segunda-feira, 13 de abril de 2020

O melhor de Bolsonaro na pandemia é sua ausência na gestão da crise

A reversão da demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na semana passada deu a impressão de que Jair Bolsonaro havia se tornado uma espécie de rainha da Inglaterra com menos experiência militar relevante. A jovem Elizabeth de Windsor, como se sabe, foi mecânica de caminhões durante a Segunda Guerra Mundial.

Parece ter havido um esforço coordenado entre os brasileiros de bom senso para manter Bolsonaro isolado até o fim da pandemia. Congressistas, militares, ministros do STF e mesmo alguns ministros do próprio governo parecem ter atuado para impedir que o presidente da República sabotasse o esforço dos governadores para achatar a curva de contágio.

Se o Brasil sobreviver à epidemia, vai ser graças aos esforços dessa turma.

Mas ainda há um risco grande de tudo dar errado. Porque não basta que o presidente da República não atrapalhe. No sistema brasileiro, é preciso que ele trabalhe, pois há coisas que só ele pode fazer.


Bolsonaro, que fique claro, continua atrapalhando o máximo que consegue. Vai às ruas para sinalizar que o isolamento é desnecessário, conspira abertamente contra o próprio ministro da Saúde, vende para seu público as mentiras vagabundas de Osmar Terra. Fala em “isolamento vertical”, mas, na hora de dizer como os velhos seriam isolados, diz que é problema das famílias. Compra briga com os chineses, grandes produtores de material médico de que precisamos desesperadamente.

No fundo, a mensagem de Bolsonaro para os doentes e parentes das vítimas é a mesma de Augusto Heleno para os congressistas um mês atrás. Bolsonaro não trabalha 15 minutos por dia para combater a epidemia. A revista britânica The Economist citou Bolsonaro como um dos quatro líderes mundiais que menosprezam a ameaça da Covid-19 (os outros são os ditadores de Nicarágua, Belarus e Turcomenistão).

Tão trágica quanto o discurso e o exemplo do presidente da República é sua omissão nas áreas em que só o Poder Executivo pode agir. É o caso da economia.

Bolsonaro gasta seu tempo brigando com os governadores enquanto deveria estar liderando a conversão da indústria nacional em produtora de máscaras, remédios, respiradores. Ao invés de fazer lives com propaganda de remédio, deveria ter pressionado pela liberação mais rápida da renda básica emergencial.

Estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas, mostra que as medidas tomadas até agora, por mais importantes que tenham sido, não são suficientes para preservar a renda dos brasileiros. O Brasil ainda não conseguiu garantir aos trabalhadores brasileiros a capacidade econômica de ficar em casa durante o isolamento, e isso é tarefa para a Presidência.

A iniciativa, a ousadia, a visão de longo prazo e a cobrança de eficiência que estão faltando à equipe econômica deveriam estar vindo do Planalto. Mas o Planalto não tem outro plano senão a volta ao trabalho e a aceitação da mortandade em massa. Resta torcer para que Guedes ou alguma coalizão de ministros assuma as rédeas do processo e escape da sabotagem presidencial.

De Jair Bolsonaro, o melhor que se pode esperar continua sendo a ausência. Ele é isso aí, o exato oposto do líder de que o Brasil precisa agora.
Celso Rocha de Barros

Morrer sozinho é desumano

Quem vai segurar a mão na hora da despedida derradeira? Quem dará o último beijo? Quem vai pronunciar as últimas palavras de conforto? Quem irá cerrar as pálpebras? Em tempos de pandemia de coronavírus ficou difícil responder essas perguntas. Muitas pessoas no leito da morte estão isoladas. Sem família e sem amigos, sem carinho e sem ternura. Elas deixam a vida sem poderem se despedir.

A morte solitária é uma das consequências da proibição de visitas a hospitais e lares de idosos imposta na maioria dos países afetados pela pandemia. É difícil imaginar algo mais desumano. Priva os pacientes, especialmente aqueles à beira da morte, de seus últimos instantes de alegria, de seus últimos desejos, de seus últimos anseios.

Ver a filha ou o filho por uma última vez? Abraçar o neto? Segurar a mão do parceiro e sentir o carinho em seu olhar? Saber que seu melhor amigo mais uma vez está do seu lado? Não foi para isso que muitos pacientes suportaram toda a dor e terapias?


A proibição de contato é uma tortura também para os familiares. Eles não puderam estar presentes quando o ente querido tanto precisava deles. Não puderam demonstrar seus sentimentos e afeto, agradecer por uma vida em conjunto nem dar ou receber conforto. Essa sensação dolorosa certamente acompanhará muitos pelo resto de suas vidas.

Por mais importante e correta que seja do ponto de vista epidemiológico, a proibição de visitas é um sinal de desumanidade em meio à crise do coronavírus, que, aliás, não pode ser combatida sem amor e solidariedade.

É claro que é correto e importante que tudo seja feito para proteger os doentes nos hospitais ou para proteger os idosos nos asilos do risco de uma contaminação.

No entanto, o isolamento dos idosos e outros doentes deve valer só até o leito de morte. É uma questão de encontrar um meio termo entre duas questões legítimas: proteger de uma infecção pelo coronavírus e evitar a morte em isolamento social.

