segunda-feira, 1 de março de 2021

Brasil e as 'variantes'

 


Um órfão chamado Brasil

O Brasil está órfão: sem oxigênio, sem responsável para cuidar do tratamento que precisa, nem tem quem lhe assegure vacina. Não teve um responsável que alertasse com autoridade que a doença era grave. Não recebeu as recomendações preventivas, nem os cuidados no período inicial. O Brasil não teve um responsável que lhe alertasse dos riscos. Ao contrário, ouviu “não fique em casa”, “vá para a rua”, “é uma gripezinha”. O oposto do que dizem pai e mãe preocupados com filho.

O Brasil não teve um responsável, um líder, um governante que o protegesse da doença e estivesse atento para obter e aplicar a vacina. Qualquer pai ou mãe ou tio ou padrinho protege o filho, natural ou adotado, cuida para ele ficar em casa, usar máscara, álcool em gel, e o leva para tomar a vacina. O Brasil não tem quem cuide dele neste momento em que está sofrendo os horrores de uma epidemia. A orfandade não decorre apenas da falta de governante que cuide dele com amor e competência neste momento de epidemia. O atual governante não cuida do presente, nem formula rumos para o futuro.

O Brasil está órfão. Mas a orfandade é anterior. Se o Brasil não fosse órfão antes, não teria preferido o atual governante. Foi o órfão que buscou ser adotado por ele, com o voto de milhões de eleitores descontentes. O Brasil sentia-se abandonado: 12 milhões de analfabetos, 100 milhões sem rede de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões de desempregados, a mesma concentração de renda e persistência da pobreza de que sofre desde sua origem.


Os moradores da periferia das grandes cidades já estavam órfãos há décadas, os jovens sem perspectiva, as crianças sem escolas de qualidade. Desde a escravidão, a população negra é órfã. Os desempregados, as vítimas de violência, os doentes sem dinheiro, todos são partes do órfão chamado Brasil. Seus líderes o deixaram órfão de ética, diante da corrupção. O Brasil é órfão por falta das reformas em suas estruturas arcaicas, que persistem desde a escravidão.

De todos os erros e crimes cometidos pelos políticos, o mais grave foi não perceber e não agir para impedir que o Brasil escolhesse o atual governo. E agora cometem erro ainda maior ao não apresentar aos eleitores uma alternativa que empolgue, que mereça confiança e mais: que impeça a continuação da orfandade atual. Em vez de reconhecerem os erros e pedirem desculpas aos brasileiros, de se apresentarem unidos com uma proposta alternativa, nossos líderes estão se acusando mutuamente. Parecem imaginar que o erro foi dos eleitores em 2018. Como se o órfão fosse culpado da escolha que fez na busca por quem o adotasse.

Todos que ocupamos cargos ao longo dos 130 anos da República, temos parte de responsabilidade, por omissão, por incompetência ou por corrupção nas prioridades ou no comportamento. Sobretudo, responsabilidade pela eleição do atual governo que aprofunda a orfandade por seu comportamento que nega a ciência, desmoraliza o país no exterior, degrada o meio ambiente, descuida das prioridades do povo, defende o armamentismo e consequente violência, regride no respeito aos direitos humanos, ameaça as conquistas democráticas.

O Brasil precisa de líderes que cuidem dele com novas ideias, propostas e comportamento. Não teria sido difícil acabar com a orfandade do Brasil: bastaria adotar uma geração de suas crianças, de todas as raças, em todos os endereços e de todas as rendas. Esta geração adotada adotaria depois o Brasil com competência e ética. A orfandade do Brasil começa na orfandade como suas crianças pobres são tratadas.

Mas o momento é para levarmos à Presidência alguém comprometido com a continuação das conquistas democráticas das últimas décadas. Para isso, é preciso barrar a marcha ao desastre de mais quatro anos desta orfandade desastrosa. Para isso, os que desejam um novo rumo precisam entender que a hora é de coesão. Em tempo de tormenta, a âncora é mais importante que a bússola e a vela.

