: “Is the Media Prepared for an Extinction-Level Event?”. Não é ainda um réquiem, mas está próximo.
O que se passa nos Estados Unidos, neste domínio, não é certamente muito diferente do que se passa na Europa, só que talvez num grau mais elevado e com algum avanço no tempo. O horizonte é o mesmo.
O que ficamos então a saber acerca do estado de coisas nos Estados Unidos, informados por estes e outros artigos sobre o mesmo assunto? Ficamos a saber que a hemorragia mais forte é a da imprensa regional: em média, todas as semanas morrem duas publicações e meia (jornais diários, semanários, mensais).
Num país tão extenso como os Estados Unidos, os jornais regionais tiveram sempre um papel importantíssimo e foram um factor fundamental dos equilíbrios democráticos e da vida cultural e comunitária. Quando esse espaço é ocupado pelas redes sociais, ficam à solta as teorias do complot, as fake news, os conteúdos gerados pela inteligência artificial que multiplicam a desinformação, o caos, o convite à passagem aos actos de violência. O ambiente de radicalização e pré-guerra civil que se vive nos Estados Unidos faz parte deste panorama que promove e alimenta a divisão e os extremismos.
Há uma pergunta que começa a ser posta e que leva a pensar os caminhos que estão a tomar as tradicionais democracias liberais: “Estamos ainda em democracia?”. Esta pergunta tem uma especial incidência quando se pensa no que está a acontecer aos jornais e ao jornalismo. Alguns números fornecidos nos artigos citados: em 2023 foram eliminados nos Estados Unidos 21.400 postos de trabalho nos media tradicionais. Grandes jornais como o Los Angeles Times (que despediu mais de 20% da sua redacção) e o Washington Post não foram poupados. Este último teve no ano passado um défice de cem milhões de dólares. No entanto, tinha sido um dos que mais prosperou durante a presidência de Donald Trump. Como é sabido, o “espectáculo” Trump proporcionou aos jornais um festim permanente que lhes valeu um grande aumento de leitores.
O declínio dos meios de comunicação tradicionais já suscita esta pergunta formulada pela autora do artigo da New Yorker: “Estamos a assistir ao fim da era dos meios de comunicação de massa?”. Este declínio já começou há décadas, mas foi acelerado pela Internet, pela digitalização generalizada, pelas plataformas. As receitas publicitárias que garantiam o negócio dos jornais passaram a fluir na direcção de colossos como a Google. Quando deixa de ser possível sustentar o jornalismo como um negócio, muitas publicações usam um pseudojornalismo como operação de fachada para outros negócios e entram numa zona obscura.
De todas as “grandes regressões” que se deram desde o início deste século, esta é uma das mais velozes e contundentes. O seu efeito político é bem visível, no avanço de factores que levam à degradação do espaço público, ao enorme teor de conflito social e político, ao empobrecimento cultural. As noções de pós-verdade e pós-democracia assentam nestes terrenos onde vacila tudo o que dantes parecia seguro.
E assim estão criadas as condições para promover um mundo em que já nem serve a distinção entre o verdadeiro e o falso, nem faz apelo a uma ideologia dotada de uma coerência sistemática, como acontecia nos regimes totalitários do século XX. A mentira ideológica e a propaganda eram ainda uma peça da engrenagem da política moderna.
Aquilo a que hoje se chama pós-verdade tem que ver com a hegemonia das novas fontes de informação e dos meios de produção e circulação de notícias, dados e visões do mundo que apelam à divisão e à violência, subtraindo-se a qualquer controlo editorial.
Perante isto, o jornalismo está a revelar-se tanto mais impotente quanto está obrigado a investir a sua energia na luta pela própria sobrevivência.
A cosmovisão da floresta e o fim do mundo
Num país democrático e multiétnico como nosso, coexistem diferentes formas de pensar e de viver, embora nem sempre em harmonia. Uma delas merece cada vez mais atenção, pela contribuição que pode dar ao planeta, sobretudo à ciência, nesse momento de emergência climática: a cosmologia indígena. Diante da destruição das florestas e consequente aquecimento global, da frequência e escala crescentes dos desastres naturais, os saberes indígenas ancestrais começam a ganhar corações e mentes na sociedade.
Não se trata mais de um debate sobre modelos de desenvolvimento, pura e simplesmente. Trata-se da dramática condição humana que emerge nos “desastres naturais”, como a que estamos vivendo no Rio Grande do Sul. A capacidade de adaptação às mudanças, hoje focada nas relações econômicas e na inovação tecnológica, precisa voltar ao leito da relação evolutiva dos seres humanos com a natureza, porque põe em xeque a nossa capacidade de adaptação às mudanças ambientais, sobretudo climáticas.