Na Alemanha, muitos lares de idosos e hospitais tentam reagir, abrindo exceções e permitindo que as pessoas à beira da morte se despeçam dos familiares. No entanto, a implementação ainda é um problema em muitos lugares, e pacientes de covid-19 gravemente doentes em geral já nem podem mais receber visitas.

Mesmo que o vírus seja difícil de controlar, uma despedida digna também deveria ser possível em tempos de coronavírus. Talvez sejam possíveis testes rápidos para os visitantes? Talvez haja mais roupas e máscaras protetoras à disposição, também para os familiares que querem se despedir de seus entes queridos?

Eu me inclino perante todos os médicos, enfermeiros, religiosos e agentes funerários, e, acima de tudo, perante todas as famílias afetadas, que a cada dia tentam demonstrar humanidade no meio da crise do coronavírus e, por isso, suportam uma carga inimaginável.

Eles percorrem a Via Dolorosa que todos os cristãos evitarão nesta Páscoa por temerem uma contaminação. Eles mostram que a humanidade às vezes está acima das proibições. E que a vida pode celebrar a ressurreição.

Braço forte, mão amiga

Bolsonaro é um dos quatro líderes mundiais que ainda subestima a ameaça do coronavírus à saúde pública, ao lado dos presidentes autoritários da Nicarágua, Bielorrússia e Turquemenistão
The Guardian

Bolsonaro é descartável – nós, os idosos, não

Sinto-me bem aos 70 anos de idade, a quatro meses de completar 71. Há 7 anos ganhei duas pontes safena e uma mamária pelos mãos do cirurgião Fábio Jatene e aos cuidados do cardiologista Roberto Kalil. Nada de cloroquina. Só agora começo a ouvir falar dela como a droga dos sonhos de Bolsonaro.

Trabalho, em média, 16 horas por dia. Se você faz o que gosta, trabalhar não cansa. Estou acima do peso. E fumo dois charutos por dia, o que não deveria. Não me exercito com regularidade, apesar dos apelos do meu filho mais velho. Mas quando vou à academia, pedalo quase 7 quilômetros em 30 minutos.


Vivo em paz com minha mulher, com meus três filhos e seis netos. Ai deles se faltarem ao almoço dominical obrigatório. O almoço foi suspenso e deixei de vê-los há pelo menos 30 dias. O confinamento não me faz mal – salvo por não poder reunir a família. De certa forma, vivo confinado desde que inaugurei este blog há 16 anos.

Não arredarei o pé de casa até que me convença de que o perigo passou. Mesmo assim penso em fazer como soldados japoneses que continuaram lutando a 2ª Guerra Mundial décadas depois de ela ter terminado. Não seria uma má ideia, uma vez que isso não implicaria em me desconectar do mundo, por impossível.

Mas a propósito do que resolvi escrever sobre mim mesmo, o que raramente faço? Para dizer que mesmo fazendo parte do grupo mais vulnerável ao coronavírus não autorizo ninguém, muito menos Jair Bolsonaro, a me tratar, e aos demais da minha idade e nas mesmas condições, como mercadoria descartável.

Perfeitamente descartável seria ele, um aventureiro que se elegeu presidente sem dispor do mínimo preparo para o cargo. Que não tem e nunca teve uma proposta de governo para chamar de sua. E que diante do seu primeiro e grande desafio desde a posse, vaga por aí perplexo, amalucado, sem saber direito o que fazer.

Está cercado por ministros medíocres à sua imagem e semelhança, salvo honrosas exceções. E desesperado ao ver que poderá ir pelo ralo a única ideia que teve e persegue com obstinação: a de se reeleger em 2022. Vive para isso e para mais nada. Pois deveria se cuidar porque nem mesmo seu atual mandato está seguro.

A não ser capaz de reinventar-se, dificilmente governará o país por mais dois anos e meio. Não se tira presidente em meio a uma pandemia, concordo. Mas se tira depois que ela passar, depois que se avalie sua responsabilidade por tudo que aconteceu e depois que as panelas emudeçam e as ruas comecem a falar.

Os militares, 21 anos depois, voltaram aos quartéis sem que o país sofresse forte abalo. Dois presidentes da República foram depostos, dois ex-presidentes foram presos, e a democracia seguiu em frente. Por mais que Bolsonaro tente enfraquecê-la, Congresso e Justiça têm resistido a todos os seus arreganhos. E assim será.

Ou baixa a bola e vira um presidente mais ou menos normal, o que, convenhamos, exigiria muito dele, ou irá para o olho da rua, o que parece ser seu destino. E página virada.

Brasil socorre 'doentes'


'Quovadis-19?'

Eu, na minha pessoa, pessoal e intransferível, Agamenon Mendes Pedreira, o jornalista mais inativo em atividade no Brasil, continuo resistindo ao coronavírus. Inclusive dando furos. Poucos sabem, mas fui eu o primeiro jornalista a dizer que “fui eu o primeiro a dizer” e também fui o primeiro a declarar “esta semana vai ser a pior”.