Precisamos unir os democratas, já no primeiro turno de 2022, com um candidato que transmita ao eleitor a capacidade de unir e manter as conquistas democráticas e presidir o debate dos candidatos que em 2026 apontarão suas propostas para o eleitor escolher o rumo que o Brasil deve seguir em direção ao futuro democrático, eficiente, justo, sustentável.

Bolsonaro e vida, incompatíveis

O vírus derrubou o mito e o muro.
Nenhuma liderança responsável deve ceder a malabarismos retóricos, ter um pé no governo Bolsonaro e outro na defesa da vida. São incompatíveis
João Doria, governador de São Paulo

De reis mortos e águas vivas

Quando o arqueólogo Ezequiel Nicolau chegou à aldeia de Mantiria, encontrou uma pequena multidão que o saudava num terreiro de areia branca, à sombra da grande mafurreira. Apresentou-se o visitante, explicou a sua intenção. Todos entenderam quem ele era. Ninguém percebeu o que vinha fazer. Sabiam que o doutor estudava os antigamentes. Sim, isso era claro. Mas andar a escavar o chão, isso não tinha cabimento. Abrem-se covas para semear morto, erguer casa, deitar semente. E há um outro serviço: antes que uma vida comece, abre-se no chão uma fenda para deitar as sobras do parto. Agora, esgravatar o chão para desenterrar o tempo? Não cabe na cabeça de ninguém. O homem queria encontrar o passado? Procurasse dentro das pessoas. Escutasse conversas entre os vivos e os mortos. E se tudo isso não servisse, usasse o sonho, que, como todos sabem, é uma pá para escavar lembranças.

Ezequiel Nicolau agradeceu a amabilidade dos aldeões e pediu as devidas licenças. Sabia que no caminho para Mantiria tinha sido enterrado um rei que governara aquela região há mais de dois séculos. Os presentes entreolharam-se, intrigados. Que houvesse um rei sepultado, isso não causava espanto. O que não falta por aí são reis cobertos de terra e esquecimento. A dúvida era outra: como é que o doutor sabia o lugar da sepultura? O arqueólogo tirou da mochila um computador e ergueu-o como num tribunal se exibem as provas de acusação. Explicou como aquele aparelho, sem sair do seu lugar, espreitava, media e fotografava o mundo inteiro. Isso já conhecemos, disse uma mulher. O meu filho trabalha na cidade e prometeu que nos ia enviar uma máquina dessas. Diz ele que está cheia de teclas, mas tira boas fotos, acrescentou a mulher.

E como prevalecesse um sentimento de desconfiança, o chefe da aldeia, Damião Nsala, usou da palavra:
– Não é falta de respeito, meus irmãos. O serviço deste doutor é, faz conta, um coveiro ao contrário.
– Cá para mim, ele é um mineiro disfarçado, comentou um outro. Esse doutor vem roubar as nossas riquezas.
– Não temos nada para ser roubado, comentou uma mulher. Nem por baixo nem por cima do chão.

A conversa demorou toda a manhã, até que o chefe da aldeia proclamou aquilo que ele apresentou como sendo “o consenso geral”. O passado tem donos, disse ele, com solenidade. Neste caso, prosseguiu o chefe, os donos estavam muitíssimo ausentes. Podiam ser chamados, mas isso pedia farinha, bebida e uma cabeça de cabrito.

Susa Monteiro

Na manhã seguinte, toda a aldeia se juntou à espera de que o arqueólogo se apresentasse ao trabalho. E como ele demorasse a sair da tenda, houve quem comentasse: para esses da cidade, a madrugada começa a meio da manhã. Até que viram Ezequiel a emergir na estrada, arrastando duas pás e uma picareta. Assim carregado, o visitante parecia a pessoa mais sozinha do universo. As mãos pesavam-lhe no corpo, os pés pisavam cegamente os capins como se tivesse medo do chão. A aldeia inteira seguiu as passadas do intruso, olhos presos em cada um dos seus gestos. E todos pararam quando ele escolheu um lugar para abrir uma cova.

