quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Brasil bolsonarista

 


O general e a gênese do golpismo castrense

Desde de 1964, nunca houve tanta agitação a favor de um golpe militar como a que estamos assistindo desde a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ontem, Dia da Proclamação da República, seria apenas mais um dia em que gente muito fanática, defensora de uma intervenção militar, protestasse à porta dos principais comandos militares do país, entre os quais os do Planalto, em Brasília — onde reside a maioria dos generais de quatro estrelas —, e no Rio de Janeiro, que abriga o maior contingente militar do país. Seria apenas mais um dia de vigília bolsonarista, não fosse o Twitter do general Eduardo Villas Boas, uma indiscutível liderança militar, endossando as manifestações golpistas e pondo mais lenha na fogueira.

O ex-comandante do Exército poderia ter ficado na dele, mas não: decidiu surfar os protestos para reafirmar sua liderança junto aos descontentes com a derrota do presidente Jair Bolsonaro e, talvez, na tropa que está na ativa. “A população segue aglomerada junto às portas dos quarteis pedindo socorro às Forças Armadas. Com incrível persistência, mas com ânimo absolutamente pacífico, pessoas de todas as idades, identificadas com o verde e o amarelo que orgulhosamente ostentam, protestam contra os atentados à democracia, à independência dos poderes, ameças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”, afirma.


Com isso, o velho general alimentou ainda mais as infundadas críticas e maliciosas suspeitas ao resultado das urnas, com a mesma ambiguidade com que Bolsonaro silencia diante do resultado oficial da eleição, e não reconhece publicamente a inequívoca vitória de Lula. Pelo custo e envergadura da mobilização, que ontem completou duas semanas, é evidente a existência de um forte movimento de extrema-direita, organizado com o propósito de melar a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Villas Boas critica a imprensa por não dar aos manifestantes a importância que gostaria: “Talvez nossos jornalistas acreditem que ignorando a movimentação de milhões de pessoas elas desaparecerão. Não se apercebem eles que ao tentar isolar as manifestações podem estar criando mais um fator de insatisfação. A mídia totalmente controlada nos países na Cortina de Ferro não impediu a queda do Muro de Berlim. A História ensina que pessoas que lutam pela liberdade jamais serão vencidas”, afirma.

Com fina ironia, inverteu o significado histórico de um velho bordão das esquerdas contra as ditaduras: “O povo unido jamais será vencido!”. No dia 29 de outubro, véspera da eleição, Villas Boas havia publicado um tuíter no qual traçou um cenário catastrófico em caso da vitória de Lula, o quem tudo a ver com a sua manifestação de ontem.

Não poderia haver data mais simbólica para a manifestação e a posicionamento de Villas Boas. A Proclamação da República foi um golpe militar, que se apropriou do movimento republicano com o propósito de implantar uma ditadura, como acabou ocorrendo por duas vezes, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964. O Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), principal chefe do Exército brasileiro, foi praticamente arrancado da cama, em 15 de novembro de 1889, para destituir a Monarquia.

Fora escolhido para liderar o levante militar pelos jovens oficiais liderados por Benjamin Constant (1836-1891), professor da Escola Militar da Praia Vermelha e expoente do Positivismo no Brasil, a doutrina que impregnou de tal forma a política brasileira que sua síntese até está bordada na bandeira nacional: “Ordem e Progresso”.

Democracia não é um valor universal no ideário positivista. O golpe foi rocambolesco. Reunidas as tropas no Campo de Santana, onde hoje está localizada a Praça da República e o Quartel General do Comando do Leste, Deodoro derrubou o gabinete do Visconde Ouro Preto e voltou para casa. Somante mais tarde, o velho e adoentado marechal foi convencido a assinar o documento que extinguiu a monarquia, que durava já 70 anos.

O imperador Dom Pedro II foi banido do Brasil com a família, e embarcou rumo à Europa na madrugada do dia 17 de novembro, sem entender direito as razões de sua queda. A população somente soube mais tarde desses acontecimentos. Para evitar uma guerra civil, dom Pedro II não quis resistir, após 49 anos de reinado. Sabia que elite brasileira estava insatisfeita desde o fim da escravidão, em 1888.

Entretanto, não acreditava que os militares (irritados com os salários e desprestígio desde a Guerra do Paraguai) e os cafeicultores (que exigiam indenizações pela abolição da escravatura) o destituíssem. Muito menos a Igreja Católica, apesar de insatisfeita com o padroado (sua prerrogativa de preencher os cargos eclesiásticos mais importantes) e o seu beneplácito (aprovação das ordens e bulas papais para que fossem cumpridas, ou não, em território nacional), que já haviam provocado uma crise com o Vaticano, de 1872 a 1875. É que os sacerdotes eram tratados como funcionários públicos, recebendo salários da Coroa — teoricamente não apoiaram um Estado laico, republicano.