Já enfrentei muitas tragédias, inclusive a gripezinha espanhola, uma moléstia que começava entre os seios das mulheres do sexo feminino. Também sobrevivi a todos os governos que sugam o sangue dos brasileiros muito mais que o mosquito da dengue, este injustiçado e que, agora, por conta da COVID-19, zumbe em completo ostracismo, coitado.

Estou fazendo tudo que mandam os médicos, especialmente o Dr. Dráuzio Varíola, que me confidenciou que “COVID-19 no Carandiru dos outros é refresco”.

O Papa Francisco em pessoa ligou direto para o Vaticano para me informar que está fazendo uma revisão completa da Bíblia Sagrada de cabo a rabo. Além de reescrever o Apocalipse trocando o 666, o número da Besta, pelo 17.

O Sumo Pontífice também está reescrevendo os Evangelhos, principalmente aquela passagem em que o Pôncio Pilatos lava as mãos. O novo texto sagrado não só absolve o tribuno romano de omissão como também recomenda seguir o exemplo do governador da Judeia: lavar as mãos obsessivamente com água e sabão, sem esquecer o álcool em gel. Por falar nisso, parem de dar esmola pra mendigo que eles acabam gastando tudo em álcool gel para encher a cara, as mãos e outras partes remotas de sua anatomia pedinchona.

É claro que este não é o meu caso, já que parei de beber (e comer) faz tempo. Além do mais, álcool em gel e máscaras protetoras sumiram das prateleiras assim que se tornaram obrigatórios, fato comum no Brasil onde os “riscos” ficam cada vez mais “riscos” e os pobres cada vez mais pobres.

E já que estamos nessa vive de trocadilhos infames, o ministro Manetta avisou que quem tiver mais de 60 anos e ganhar mais de 1000 salários mínimos vai fazer parte do “grupo de ricos”, com direito a UTI e respirador artificial particular.

Cloroquina então, nem pensar. O milagroso medicamento virou uma espécie de caviar malossol do tipo beluga, tanto que que não é mais vendido em farmácias, mas pode ser encontrado nas lojas H. Stern e na Deli Gil da Cobal do Leblon.

E fica a pergunta que não é de um milhão de dólares mas de 600 reais: cadê o meu Bolsa Vírus? Onde vou pegar essa grana? Para provar que sou um desassistido desabonado, já pedi um atestado d’O Antagonista comprovando que nunca me foi pago um tostão pelos meus textos. Para assinar o documento, o meu amigo Diogo Mainardi me cobrou 200 euros, em quatro prestações de 50 sem juros no cartão. Claro que não vou pagar.

Aliás, na fila para se cadastrar como miserável, encontrei atrás de mim um juiz do STF e na minha frente o presidente de um grande banco. Todos respeitando a distância higiênica de 3 metros.

Só não entendo uma coisa: essa campanha de que nenhum brasileiro pode ir pra rua. Como assim? Há tempos que mais de 13 milhões já foram mandados pra rua e de lá não tem mais pra onde ir.
Felizmente também existem as boas notícias e a humanidade continua surpreendendo. Por conta da pandemia, a picaretagem não acabou. Ao contrário, está cada vez mais forte e vigorosa comprovando que é imune ao coronavírus.

Todas as empresas (até os bancos! Pasmem!) viraram bonzinhos e solidários. Mesmo as séries da Netflix ficaram boas de uma hora pra outra. Enquanto isso, o lixo cultural está se acumulando nas ruas porque os lixeiros também resolveram fazer home office.

Por falar em home office, a minha patroa, a Isaura, já adotou essa nova prática de exercício profissional: continua servindo a sua famosa rabada para os entregadores de delivery, técnicos da NET, leiteiros e padeiros, que fazem uma fila para serem atendidos também obedecendo rigorosamente os 3 metros de distância profilática.

Atenção: leiam cuidadosamente estas mal traçadas linhas porque eu sempre fiz questão de dar a última palavra: ZWINGLIANO.

Podem checar no dicionário.
Agamenon Mendes Pedreira já tomou 6 doses da vacina antigripe porque é “de grátis” 

Gripezinha de 'arrependimento'

Se arrependimento matasse... Nunca matou. está mais para "gripezinha" do que para coronavírus. É não ter o que falar da própria burrice, ou do egoísmo, da desigualdade de classe, da falta de cultura poítica, da inteligência microscópica e da própria insignificância.

O "bolsonarismo arrependido" é uma mascarada. Em preces para excomungar o coronavírus de casa, esconde no armário aqueles ideais de autoritarismo e de segregacionismo, e no sangue a desigualdade social, racial e de gênero. É mau caráter de berço que aplaude qualquer Sassá Mutema como ovacionou Collor e se prestou nacionalisticamente para cantar "Pra frente Brasil", quando nas prisões ditatoriais baixavam no pau-de-arara inocentes que apenas cometeram a condenação da ditadura.

Os "arrependidos" queriam o fim da corrupção para livrar o país da praga, elegendo quem usava laranjas e fazia escancaradamente rachadinha em gabinetes políticos. Para a limpeza ética, convocaram os igualmente sujos. E fiéis seguidores da milícia, usaram a tropa para arrebanhar votos.