A vida e os saberes indígenas consideram o universo em sua totalidade e inserem o ser humano em uma complexa rede de relações, que envolve o natural e sobrenatural. Embora violentamente agredidos pelos interesses de mercado e a modernização permanente das atividades econômicas, esse conhecimento não está subordinados à lógica dos interesses de mercado. Historicamente, cederam lugar à razão e a ciência, mas os fatos mostram que ainda temos muito a aprender com nossos 350 povos indígenas.
Assim como estamos aprendendo e ensinando, simultaneamente, o manejo e aproveitamento dos recursos naturais de maneira a não esgotar suas possibilidades às comunidades tradicionais. Quilombolas, pescadores artesanais, as quebradeiras de babaçu, seringueiros, castanheiros, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, sertanejos, pantaneiros, geraizeiros e caatingueiros, entre outros, ficaram à margem da modernização, porém, herdaram e/ou desenvolveram saberes que garantem sua sobrevivência em condições muito desfavoráveis.
Precisamos dar mais atenção às vozes dissonantes desses setores, como a de Aírton Krenac, o filósofo indígena, recém-empossado na Academia Brasileira Letras (ABL). Ativista do movimento socioambiental, Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, Minas Gerais. Exerceu um papel crucial na organização e conquista dos Direitos Indígenas na Constituinte de 1988.
O nome Krenak significa cabeça (kre) da terra (nak). Os Krenak ou Borun são os útimos “Botocudos do Leste”, nome atribuído pelos portugueses no fim do século 18 aos grupos que usavam botoques auriculares ou labiais. São conhecidos também por Aimorés e se auto-denominam Grén ou Krén. Em 2015, a catástrofe de Mariana (MG), devastou toda a fauna e vegetação do Rio Doce, atingindo a principal fonte de subsistência dos Krenak, representados por pouco mais de 600 sobreviventes que ainda ocupam a região.
Lançado em 2019 pela Companhia das Letras, "Ideias para adiar o fim do mundo" é o livro mais famoso de Krenak. A obra critica a ideia de humanidade como um conceito separado da natureza. Essa premissa seria baseada no desastre socioambiental da nossa era, o Antropoceno. Somente através do reconhecimento da diversidade e da recusa da ideia do humano como superior aos outros seres, é possível dar outro significado às nossas existências e frear a caminhada para o colapso ambiental.
Sua obra filosófica sustenta-se na cosmologia indígena. O amanhã não está a venda, de abril de 2020, sobre como a pandemia de Covid 19, nos fez refletir sobre o que é a “normalidade” e o que significaria voltar para esse status após a crise social, econômica e sanitária. Publicado no final de 2020, A vida não é útil é um diálogo sobre o cenário pandêmico, no qual aponta as tendências destrutivas da civilização, durante um governo negacionista de extrema-direita.
Mais recente, seu livro Futuro ancestral confronta o senso comum ao explorar a ideia de futuro: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.” Esse raciocínio nos remete à tragédia do Rio Rio Grande do Sul. Uma árvore derrubada na Amazônia, como num efeito borboleta, impacta o clima dos pampas. Esse entendimento já tem um consenso científico, mas não tem a devida tradução nas políticas públicas, que vão na contramão.
O Congresso derrubou o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a itens da Lei dos Agrotóxicos que deram ao Ministério da Agricultura competência exclusiva para registrar agrotóxicos, esvaziando Ibama e Anvisa. Outros 25 projetos estão prontos para votação com objetivo de enfraquecer a legislação ambiental e “passar a boiada”. Os deputados Lucas Redecker (PSDB-RS) e Jerônimo Goergen (PP-RS), além do senador licenciado Luis Carlos Heinze (PP-RS), gaúchos, estão entre os autores de leis favoráveis a flexibilização de áreas de preservação ambiental.
O próprio governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), promoveu cortes no orçamento da Defesa Civil e nos projetos de resposta a desastres ambientais. Em 2019, propôs um projeto que alterou 480 pontos do Código Florestal estadual. A prefeitura de Porto Alegre nada investiu nenhum na prevenção contra enchentes em 2023. Em março, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, com 38 votos a favor e 18 contra, um projeto que permite devastar campos nativos do tamanho do Rio Grande do Sul e do Paraná juntos.