Mangas arregaçadas o doutor elevou a pá para desajeitadamente a deixar cair, num gesto frouxo, a lâmina resvalando na superfície da terra. Esse homem, disse Damião, não se dá bem com o corpo dele. O chefe da aldeia deu um passo em frente e, sem cerimónias, ergueu a picareta para a afundar vigorosamente junto aos pés do visitante. Começa-se com a picareta, segredou ele ao ouvido do visitante. E os golpes sucederam-se com doce firmeza, como quem, sobre o ventre da terra, decepa um antigo cordão umbilical.

Embaraçado, o doutor entregou a pá a um outro camponês que, de imediato, se juntou à escavação. Sincopadamente, pá e picareta percutiam nas escuras entranhas como se nelas morasse um oculto tambor. Quando a cova começou a ganhar fundura, Damião suspendeu o trabalho para anunciar: aqui, já é ontem. E depois de umas pazadas, voltou a parar e anunciou: agora, chegamos ao depois de ontem.

– O doutor não sente medo?, perguntou Damião ao historiador.
– Medo?
– Medo de encontrar o que tanto procura?, insistiu o chefe da aldeia. É que esse rei vai mandar em si durante o resto da sua vida.
– Já não sobrevive nem poeira daquele que aqui reinou, vaticinou Ezequiel. Uns artefactos é o que irei recolher.
– Não sei, doutor, comentou o chefe. Ninguém morre nunca totalmente.

Escurecia quando o trabalho foi suspenso. Todos regressaram a suas casas. À luz de uma lanterna, Ezequiel Nicolau fazia anotações no seu caderno de viagem, quando sentiu que alguém se aproximava. Abriu o zipe da tenda e espreitou no escuro: um homem alto com uma longa túnica branca sacudia-se como se fosse um fantasma. Vinha receber dinheiro. Não era para ele. Era para uma nova cerimónia com os antepassados.

– Já paguei ao Damião, disse o arqueólogo.
– O Damião só é chefe da parte do dia, esclareceu o visitante. À noite, sou eu que mando.
– Meu caro amigo: sou um cientista do Museu Nacional. Não temos dinheiro nem para pagar salários.
– Nós aqui da aldeia não queremos ser o vosso museu, argumentou o chefe noturno. Que tal se fôssemos abrir buracos lá para a sua rua, na cidade?

Foi então que o arqueólogo Nicolau prometeu solenemente: se a pesquisa viesse a dar resultados, o chefe, aliás os chefes, aliás toda a aldeia, seriam devidamente compensados.

No dia seguinte, todos os aldeões, incluindo o chefe noturno, dedicaram-se a afundar a cova. O arqueólogo travava os ímpetos, recomendava mil cuidados: são delicadas as reminiscências dos antigos reis. De repente, como que por milagre, o fundo da cova encheu-se de água. Escutou-se o murmúrio surdo de um subterrâneo rio assaltando o vazio. Alguém murmurou: vai ver que lhe cortamos uma veia. Ezequiel Nicolau era a imagem da desolação. Tanto esforço para nada. E desabou sob o peso da tristeza. E lembrou-se das palavras da sua velha mãe: há momentos em que Deus ensina quanto o joelho precisa do chão. Quando reergueu o rosto, ele viu, espantado, como os aldeões festejavam. Estava ali, no fundo daquele buraco, aquilo que eles buscavam. O rei, o nosso rei!, gritavam. E todos imitaram o gesto do arqueólogo: ajoelharam-se e deram graças a Deus.

– Que rei?, perguntou o doutor, quase sem voz.
– Esta água, doutor, declarou, eufórico, Damião. Esta água é o rei.

As pessoas cantaram e dançaram usando as enxadas para marcar o compasso. Puxaram pelos braços do arqueólogo e fizeram com que ele partilhasse daquela celebração. Aos poucos, o cientista foi-se deixando possuir pela alegria geral. Afinal, pensou o historiador, reinava ali uma outra visão do mundo. Uma visão mais poética, mais pura e mais profunda. Naquele mundo, os mortos permanecem vivos. E nada pode ser mais vivo do que água.

No dia seguinte, o historiador fez as malas, arrumou a tenda na bagageira do carro e já acenava um vasto adeus quando foi interpelado pelos dois chefes.