Aplaudiram os planos mágicos de uma economia de privilégios ao dinheiro para quem o país melhoraria se os fundos de proteção ao trabalhador fossem limpos, seus salários achatados. Como agora, defendem a redução salarial nas empresas com a redução do trabalho, mas descartam qualquer medida idêntica na privilegiatura do serviço público.

Os "arrependidos", diante da pandemia, são a cara daqueles alemães das cidades próximas levados pelo Exército norte-americano para conhecer os campos de concentração bem debaixo de seus narizes. Faziam cara de horror, punham lenço no nariz para tapar a podridão, e na cara de pau diziam desconhecer as atrocidades contra os judeus. Mas as suas cidades muitas vezes eram cobertas de fumaça de cheiro estranho (carne e osso queimados) e fuligem dos crematórios funcionando dia e noite.

Se arrependimento matasse para valer, ao menos serviria para fazer uma limpeza com milhares de suicídios por vergonha na cara. No Japão, o seppuku é a solução dos verdadeiramente envergonhados por mancharem a honra dos ancestrais e familiares em crimes como corrupção ou improbidade administrativa.

Quem acredita que isso aconteceria no Brasil? Resta apenas o arrependimento de carteirada. Em redes sociais e na própria mídia, multiplica-se esse vírus da falta de vergonha, que felizmente não pega, mas é cúmplice por mais que queira se esconder agora entre os mortos, os doentes, os necessitados e todo o sofrimento.
Luiz Gadelha

O bêbado e a borboleta

No livro "O revólver que sempre dispara" (Casa Amarela), Emanuel Ferraz Vespucci analisa as causas, os comportamentos e as consequências para a saúde de diversas dependências químicas, inclusive o alcoolismo e o tabagismo. É um livro despido de preconceito e, do ponto de vista clínico, como não poderia deixar de ser, serve de referência para os que lidam com o problema: usuários em busca de tratamento, seus familiares e terapeutas. O livro explica de maneira clara como as diversas drogas causam dependência física e psicológica, os problemas que acarretam e as maneiras de enfrentá-los, sem moralismo. A perda de controle sobre o álcool, a cocaína, o crack, a maconha, morfina, calmantes, inibidores de apetite e outros psicotrópicos é um problema muito mais amplo do que se imagina.

A dependência funciona como uma roleta russa. Em algum momento a bala que está no cilindro do revólver será disparada, na medida em que o sujeito arrisca mais uma vez. Ou seja, o acaso tem um limite, quanto maior a frequência, maior a probabilidade de ocorrência. Por causa da dependência, algo grave acontecerá na vida da pessoa, pode ser um acidente de carro, a perda do emprego, um surto psicótico, um infarto.

O que interessa aqui é a analogia da roleta-russa, ou seja, do revólver que sempre dispara. Durante a pandemia de Covid-19, por causa do risco de contaminação, sair de casa é uma espécie de roleta russa, mesmo que a pessoa utilize máscaras e luvas. Acontece que o presidente da República — com o objetivo declarado de desmoralizar a política de distanciamento social preconizada pelas autoridades médicas, inclusive seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e responsabilizar governadores e prefeitos pela recessão econômica — resolveu sair às ruas com frequência e, nesses passeios, visitar o comércio local para estimular proprietários e consumidores a manterem uma vida normal. Bolsonaro ignora uma epidemia que está matando mais de 100 pessoas por dia no Brasil, o equivalente a um desastre de grandes proporções.


Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença, como acontece com aqueles que já foram contaminados, se recuperaram e adquiriram anticorpos ou que, por qualquer outra razão, têm uma sistema imunológico mais robusto, geralmente mais jovens. Não se sabe se o presidente está imunizado; ele se recusa a revelar os resultados dos exames que fez. Bolsonaro age como um jogador compulsivo, o que não deixa de ser uma dependência, sem levar em conta que a maioria das pessoas não está preparada para lidar com o aleatório.

É aí que chegamos a "O andar do bêbado" (Zahar), o instigante livro do físico Leonard Mlodinow, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, sobre o acaso na vida das pessoas, ou melhor, sobre como funciona a aleatoriedade. O novo coronavírus se multiplica como um “Efeito Borboleta”, descoberto em 1960, pelo matemático Edward Lorenz, base para a Teoria do Caos. Mostra como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas.

Lorenz, que também era meteorologista, realizava cálculos relacionado a padrões climáticos num computador. Em vez de colocar 0,000001, conforme fez na primeira vez, ele colocou 0,0001, alterando completamente o resultado da simulação, como se o bater de asas de uma borboleta na Austrália provocasse um furacão no Caribe. Foi o que aconteceu com o coronavírus na Alemanha e na Coreia do Sul, países que mais bem monitoraram a epidemia e conseguiram mantê-la sobre controle, com testes em massa e hospitalização dos contaminados. No primeiro caso, bastou que uma pessoa contaminada usasse o saleiro num almoço de família para a epidemia se propagar; no segundo, um único paciente, de 30 casos confirmados, escapou do isolamento e disseminou a doença.