Destruição menor

Seria conveniente, por ainda ser chefe da nação brasileira, que Bolsonaro cumprisse as funções que o cargo demanda neste mês e meio que ainda lhe resta no poder.
Ou, pensando melhor, talvez não. Quanto menos o capitão fizer, menor o poder de destruição final

Pisos e tetos

Piso para os necessitados e teto para os privilegiados

Lula tem razão quando lembra que muitos defendem o teto de gastos para evitar a volta da inflação, sem defesa de piso social, para assegurar todo brasileiro com alimentação satisfatória, escola de qualidade, atendimento de saúde, moradia com saneamento, garantia de emprego e renda com moeda estável. Tanto quanto a desigualdade como a educação de base é oferecida, a maior causa da pobreza é a desvalorização da moeda que rouba o valor dos salários pagos aos trabalhadores. Há décadas a inflação faz parte da arquitetura de concentração de renda, que os economistas, empresários e políticos impõem ao povo brasileiro. Mas a estabilidade da moeda é insuficiente se os governos não fizerem os investimentos sociais necessários.


O Brasil precisa definir políticas sociais e de crescimento econômico que atendam às necessidades básicas da população e promovam emprego. Lula lembra que um gasto que salva vida ou constrói infraestrutura é investimento. Para tanto, o Estado precisa investir o que for necessário, tendo consciência de que esses investimentos exigem gastos no momento que são realizados e que não devem ser financiados pelos próprios pobres ao receberem salários e bolsas com moeda desvalorizada e sofrerem as consequências do endividamento, juros elevados, preços inflacionados e consequente recessão e desemprego.

Além do piso social, é preciso haver teto em gastos desnecessários, mordomias, desperdícios e privilégios: ineficiência, ostentação, prioridades e política fiscal que concentram. O Brasil precisa também definir um limite ao uso de seus recursos naturais, para evitar a depredação que sacrifica as gerações futuras. Os dois governos Lula praticaram essa ideia de pisos e tetos: criaram programas sociais, foram responsáveis fiscalmente e comprometidos com o meio ambiente. Precisa-se de uma reforma fiscal que permita financiar as necessidades dos pobres, eliminando desperdícios e ineficiências, para manter a estabilidade da moeda em benefício do povo e do país.

Em vez do nervosismo por uma fala improvisada de Lula enfatizando mais o piso social do que o teto de gastos, os agentes econômicos — compradores e investidores — deveriam observar os atos de Lula, nos seus oito anos de governo e sugerir formas para financiar os gastos sociais com uma política fiscal responsável, capaz de barrar excessos de gastos e de subsídios dirigidos à parcela rica e à indústria ineficiente. Para assegurar o piso social que atenda às necessidades e retome o crescimento, é preciso impor tetos aos privilégios. Romper o teto de gastos com os pobres e impor teto de benefícios aos privilegiados.

Tudo indica que Lula vai manter seu compromisso social e repetir a responsabilidade fiscal de seus dois governos, com orçamentos equilibrados. Ele tem manifestado a importância do fator confiança e da previsibilidade como condição ao bom desempenho da economia e já demonstrou saber que a responsabilidade fiscal é determinante para que os agentes econômicos tomem decisões corretas. Por isso, a necessidade de piso social e de limites em gastos supérfluos.

Ao longo de décadas, economistas e políticos optaram pela ideia de que a pobreza decorre da falta de crescimento e justificaram ostentação, gastos supérfluos, desperdícios e ineficiências como ferramentas para superar a pobreza. Iludiram os pobres cujo trabalho era pago com a falsa moeda da inflação. Usaram a inflação para que os pobres financiassem o progresso para os ricos, agravando a pobreza enquanto o país crescia. Foi graças à maldade da inflação que o Brasil conseguiu estar entre os países mais ricos e aqueles com maior concentração de renda e número de pobres e de famintos.

Nossos economistas, empresários e políticos precisam perceber que a permanência da pobreza é um dos maiores entraves ao progresso nacional e sua superação promove o crescimento e o desenvolvimento. O mercado deve entender que os investimentos sociais impactam positivamente sobre a economia e levar em conta que parte do bom desempenho da economia nos anos de Lula veio dos resultados do que se investiu em educação, saúde, Bolsa Família. E muitos ao redor do Lula esquecem que isso foi possível graças à estabilidade monetária. Sem os investimentos sociais o crescimento fica limitado, sem a estabilidade monetária os benefícios sociais são corroídos.