– Não se esqueça da promessa, meu boss, disse um deles.
– Afinal, estamos todos felizes com o resultado da nossa cova, declarou o outro.

Ezequiel Nicolau colocou chapéu e óculos escuros. Enterrava no rosto uma sombra que nem o mais atento dos arqueólogos seria capaz de detetar. E havia um rei que nascera e morrera dentro dele naquele dia.

Estadistas e políticos de fibra não temem críticas de jornalistas. Só os medíocres e inseguros

Meus longos anos como jornalista me ensinaram que os verdadeiros estadistas e os políticos seguros de si não temem as críticas nem as perguntas mais ásperas dos jornalistas. Só os medíocres e inseguros. Os presidentes dos países importantes e das democracias sólidas sabem que as críticas dos veículos de comunicação fazem parte do jogo democrático. 

Hoje, aqueles que dirigem as grandes democracias jamais se permitirão deixar de responder, em uma entrevista pessoal ou coletiva, a uma pergunta de um jornalista, por mais dura que seja, ou abandonar a entrevista. E muito menos insultar ou ameaçar o jornalista. Só o ex-presidente americano Donald Trump fazia isso, e por isso era considerado como um desequilibrado mental e acabou perdendo as eleições. 

Aos jovens jornalistas brasileiros e aos estudantes de jornalismo que às vezes me perguntam sobre minhas experiências jornalísticas ao redor do mundo, dedico esta coluna para contar dois episódios emblemáticos de quando fui correspondente na Itália e no pequeno e poderoso Estado do Vaticano. 

Os políticos italianos que eu criticava em meus artigos, em vez de se queixar ao meu jornal, enviavam-me um motorista com um cartão manuscrito me agradecendo. Em meus 18 anos de correspondente, jamais um político importante reclamou comigo sobre as críticas que eu lhe fazia. 

Quando o ministro de Relações Exteriores da Itália era Giulio Andreotti, um dos políticos mais influentes do país, sete vezes primeiro-ministro, uma figura emblemática, a Espanha estava para entrar na então Comunidade Europeia. Para isso, era fundamental o voto da Itália. Certa manhã, o embaixador espanhol na Itália me ligou para dizer que tinha recebido uma queixa da embaixada italiana em Madri por meus artigos duros sobre a máfia siciliana. Disse que um funcionário da embaixada tinha feito um dossiê de seis meses de meus artigos e que estavam muito irritados. E acrescentou com clássico sabor mafioso: “É importante que saibam que a Espanha quer entrar na Comunidade e que precisa do voto da Itália”. 

Avisado, o então diretor do EL PAÍS, Juan Luis Cebrián, que tinha sido também o idealizador do jornal, pediu ao embaixador espanhol em Roma o nome e sobrenome do funcionário da embaixada italiana em Madri que se permitiu fazer um dossiê mafioso sobre um de seus correspondentes. 

Dois dias depois, recebi um telefonema do secretário de Andreotti me informando que no dia seguinte, às nove da manhã, o ministro me daria a entrevista que eu havia solicitado. Na verdade, eu nunca tinha pedido aquela entrevista e entendi que era uma forma elegante e diplomática de o ministro me chamar para falar comigo. 

Andreotti, como ministro de Relações Exteriores, era fundamental para apoiar a entrada da Espanha na Comunidade. Cheguei para a entrevista certo de que se tratava de falar sobre as críticas da embaixada italiana em Madri a respeito de meus artigos. Pelo contrário, ele me recebeu todo cordial e antes que eu lhe fizesse qualquer pergunta, foi ele que me fez uma, desconcertante: “Você sabe onde o Papa [que era então o polonês João Paulo II] escreve seus discursos?”. Respondi que imaginava que era em seu escritório. Ele respondeu que não, que os escrevia de joelhos em uma mesinha de sua capela particular onde celebrava missa. 