Na Sexta-feira da Paixão contabilizamos 1.056 mortes e 19.638 casos confirmados, 44 dias após o primeiro caso registrado no país e 24 dias depois do registro da primeira morte. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estão em risco de colapso do sistema de saúde pública. Numa hora em que o país precisa de coesão social e alinhamento das políticas de combate ao novo coronavírus, para evitar o colapso do sistema de saúde, Bolsonaro aposta na auto-imunizaçao pelo contágio e num medicamento de eficácia limitada nos tratamentos, a hidroxicloroquina, para evitar as mortes, e prega a retomada imediata das atividades econômicas, com adoção do chamado isolamento seletivo ou vertical. Essas apostas foram feitas em outros países, como os Estados Unidos, Inglaterra e Japão, e fracassaram.

'Nautilus' para navegar nestes tempos


Uma loteria macabra

Estranho quem ainda não acredita no poder letal do Covid-19 como se fosse – como se alguém pudesse ser – totalmente imune a ele neste momento entre os mais terríveis da história recente da humanidade. Aposto que apostam em ficarem ricos nas loterias onde realmente a chance de ganhar é uma entre muitos milhares, milhões. Nela acreditam; até pagam por isso. A maior desgraça mundial hoje, além do vírus, é a ignorância, e que aqui no Brasil há anos contamina nossos dias
Tenho tido terríveis crises de ansiedade, que culminam com palpitações, dores de cabeça, pensamentos desencontrados e preocupados, medos e angústias, além de uma revolta especial com ignorantes, que antes até conseguia suportar com alguma paciência, mas que hoje atingem também a minha saúde. Começo com essa afirmação porque creio firmemente que o momento é de sermos sinceros uns com os outros, trocarmos ideias, sensações. Que a gente ponha para fora o que sentimos, em prol até de ao menos mantermos um mínimo de sanidade mental. Estamos – e agora a expressão parece fazer sentido – dentro de caixas, nossas casas, isolados. E mesmo que não totalmente sós me parece que nunca vivemos de tal forma bruta essas sensações todas e elas são totalmente individuais. Difíceis de serem descritas, mas que atingem e por mais que queiramos nos fazer de fortes.

Como você está? – pergunto. Embora não possa ajudar muito e a cada dia esteja mais claro que não temos a menor noção do que realmente ocorrerá nem na hora seguinte, nem no dia seguinte, nem quanto tempo levará. Os inimigos se multiplicam, além do contágio: os boletos chegando, empregos partindo, notícias de um mundo todo em looping contando diariamente mortos às centenas, e especialmente aqui no Brasil a ameaça constante de um governante absolutamente alucinado atrapalhando o serviço de quem está na linha de frente: seus próprios ministros, autoridades em saúde, profissionais, cientistas, imprensa.


Aqui não se trata mais – incrível – de aversão, que é total, de política, direita, esquerda, vitória, derrota, mas chamar a atenção para o caminho que as coisas rapidamente tomarão se mantida essa perigosa toada. Um presidente que dissemina notícias falsas, que atiça confrontos, que alimenta um gabinete de ódio formado por seus filhos e aconselhadores do mal, próximos. Um homem incapaz de movimentos de união, mas capaz de provocar e comandar atos e pronunciamentos que, se mantidos, certamente ou levarão a uma insurgência jamais vista ou a uma desumana catástrofe social. Capaz, como o fez agora, de conclamar o país para um jejum (!) religioso quando dele se esperam determinações, sim, mas para acabar com a fome que já faz roncar barrigas entre os humildes, miseráveis, as primeiras vítimas da desorganização nacional empurrada anos a fio.

Não é normal, gente. Algo precisa ser feito, não sei se é possível interdição, camisa-de-força, forçar renúncia ou impeachment. Ou pedir, em uníssono, com panelas, gritos ou o que quer que seja, que se cale. Que deixe em paz quem está no campo da guerra.

Dele não se ouviu até agora uma só palavra de alento, apenas ironias desrespeitando as centenas de famílias já em luto, algumas com várias perdas ligadas entre si.

Dele não se ouviu até agora uma palavra contra os aproveitadores que cinicamente aumentam barbaramente os preços, somem com insumos. Nenhuma de suas ordens veio para acabar com os abusos, ou para proteger quem precisa. Vive apenas de suas próprias alucinações, rompantes, daquela meia dúzia que diariamente vai saudá-lo no cercadinho improvisado do Palácio, criando fatos que alimentam robôs, que por sua vez alimentam a ira dos ignorantes.

Dele não se ouviu até agora nada que preste.

O inimigo é um vírus que se respira, invisível. Ainda indomável e desconhecido, mutante. Nos Estados Unidos já há mais mortes do que no 11 de setembro. Aqui já há mais mortes do que em quedas de Boeings, barragens rompidas, desabamentos, enchentes. É mais do que uma guerra, necessitando armas diferentes, e guerras não escolhem idades. Todos atingidos – inclusive o bem maior, a liberdade.

A situação ainda está em andamento, advertem os especialistas de todo o mundo que buscam correr para conter, evitar o pior quadro que se aproxima, mais crítico ainda em vários locais onde líderes ousaram desafiar a realidade e que agora apenas correm para não serem julgados pela História como genocidas.

Precisamos continuar no jogo. E para isso marcarmos e seguirmos os passos corretamente, para que não saia ainda mais cara essa loteria em que estamos metidos. Vamos ganhar esse jogo. Todos nós. Dividiremos o prêmio da vida.