Não se trata mais de um debate sobre modelos de desenvolvimento, pura e simplesmente. Trata-se da dramática condição humana que emerge nos “desastres naturais”, como a que estamos vivendo no Rio Grande do Sul. A capacidade de adaptação às mudanças, hoje focada nas relações econômicas e na inovação tecnológica, precisa voltar ao leito da relação evolutiva dos seres humanos com a natureza, porque põe em xeque a nossa capacidade de adaptação às mudanças ambientais, sobretudo climáticas.
A vida e os saberes indígenas consideram o universo em sua totalidade e inserem o ser humano em uma complexa rede de relações, que envolve o natural e sobrenatural. Embora violentamente agredidos pelos interesses de mercado e a modernização permanente das atividades econômicas, esse conhecimento não está subordinados à lógica dos interesses de mercado. Historicamente, cederam lugar à razão e a ciência, mas os fatos mostram que ainda temos muito a aprender com nossos 350 povos indígenas.
Assim como estamos aprendendo e ensinando, simultaneamente, o manejo e aproveitamento dos recursos naturais de maneira a não esgotar suas possibilidades às comunidades tradicionais. Quilombolas, pescadores artesanais, as quebradeiras de babaçu, seringueiros, castanheiros, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, sertanejos, pantaneiros, geraizeiros e caatingueiros, entre outros, ficaram à margem da modernização, porém, herdaram e/ou desenvolveram saberes que garantem sua sobrevivência em condições muito desfavoráveis.
Precisamos dar mais atenção às vozes dissonantes desses setores, como a de Aírton Krenac, o filósofo indígena, recém-empossado na Academia Brasileira Letras (ABL). Ativista do movimento socioambiental, Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, Minas Gerais. Exerceu um papel crucial na organização e conquista dos Direitos Indígenas na Constituinte de 1988.
O nome Krenak significa cabeça (kre) da terra (nak). Os Krenak ou Borun são os útimos “Botocudos do Leste”, nome atribuído pelos portugueses no fim do século 18 aos grupos que usavam botoques auriculares ou labiais. São conhecidos também por Aimorés e se auto-denominam Grén ou Krén. Em 2015, a catástrofe de Mariana (MG), devastou toda a fauna e vegetação do Rio Doce, atingindo a principal fonte de subsistência dos Krenak, representados por pouco mais de 600 sobreviventes que ainda ocupam a região.
Lançado em 2019 pela Companhia das Letras, "Ideias para adiar o fim do mundo" é o livro mais famoso de Krenak. A obra critica a ideia de humanidade como um conceito separado da natureza. Essa premissa seria baseada no desastre socioambiental da nossa era, o Antropoceno. Somente através do reconhecimento da diversidade e da recusa da ideia do humano como superior aos outros seres, é possível dar outro significado às nossas existências e frear a caminhada para o colapso ambiental.
Sua obra filosófica sustenta-se na cosmologia indígena. O amanhã não está a venda, de abril de 2020, sobre como a pandemia de Covid 19, nos fez refletir sobre o que é a “normalidade” e o que significaria voltar para esse status após a crise social, econômica e sanitária. Publicado no final de 2020, A vida não é útil é um diálogo sobre o cenário pandêmico, no qual aponta as tendências destrutivas da civilização, durante um governo negacionista de extrema-direita.
Mais recente, seu livro Futuro ancestral confronta o senso comum ao explorar a ideia de futuro: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.” Esse raciocínio nos remete à tragédia do Rio Rio Grande do Sul. Uma árvore derrubada na Amazônia, como num efeito borboleta, impacta o clima dos pampas. Esse entendimento já tem um consenso científico, mas não tem a devida tradução nas políticas públicas, que vão na contramão.
O Congresso derrubou o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a itens da Lei dos Agrotóxicos que deram ao Ministério da Agricultura competência exclusiva para registrar agrotóxicos, esvaziando Ibama e Anvisa. Outros 25 projetos estão prontos para votação com objetivo de enfraquecer a legislação ambiental e “passar a boiada”. Os deputados Lucas Redecker (PSDB-RS) e Jerônimo Goergen (PP-RS), além do senador licenciado Luis Carlos Heinze (PP-RS), gaúchos, estão entre os autores de leis favoráveis a flexibilização de áreas de preservação ambiental.
O próprio governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), promoveu cortes no orçamento da Defesa Civil e nos projetos de resposta a desastres ambientais. Em 2019, propôs um projeto que alterou 480 pontos do Código Florestal estadual. A prefeitura de Porto Alegre nada investiu nenhum na prevenção contra enchentes em 2023. Em março, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, com 38 votos a favor e 18 contra, um projeto que permite devastar campos nativos do tamanho do Rio Grande do Sul e do Paraná juntos.
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