Intrigado, perguntei como ele sabia. Respondeu que o Papa o convidava muitas vezes a assistir à sua missa. “Não me importo que seja muito cedo, porque sou madrugador. O pior é quando me convida para jantar, porque costuma acabar muito tarde. Prefiro quando o Papa me convida para passear durante o dia com ele nos jardins do Vaticano.” Eu o escutava atônito, porque estava me dando uma notícia totalmente desconhecida para a imprensa e que, se publicada, seria destaque mundial, já que revelava uma intimidade incomum com o papa Wojtyla, ainda mais se tratando de um político polêmico pelas acusações de fazer parte da máfia. 

Em seguida, olhando para a parede, mostrou-me um quadro e me perguntou se conhecia o autor. Eu disse que não, e ele me respondeu: “É do pintor que em Manila, na viagem de Paulo VI às Filipinas, atentou contra o Papa com um objeto contundente na chegada ao aeroporto, ferindo-o no abdome”. 

Não foi um ferimento grave, mas causou uma comoção mundial. Depois, soube-se que se tratava de um pintor excêntrico que, naquela ocasião, tinha uma exposição de seus quadros no hotel em que se hospedaria toda a comitiva papal e queria se tornar conhecido mundialmente. Lembro muito bem porque eu acompanhava o Papa no avião com um grupo de correspondentes de todo o mundo e fui testemunha do pseudoatentado. 

O que não se entendia era como aquele quadro do homem que atacara o Papa tinha acabado no gabinete do ministro Andreotti. Será que o Papa tinha lhe dado o quadro de presente? Enquanto isso, nenhuma palavra sobre as críticas às minhas crônicas. 

O político importante do qual se chegou a dizer que era filho de Pio XII porque, ainda jovem, ganhou um cargo importante no Vaticano, concluiu nosso encontro com um último gesto emblemático. 

Antes de entrar na política, Andreotti foi jornalista. Tinha em sua mesa tinha um exemplar de um de seus livros, que me deu, e com isso se despediu após ter me dado uma notícia exclusiva. Quando saí, abri o livro e estava escrito: “Ao meu colega jornalista Juan Arias, com o afeto de Andreotti”.

Enviei o artigo sobre aquele encontro ao diretor do jornal, que, incrédulo, publicou-o imediatamente. Quando o embaixador da Itália em Madri abriu o EL PAÍS de manhã, ficou atônito. Entendeu muito bem que era uma mensagem cifrada para ele, para que não tentasse criticar novamente meus artigos. E a Espanha entrou na Comunidade Europeia com o voto da Itália. Assim são os verdadeiros estadistas. 

Até os Papas e o Vaticano sempre respeitaram os jornalistas e aceitaram suas críticas sem fazer ameaças nem insultos. Fui testemunha disso quando o diretor do EL PAÍS em seus primeiros anos sofreu duros ataques da Igreja espanhola da época, que ainda era franquista, porque o novo jornal defendia o direito ao aborto, os direitos humanos, a liberdade de imprensa e o direito às diferenças. Era um jornal liberal, como os novos que estavam nascendo dos escombros da ditadura. 

Um dia, o diretor me chamou a Roma e me pediu algo muito difícil: queria ter uma entrevista pessoal com o então substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, o espanhol Martínez Somalo. Era a terceira autoridade do Vaticano, uma espécie de ministro do Interior, e despachava várias vezes ao dia com o Papa. 

Sem saber como fazer, recorri ao embaixador da Espanha na Santa Sé, que era agnóstico, e perguntei se por acaso ele poderia tentar, mas eu achava impossível porque o substituto do Vaticano nunca havia recebido nenhum diretor de jornal e, além disso, Cebrián tinha acabado de se divorciar. 

Poucos dias depois, quando eu estava em um hotel de Florença fazendo uma reportagem, o telefone do quarto tocou: era o próprio substituto do Vaticano, que me conhecia das viagens com o Papa. “Juan, você me pede algo muito difícil, mas vou receber seu diretor”, disse ele. “Diga-lhe que venha em primeiro de maio, quando o Papa estará muito ocupado e terei mais tempo para ele.” E impôs como condição que eu acompanhasse o diretor. 