Marli Gonçalves

Cenas de uma pandemia de 1.500 anos atrás que se repetem hoje

Uma pandemia que chegou do estrangeiro e que se espalhava rapidamente dos portos onde chegavam os passageiros infectados ― assintomáticos ou não ―, sem nenhum medicamento que pudesse pará-la, todos os habitantes confinados em suas casas para evitar contágios, a paralisação total da economia, o exército vigiando as ruas, médicos infectados trabalhando à exaustão, milhares de mortos diários sem enterrar durante “muitos dias porque os que cavavam já não davam conta...”. Não é a crônica do coronavírus que afeta o mundo em 2020. É o relato feito por Procópio de Cesareia sobre o surto de peste bubônica que assolou o mundo conhecido entre 541 e 544: da China às costas da Hispânia. O estudo La plaga de Justinià, segons el testimoni de Procopi (A Praga de Justiniano, segundo o Testemunho de Procópio), de Jordina Sales Carbonell, pesquisadora da Universidade de Barcelona, devolveu à atualidade esse relato de 1.500 anos atrás, com moral da história. “Em 1 de abril de 2020, determinadas semelhanças e paralelismos do comportamento humano frente a um vírus e suas consequências nos parecem tão próximas e atuais que, apesar da tragédia que estamos vivendo em primeira pessoa, nunca podemos deixar de nos maravilhar de como a história se repete” escreve a arqueóloga e historiadora do Institut de Recerca en Cultures Medievals (Instituto de Pesquisa em Culturas Medievais).


Em 541, durante o reinado do bizantino Justiniano, explodiu um surto de peste bubônica no império. “O alarme surgiu no Egito, onde a infecção se expandiu de modo rápido e letal”. Procópio falou sobre isso em seu livro História das Guerras, no qual relatou as campanhas militares de Justiniano pela Itália, África do Norte, Hispânia... e como os soldados espalhavam a pandemia pelos diversos portos em que chegavam, fundamentalmente da Europa, África do Norte, o Império Sassânida (Pérsia) e, de lá, à China.

Procópio, como conselheiro do general bizantino Belisário, a quem acompanhou em suas campanhas, se transformou assim em “testemunha privilegiada” de uma pandemia que recebeu o nome de praga de Justiniano: “Foi declarada uma epidemia que quase acabou com todo o gênero humano da qual não há forma possível de dar nenhuma explicação com palavras, sequer de pensá-la, a não ser nos remitir à vontade de Deus”, escreveu o historiador bizantino. “Essa epidemia”, continuou, “não afetou uma parte limitada da Terra, um grupo determinado de homens e se reduziu a uma estação concreta do ano [...], e sim se espalhou e se alimentou em todas as vidas humanas, por diferentes que fossem as pessoas das outras, sem excluir naturezas e idade”. Desse modo, a doença não tinha limites, “até aos extremos do mundo, como se tivesse medo de que algum recanto escapasse”.

Um ano após ser detectada, a peste chegou à capital do Império, Bizâncio (atual Istambul), “assolando-a durante quatro meses”. “O confinamento e o isolamento eram totais”, descreve Sales Carbonell, “já que era mais do que obrigatório aos doentes. Mas também se impôs uma espécie de autoconfinamento espontâneo e intuitivamente voluntário para o restante, em boa parte motivado pelas próprias circunstâncias”. De fato, “não era nada fácil ver alguém nos locais públicos, pelo menos em Bizâncio, uma vez que todos os saudáveis ficavam em casa, cuidando dos doentes e chorando os mortos”, de acordo com Procópio. E o faziam “com roupas comuns, como simples particulares”, o que a historiadora da Universidade de Barcelona traduz com certa ironia “como o moletom da época”.

A economia, enquanto isso, desabou: “As atividades cessaram e os artesãos abandonaram todos os empregos e os trabalhos dos quais se ocupavam”. Mas ao contrário de hoje em dia, as autoridades foram incapazes de organizar serviços essenciais. “Parecia muito difícil conseguir pão e qualquer outro alimento, de modo que, para alguns doentes, o desenlace final da vida foi sem dúvida prematuro, pela falta de artigos de primeira necessidade”, escreveu o bizantino em História das Guerras. “Muitos morriam porque não tinham quem cuidasse deles”, já que as pessoas responsáveis pela emergência “caiam esgotadas por não poder descansar e sofrer constantemente. Por isso, todos se compadeciam mais delas do que dos doentes”.

Justiniano, pela situação desesperada, distribuiu “pelotões de guardas do palácio” pelas ruas e nomeou seu chefe de gabinete autorizado, que “com o dinheiro do tesouro imperial e até colocando de seu próprio bolso sepultava os corpos dos que não tinham ninguém que os ajudasse”. O próprio imperador se infectou, mas superou a doença e continuou governando durante mais uma década.