Lula precisa aumentar gastos sociais e manter equilíbrio fiscal, reduzindo privilégios, desperdícios, ineficiências: piso para os necessitados e teto para os privilegiados.

O que faz de José Bonifácio patriarca não só da Independência, mas das florestas do Brasil

"Destruir matas virgens, como até agora se tem praticado no Brasil, é crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?" 

O texto, de 1821, um ano antes da Independência do Brasil, mostra que a preocupação com a destruição de florestas no território nacional é mais antiga do que o próprio Estado brasileiro.

O autor do alerta contra o desmatamento, redigido há quase 200 anos, não entraria para a História como ecologista, e sim como um dos fundadores do Estado brasileiro: José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado Patriarca da Independência.

Nas escolas, estudantes aprendem que José Bonifácio, filho de uma família abastada e nascido em 1763 na cidade de Santos (SP), é considerado um dos mais importantes estadistas brasileiros e personagem fundamental no processo de Independência do Brasil. Mas a biografia dele vai além da política: ele é também um dos precursores na defesa das florestas no território nacional.

"Bonifácio foi um personagem muito importante, apesar de ainda pouco reconhecido, na construção dessa preocupação com o ambiente e o futuro das florestas em escala mundial", diz o historiador José Augusto Pádua, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é um dos coordenadores do Laboratório de História e Natureza.

Filho de uma família rica - seu pai era importante funcionário da Coroa portuguesa - o jovem Bonifácio foi estudar na Universidade de Coimbra, onde teve uma sólida formação em Direito, Filosofia Natural e Matemática. Um de seus professores em Portugal foi o italiano Domênico Vandelli, especialista em História Natural e Botânica e que exerceu forte influência sobre o estudante brasileiro, que se tornou pesquisador naturalista, mineralogista e professor em Portugal durante muitos anos, além de exercer cargos públicos no governo português. Entre eles, a direção dos bosques nacionais.

"Ele explicava com detalhes sobre a importância de preservar os bosques do Reino. Isso não era nada comum nos tempos dele", explica o historiador Jorge Caldeira, organizador da biografia José Bonifácio de Andrada e Silva, da Coleção Formadores do Brasil. "Era um ecologista prático, bastante apurado para os dias de hoje. Tanto é que seu primeiro trabalho científico foi em defesa da preservação das baleias", completa Caldeira.

O texto citado por Caldeira foi publicado por José Bonifácio em 1790. Trata-se do Memória sobre a pesca da baleia e a extração do seu azeite, publicado pela Academia das Ciências de Lisboa. No texto, o político e estudioso alertava para o pouco retorno econômico da atividade de caça à baleia para extração do óleo, frente ao poder destrutivo do meio ambiente e a consequente redução do número de baleias na costa brasileira.

"Dentre outros naturalistas da época, José Bonifácio criticava a caça predatória da baleia, por julgá-la antieconômica, assim como as grandes propriedades monocultoras. Apreciador das matas e madeiras brasileiras, alinhava-se com estudiosos que, desde a fundação dos primeiros jardins botânicos no século 18, valorizavam o plantio de espécies raras", explica a historiadora Mary Del Priore, autora do livro As Vidas de José Bonifácio (Estação Brasil), que retrata a vida do Patriarca da Independência. "Ele era também favorável à inserção de índios e negros na sociedade depois de 'civilizados'", completa a historiadora.

De volta ao Brasil, em 1819, José Bonifácio tornou-se ministro e conselheiro do Príncipe Regente e futuro imperador D. Pedro 1º. Foi ele quem incentivou o monarca a proclamar a Independência do Brasil, em 1822, e integrou o primeiro escalão de dirigentes da nova nação. Entre outras atribuições, organizou a resistência do novo governo independente aos movimentos contra a separação de Portugal que surgiram na época em várias partes do país.

Apenas alguns meses após seu retorno ao Brasil, Bonifácio embrenhou-se nas matas do Estado de São Paulo junto com seu irmão, Martim Francisco, para aprofundar seus estudos naturalistas, em especial na Mata Atlântica que na época dominava o território paulista, mas já sofria os efeitos do desmatamento para expansão das lavouras e da pecuária.