Cebrián chegou a Roma na noite anterior e, às nove da manhã, atravessamos os portões do Vaticano e nos dirigimos, depois de entregar vários documentos, ao pequeno escritório do monsenhor Somalo, ao lado do gabinete do Papa. Cebrián lhe explicou durante uma hora as dificuldades do EL PAÍS e dos novos jornais que estavam surgindo depois da morte do ditador Franco devido à sua posição de veículos abertos à defesa das liberdades que haviam sido pisoteadas durante a ditadura. 

Somalo lhe perguntou se quem atacava os jornais eram os militares. “Não, monsenhor, quem nos atrapalha é a Igreja, que sempre esteve do lado da ditadura e de Franco.” Surpreso, Somalo lhe disse: “Aqui no Vaticano respeitamos a liberdade total de expressão e a imprensa livre”. E, referindo-se a mim, explicou por que quis que eu o acompanhasse ao encontro. “Seu correspondente aqui é testemunha de que nunca recebeu do Vaticano um telefonema de protesto por seus artigos”, afirmou. “E não me dirá, diretor, que não escreveu coisas muito duras sobre nós.” 

Eu tinha escrito sobre as dúvidas que existiam de que João Paulo I, que morreu misteriosamente 33 dias depois de sua eleição, pudesse ter sido assassinado. Eu lhe respondi que era verdade que o Vaticano nunca tinha se queixado de meus artigos e sempre me deu um lugar no avião do Papa para acompanhá-lo em suas viagens pelo mundo. E, entre brincadeira e a sério, acrescentei: “Mas também é verdade, e vocês sabem disso, que sei de coisas que nunca publiquei nem publicarei”. 

Rindo, o monsenhor Somalo disse a Cebrián em tom carinhoso: “Como seu correspondente é mau!”. Cebrián voltou para Madri e a verdade é que a Igreja deixou o jornal em paz. Só as figuras políticas inseguras e medíocres, sem personalidade, permitem-se atacar e até insultar e ameaçar os jornais e os jornalistas. 

Tanatocracia

A humanidade alcançou conquistas e realizou avanços no campo da ciência e da tecnologia, em espaço de tempo, capaz de desafiar o mais ousado pensador da ficção cientifica. Em contrapartida, não conseguiu chegar a um modelo ideal de organização política que, estabelecesse normas e padrões de convivência civilizada e submetesse o poder ao controle dos governados.

E haja tempo. Por falar em tempo, não custa, em voo rasante, observar que há milênios, foi legado ao futuro a herança greco-romana em pensamento, palavras e obras. Para não ir longe, basta se situar no campo da filosofia e do direito. Por sua vez, a origem e o significado etimológico das palavras explicam, sinteticamente, a natureza dos governos a partir dos sufixos “Arquia” designa governo; “Kratos”, titã da mitologia grega, que personificava o poder.


Com efeito, a palavra formada não emite juízo de valor para além do que conceitua. No conjunto, limita-se a demonstrar a complexidade que envolve as múltiplas facetas da realidade política. Parte delas, foi extraída do clássico de Bobbio, “Teoria das Formas de Governo”, tendo como origem a célebre discussão entre Otanes, Megabises e Dario sobre a forma de governo mais adequada para Pérsia, hoje Irã, na sucessão de Cambises, século V a.C. Outra parte não chega a ser formas de governo, mas se desvia da rota do que poderia ser “o bom Governo”.

Monarquia: governo de um; Aristocracia: governo dos melhores; Democracia: governo do povo; Oligarquia: governo de poucos, da mesma família, partido ou corporação; Oclocracia: governo da multidão, da turba; Autocracia: governo de único detentor do poder (líder, ditador, déspota, comitê, partido); Plutocracia: governo dos mais ricos; Cleptocracia: “governo de ladrões”, corrupção política institucionalizada; Timocracia: “governo da honra”, forma de governo em que a honra é o princípio dominante; Teocracia: governo fundamentado pela encarnação da divindade no governante; Androcracia: governo que se baseia na suposta superioridade masculina; Pedantocracia: sequela da Tecnocracia, governo de especialistas e senhores da razão; Ineptocracia: governo de incapazes; Idiocracia: governo de idiotas; Gerontocracia: governo de velhos, de preferência, oligarcas; Pornocracia: período (Século X) de obscurantismo moral no Vaticano; Hierocracia: governo dos sacerdotes; Pulhocracia: governo indecoroso que se transforma na Canalhocracia; Tanatocracia: governo da morte.