Os picos de mortalidade subiram de 5.000 a 10.000 vítimas por dia, e até mais. De tal maneira que, “ainda que em um primeiro momento cada um se ocupava dos mortos de sua casa, o colapso e o caos se tornaram inevitáveis e os cadáveres também eram jogados nas tumbas dos outros, às escondidas e com violência”. Mesmo os ilustres, lembra Procópio, “permaneceram insepultos durante muitos dias”, de modo que “os corpos se amontoaram de qualquer maneira nas torres das muralhas”. Não havia cortejos e rituais funerários para eles.

Quando por fim a pandemia foi superada surgiu, lembra a historiadora, um aspecto positivo: “Os que haviam sido partidários das diversas fações políticas abandonaram as críticas mútuas. Mesmo aqueles que antes realizavam ações baixas e malvadas deixaram, na vida diária, toda a maldade, uma vez que a necessidade imperiosa lhes fazia aprender o que era a honradez”, nas palavras de Procópio, ainda que após algum tempo voltaram aos velhos hábitos. “Esse ponto certo de poesia nos faz vislumbrar o otimismo e a esperança de que talvez nos permitam seguir em frente e não voltar a tropeçar novamente na mesma pedra”, finaliza a especialista com mais expectativa do que certeza.

Covid, 2020

Nosso modo de viver
é agora morrer
ou ver morrerem.
Raul Drewnick 

The Economist: 'Jair Bolsonaro se isola, no sentido errado'

Um a um, os negacionistas fizeram as pazes com a ciência médica. Apenas quatro governantes do mundo continuam negando a ameaça à saúde pública que a covid-19 representa. Dois são de destroços da antiga União Soviética, os déspotas da Bielorrússia e do Turquemenistão. O terceiro é Daniel Ortega, ditador tropical da Nicarágua. O outro é o presidente eleito de uma grande - ainda que combalida - democracia. O esforço de Jair Bolsonaro para minar as iniciativas de seu próprio governo no combate ao vírus pode marcar o início do fim de sua presidência.

Desde que o novo coronavírus foi detectado pela primeira vez no Brasil, no final de fevereiro, Bolsonaro, um ex-capitão do exército que tem adoração pelos governantes militares, fez pouco caso da doença. Menosprezando seus efeitos como “só uma gripezinha”, ele disse que era preciso "enfrentar o vírus como homem, pô, não como moleque”. E acrescentou, num tom bastante consolador: “todos nós vamos morrer um dia”. Nos quinze meses desde sua chegada à presidência, os brasileiros se acostumaram às suas bravatas de machão e à sua ignorância em questões que vão desde a preservação da floresta amazônica até educação e policiamento. Mas, desta vez, o dano é imediato e óbvio: Bolsonaro juntou a retórica truculenta à sabotagem ativa da saúde pública.

Ele diz acreditar no “isolamento vertical”, na quarentena apenas para os brasileiros com mais de 60 anos, com o objetivo de limitar os danos à economia. Existem dois problemas nesse raciocínio. Os jovens também morrem de covid-19 (10% das vítimas no Brasil têm menos de 60 anos), e a imposição de uma quarentena desse tipo seria impossível.

Os governadores dos estados mais importantes do Brasil tomaram a frente e impuseram isolamento social utilizando seus próprios poderes. Bolsonaro encorajou os brasileiros a ignorá-los. Homem que teme traições e sente uma perpétua necessidade de provocar, ele recebeu com abraços e selfies seguidores que faziam uma manifestação contra o Congresso, em 15 de março. O presidente também lançou uma campanha incentivando as empresas a reabrirem as portas e pediu “jejum e manifestações” nas igrejas em 5 de abril. Ele cogitou decretar, ilegalmente, o fim do isolamento. E, por duas vezes, chegou perto de demitir seu próprio ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, um médico conservador que se opôs publicamente ao clamor do presidente para afrouxar as restrições.

Ao que parece, Bolsonaro está com ciúmes da ascensão de um ministro que, segundo ele, “não tem humildade”.

Mesmo para seus próprios padrões, a recusa de Bolsonaro em cumprir seu dever primordial de proteger vidas foi longe demais. Grande parte do governo o trata como um tio inconveniente que apresenta sinais de insanidade. Os principais ministros, entre eles o grupo de generais que faz parte do gabinete, bem como os presidentes das duas casas do Congresso, deram apoio ostensivo a Mandetta, que também tem a população ao seu lado. Uma pesquisa realizada neste mês pelo Datafolha apontou que 76% dos brasileiros aprovam a maneira como o Ministério da Saúde vem combatendo o vírus. Em comparação, 33% aprovam o gerenciamento da crise por Bolsonaro.

Os clamores pela renúncia de Bolsonaro aumentaram. E não apenas na esquerda, mas também entre alguns de seus antigos aliados, como Janaina Paschoal, deputada estadual por São Paulo que Bolsonaro chegou a considerar para vice na chapa presidencial. Ela disse que o presidente era culpado de “um crime contra a saúde pública” e acrescentou: “não temos tempo para o impeachment”.

Não há dúvida de que as condutas do presidente justifiquem constitucionalmente um impeachment, destino que caiu sobre dois de seus antecessores, Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Mas, por enquanto, Bolsonaro mantém apoio público suficiente para sobreviver. Se, à época, as pesquisas apontaram que a maioria era a favor da deposição de Dilma (por violar a lei de responsabilidade fiscal para ganhar a reeleição), 59% dos brasileiros disseram ao Datafolha que não querem que Bolsonaro renuncie. O índice de aprovação de Dilma girava em torno de 10%; Bolsonaro mantém o apoio de um terço dos eleitores. Poucos em Brasília acreditam que o país queira ou possa arcar com a turbulência de um impeachment enquanto se vê tomado pela covid-19.