Logo nos primeiros dias de expedição, o viajante lamenta o "miserável estado em que se acham os rios Tietê e Tamandataí, sem margens nem leitos fixos, sangrados em toda parte por sarjetas, que formam lagos que inundam essa bela planície." Nos arredores da Vila de Itu, observa que "todas as antigas matas foram barbaramente destruídas com fogo e machado."

Em 1821, quando o Brasil estava na condição de Reino Unido a Portugal, Bonifácio defendeu, em um artigo chamado Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo, a criação de uma "Direção Geral de Economia Política", que seria responsável por obras públicas, minas, bosques, agricultura e fábricas.

Essa política integrada desenhada por José Bonifácio para a administração do Brasil, na sua visão, seria responsável pela preservação das riquezas naturais brasileiras, em especial os rios, matas e densas florestas que, na opinião do político e naturalista, eram fundamentais para a saúde do território nacional. Seria um grande ministério reunindo as áreas de meio ambiente, infraestrutura e agricultura. A proposta, porém, nunca saiu do papel e o Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822.

"As preocupações e propostas ambientais de José Bonifácio estavam inseridas na discussão geral sobre o futuro do Brasil. Creio que ele propunha um ministério de planejamento geral da economia no sentido de uma relação mais racional com a natureza. Ou seja, todas as atividades econômicas estariam conectadas com o objetivo de acabar com a devastação e o desperdício, tratando o mundo natural de uma maneira mais cuidadosa e cientificamente inteligente", diz Augusto Pádua.

"Mesmo que o contexto atual seja tão diferente, creio que seria um grande avanço se pudéssemos retomar, ou de fato reinventar, essa maneira de enxergar o cuidado ambiental como eixo de todas as ações de governo relativas às atividades produtivas", completa o historiador da UFRJ.

Na Assembleia Constituinte de 1823, Bonifácio, eleito deputado constituinte, levou ao Parlamento ideias e emendas muito avançadas para a época, como o fim da escravidão, instituição de uma reforma agrária, preservação das matas e rios brasileiros, obrigação de conservar uma parte das propriedades rurais com florestas nativas, direito de voto aos analfabetos e até a mudança da capital do país para o Planalto Central, algo que só se tornaria realidade mais de um século depois, em abril de 1960, no governo do presidente Juscelino Kubitschek.

Para Bonifácio, a criação de uma grande nação só seria possível caso fossem superados problemas estruturais herdados do passado colonial. O principal deles era a escravidão. "Uma novidade muito interessante no seu pensamento foi justamente estabelecer uma relação de causalidade entre o domínio da escravidão e as dinâmicas de desflorestamento, degradação dos solos e destruição da fauna e da flora, diz Augusto Pádua.

"Ele não via a escravidão apenas como uma técnica, mas sim com algo parecido com o que veio a ser chamado mais tarde de modo de produção. A continuidade da escravidão levaria à destruição do grande trunfo com o qual o Brasil poderia contar para o seu progresso, que era a riqueza natural", completa o professor da UFRJ.

Ideias tão avançadas para a época custaram a José Bonifácio muitas inimizades entre os poderosos da época, principalmente a elite agrária e política conservadora, e o rompimento com o próprio imperador D. Pedro 1º. Após ser demitido do governo, Bonifácio é exilado e parte para uma longa temporada na Europa, de onde só retornaria em 1829, após se reaproximar do imperador e ser nomeado tutor do seu filho, D. Pedro 2º.

De acordo com os especialistas, em textos publicados ao longo de sua carreira na Europa e no Brasil, em especial entre 1790 e 1823, Bonifácio construiu o que hoje chamaríamos de agenda ambiental e são importantes para entender a história do meio ambiente no Brasil.

"Ele foi, sem dúvida, um homem muito preocupado com os recursos naturais, isto em um tempo que praticamente não existia consciência de preservação ambiental", diz o desembargador aposentado e professor de Direito Ambiental na PUC-PR, Vladimir Passos de Freitas. "Eu não posso afirmar que foi o único, porque antes dele Portugal criou em Ilhéus, na então província da Bahia, um cargo de Juiz Conservador das Matas. Mas posso dizer que foi o primeiro a aprofundar-se em temas ambientalistas variados", completa Passos de Freitas.

Um dos artigos mais famosos de José Bonifácio, de 1823, atesta que, caso o Brasil não tomasse providências para preservar suas florestas, rios e demais recursos naturais, em menos de dois séculos estaria convertidos nos "páramos e desertos áridos da Líbia". "Virá então este dia, (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos", escreveu o Patriarca da Independência. Há quase dois séculos.