Inacreditável, mas a humanidade viveu experiências dramáticas em matéria de desgoverno e desvalor da vida que começa a ser extinta quando lhe falta a atmosfera do respeito e diálogo. E aí estará condenada à pena de morte por falta de ar.

Bolsonaro e a construção do caos

Enquanto sonhamos com a imunização do povo contra a Covid-19, quem recebe vacinas é Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e os congressistas do Brasil. Flávio ganhou uma vacina contra a punição no caso das rachadinhas. Os congressistas foram mais longe e produziram um projeto que os vacina contra a prisão em flagrante.

Impressionante ver como o populismo de direita se associa aos políticos tradicionais para criar uma intransponível blindagem para toda sorte de crimes.

E logo eles , os populistas de direita, que afirmam a decadência de um mundo materialista, distante dos valores espirituais que pretendem restaurar.


Acabo de ler “Guerra pela eternidade”, um livro de Benjamin Teitelbaum. O livro fala do retorno do tradicionalismo e da ascensão da direita populista. Infelizmente, não posso fazer uma resenha aqui, senão meu espaço iria para o espaço, se me perdoam o jogo de palavras.

Teitelbaum é etnógrafo, e seu método de pesquisa consiste em observar e interagir com as pessoas que estuda. Dois personagens, entre outros, se destacam em seu livro: Steve Bannon e Olavo de Carvalho. A leitura do livro me ensinou alguma coisa sobre o pensamento da direita, embora a tese central não tenha me parecido muito sólida. Ele tenta enquadrar Steve Bannon e Olavo de Carvalho no figurino do tradicionalismo, mas algumas partes do corpo ficam do lado de fora, não cabem exatamente.

O tradicionalismo tem uma visão circular do tempo. As épocas se sucedem da Idade do Ouro, o tempo dos sacerdotes, passando pelos guerreiros e comerciantes, até o dos escravos, a decadência que se vive hoje no mundo material, globalizado, dominado por uma aliança entre o liberalismo e a China.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho sonham com um novo mundo, em que os moradores das áreas rurais americanas e o povo religioso do Brasil (no caso de Olavo) aparecem como as forças novas que vão restaurá-lo.

É um pouco parecido, num outro plano, com a visão romântica dos comunistas, que viam a redenção na classe operária. O mais importante, no entanto, é que, assim como a velha extrema esquerda, Bannon quer implodir as instituições existentes.

Isso explica, no governo Trump, a escolha de uma secretária de Educação que distribuía vouchers para usarem em escolas particulares, anulando o ensino público. Ou mesmo a escolha de um diretor da agência ambiental cujo grande objetivo era acabar com seu ativismo.

Há correspondência dessas escolhas no Brasil. Ricardo Salles foi apontado para destruir o trabalho legal pelo meio ambiente. Ernesto Araújo, para realizar uma diplomacia que rompe com as práticas tradicionais.

Araújo não se importa que o Brasil se transforme num pária. Num mundo decadente, isso é um elogio: significa que há um papel na nova idade do ouro, em que os símbolos superam a razão.

Não tenho espaço para as contradições. Lembro apenas que Bannon se diz espiritualista, mas recebia um salário de US$ 1 milhão de um bilionário chinês e foi acusado de desviar dinheiro destinado a construir o muro na fronteira com o México.

O ponto central é que essas ideias influenciam o governo Bolsonaro. Ele mesmo é uma espécie de antipresidente, alguém destinado a explodir a instituição. O caos é algo promissor para quem julga antever a aurora de uma nova era.

É assim que entendo sua intervenção na Petrobrás e os decretos para armar o povo. Na verdade, foi assim que li as principais declaracões dos quadros da alt-right, a direita alternativa.A tática parece muito com as velhas teorias revolucionárias , só que com o sinal trocado.
Fernando Gabeira