Bolsonaro é sustentado por um pequeno círculo de fanáticos ideológicos (entre eles, três de seus filhos), pela fé de muitos evangélicos e pela falta de informações sobre a covid-19 entre os brasileiros. Os dois últimos fatores podem mudar à medida que o vírus começar a ceifar vidas nos próximos meses. Em 8 de abril, o Brasil contava 14.049 casos confirmados e 688 mortos. E pode ser que o presidente não consiga se isolar da culpa pelo impacto econômico. Por sua imprudência com a vida dos brasileiros, Bolsonaro fez com que sua própria queda entrasse na agenda política. É bem provável que ela permaneça ali mesmo depois do fim da epidemia.  

Cloroquina sem paixão

Não sou médico, nem cientista. É uma temeridade escrever sobre a cloroquina agora que sua composição química ganhou componentes ideológicos. Abordo o tema com minha experiência da campanha contra a Aids, que pude seguir ativamente, com mandato e sem estar preso em casa.

Desconfio também da experiência do general que vê na batalha de hoje uma repetição da batalha do ano passado, do político que vê na campanha atual uma réplica da campanha anterior.

Ainda assim, vou tateando. No combate à Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio em si era uma espécie de bala de prata contra o vírus. Os remédios eram combinados num coquetel.

Imagino que alguma coisa assim esteja acontecendo no combate ao coronavírus. Quando surgiram os rumores da pesquisa francesa liderada por Didier Raoult, Trump ainda não havia anunciado sua predileção pela cloroquina.

Os rumores na internet eram de que a hidroxicloroquina estava associada à azitromicina e que estava sendo usada no Hospital do Coração.

Liguei para confirmar, e o hospital desmentiu, dizendo que aquilo era fake news. Não noticiei nada, porque achava que, mesmo com desmentido, haveria corrida.

Nos EUA, Anthony Fauci, o homem que comanda a luta contra o coronavírus, fez também uma advertência sobre o perigo da notícia, pois os estoques poderiam ser esgotados.

Em seguida, li a história de um médico chinês de pouco mais de 30 anos, imigrante nos EUA. Ele foi contaminado pelo coronavírus e esteve entre a vida e a morte. A colônia chinesa estabeleceu os contatos com Wuhan, cujos médicos tinham já uma grande experiência. Recomendaram hidroxicloroquina com Kaletra, um remédio usado também contra a Aids. Isso fortaleceu para mim a ideia de que a cloroquina estava associada a um outro remédio, uma tática combinada como foi, guardadas as proporções, no caso da Aids.

Continuei atento ao movimento dos chineses, com os poucos recursos que tenho para segui-los. Li que a China pirateou outro remédio experimental contra o coronavírus, o Remdesivir.

A patente é da empresa americana Gilead, que deve faturar mais de US$ 2,5 bilhões com ele, apesar do avanço chinês sobre sua fórmula.

O Remdesivir é um antiviral mas não pode também ser considerado uma bala de prata. Seu uso foi aconselhado pela Agência Europeia de Medicina em casos muito graves, como um tratamento compassivo.

De novo, apesar de serem batalhas diferentes, a experiência da luta contra a Aids ilumina o caminho, até que uma outra luz mais forte e direta me conduza.

O Brasil resolveu inicialmente o problema da cloroquina comprando-a da Índia. Esse país vende remédios assim como a China vende equipamentos médicos. O Ocidente se aproveita dos preços baixos de ambos até que descobre sua dependência.

Mas em breve poderemos chegar à possibilidade de um coquetel ou uma simples associação de remédios. Nesse momento, veremos a possibilidade de distribuí-los gratuitamente.

Foi assim com o coquetel da Aids. Muita discussão com a equipe econômica por causa dos custos. O problema seguiu adiante mesmo depois da vitória da gratuidade.

Apareceu então, com intensidade, o problema das patentes. Até que ponto um respeito religioso pelos direitos dos laboratórios multinacionais não era um obstáculo para a salvação das vidas?

Felizmente, na época, tínhamos um ministro da Saúde, José Serra, que compreendeu bem o dilema e soube defender o que me parece uma posição correta no debate planetário sobre patentes.

A cloroquina, graças ao empenho de Trump e Bolsonaro, ganhou destaque na cena, mas o Remdesivir, a julgar pela apropriação chinesa, também merece um exame.

Na verdade, há pelo menos oito atores, remédios em teste, que foram ofuscados pela cloroquina e mereciam mais atenção. Nenhum deles é de direita ou de esquerda. São fórmulas químicas, e sinto-me meio acaciano a formular essa frase.

No entanto, o vírus já foi politizado, os remédios são politizados de uma forma equivocada. A questão que nos espera é testá-los adequadamente e garantir que cheguem às pessoas e discutir os direitos de patente num mundo devastado pela pandemia.
Fernando Gabeira