domingo, 21 de março de 2021
Medos cruzados
O medo, como se sabe, é desde sempre a mais primal e potente emoção a mover todas as espécies, inclusive a humana. Estudiosos ensinam que os gregos da Antiguidade tinham tantas variantes para a palavra “medo” quanto são múltiplas as designações dos povos inuit para “neve”. Felizmente, Freud simplificou as coisas. Com ele aprendemos a distinguir o medo real (nossa resposta racional e compreensível à percepção de um perigo concreto), do medo neurótico (nossa expectativa movida a ansiedade, desencadeada por coisas tão inofensivas como uma sombra na calçada). O medo real, como o da professora Maciel, exige algum tipo de ação, seja fugir para se proteger, seja combater o perigo com as armas que tiver. O medo imaginário — aquele que interpreta coincidências como sinais letais e constrói cenários catastróficos — costuma resultar em paralisia.
Pois Jair Bolsonaro, em sua cavalgada de presidente em precipício, se dedica a inverter os sinais. Declara imaginária e neurótica a mortandade por Covid-19 que, de Norte a Sul, esvazia de vida o Brasil, enquanto acredita em suas próprias insânias com medo real de perder o poder. Nada pior para um país do que ser governado por um celerado em tempos de pandemia. Em todas as unidades da Federação, o estoque de 11 medicamentos recomendados para a entubação de pacientes (derradeiro recurso, antes do óbito) está minguando. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, uma falha na distribuição de oxigênio causou a morte de 6 doentes num só dia. No cemitério de uma cidade pernambucana de 140 mil habitantes (Vitória de Santo Antão), corpos em decomposição amontoados a céu aberto prenunciam o amanhã coletivo. Em São Paulo, a prefeitura inaugura três “hospitais de catástrofe” para estancar a hemorragia de vidas — mais de 20 mil na capital. De Teresina, chega a foto de um idoso esquálido que morreu no chão de uma UPA não mais por falta de leito de UTI, ou de leito de enfermaria, mas por falta de simples maca ou cadeira de plástico para “morrer na contramão”, como diz a canção de Chico Buarque. São as entranhas do país expostas por um presidente perverso e vigarista, que necessita de caos e fúria para existir. Quanto maior o descontrole, mais cresce seu flerte obsessivo com a exumação do “estado de sítio”.
Chefes de Estado negacionistas houve vários no planeta infectado, com gradações múltiplas de conveniência política, porém só Bolsonaro arrosta até hoje, passado um ano de horror pandêmico, seu descrédito presidencial quanto ao número de óbitos por Covid-19 no país. Segundo o colunista Lauro Jardim, a insânia já contaminou o futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, antes mesmo de sua posse. Em conversa privada com pelo menos um colega médico, Queiroga teria manifestado a intenção de fazer blitzes em hospitais para aferir se as UTIs estão realmente lotadas, se tem essa gente toda morrendo de Covid-19.
Então cabem algumas perguntas: como não condenar um presidente que prega “desobediência civil” a seus fiéis, para que resistam a medidas de isolamento capazes de salvar suas vidas? Como não condenar um chefe do Executivo que finge ameaçar o Judiciário com “ação dura” caso não consiga impedir governadores de decretar lockdown? Como não condenar o presidente de um regime ainda democrático que chama o Exército de seu? “O MEU exército não vai para a rua para cumprir decreto de governador. Não vai”, garantiu Bolsonaro em tom exaltado na sexta-feira. “Se o povo começar a sair de casa, entrar na desobediência civil, não adianta chamar o Exército, porque MEU exército não vai.”
Uma última pergunta, talvez ainda mais pertinente, fica no ar: e se Bolsonaro não estiver completamente celerado ao chamar o Exército brasileiro de seu?
Daí a conveniência de a sociedade manter seu justificado medo no âmbito do perigo real — aquele que demanda de cada um uma reação. No caso, seja para se proteger, seja para combater o sombrio conluio do presidente da República com o óbito do Brasil.
Poder da 'egolatrina'
Diante do comportamento do senhor Jair, eu acho que há elementos suficientes para que se possa dar uma hipótese diagnóstica. Se acham os grandes poderosos, e aí vem a tirania, porque só eles que estão certos. Essas pessoas não deveriam nunca ter esse poder de mando, mas quando têm é sempre uma lástima.
São ególatras, ou seja, estão sempre pensando em si mesmos. São indivíduos que não têm remorso nunca. São tidos como pessoas toscas, capazes de ter determinados comportamentos e não percebem aquilo que estão fazendo de errado
Guido Palomba , psiquiatra forense
A palavra que habita em nós
A palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos sinceramente que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.
A armadilha em que estamos é que não há remédio institucional fácil, e suficientemente rápido, para neutralizarmos o agente de nossa própria morte. Não temos legítima defesa. Os democratas respeitam as regras do jogo constitucional. O constituinte não pensou que haveria um tempo assim tão perigoso em que o governante atentaria contra a vida coletiva. Na Constituição está escrito que a saúde é um direito do povo e um dever do Estado. Esse é o primeiro princípio, de uma infinidade de outros, que está sendo quebrado.
O presidente da República convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal para participar de um comitê de combate à pandemia. Estranho, porque ele nunca combateu a pandemia. Ao mesmo tempo, ingressou no Supremo contra três governos estaduais que tomaram medidas para reduzir a circulação de pessoas e, portanto, do vírus. O ministro Luiz Fux perguntou aos colegas se devia ir e recebeu a aprovação. Fux vai para um “diálogo institucional”, mas já avisou que não participará de uma comissão formal. Não existe meia entrada nessa reunião. Jair Bolsonaro está em litígio com os governadores. Se o STF vai julgar essas ações não pode participar de diálogo algum. É uma armadilha. Mais uma.
O que mais ele terá que fazer? Quantas mortes serão suficientes? Quanto fel ele ainda terá que destilar? Até quando os poderes da República vão acreditar que estão diante de um governo normal, com o qual se pode ter diálogo?
Desde o início desta pandemia o presidente da República escolheu seu lado. Não é o da vida. Diariamente ele maquina o mal. Ficou contra cada medida que poderia evitar mortes. Seu governo se nega a fazer a coordenação que, numa federação centralizada como a nossa, cabe à União. Ele não apenas se omite, ele age. Bolsonaro sabota a ação do aparato de Estado que o país construiu. O Ministério da Saúde é uma sombra do que foi, do que poderia ter sido nesta crise. A demolição institucional continua sendo executada com crueldade.
O presidente é pessoa de extrema perversidade. Mas um perverso com método. Ele apostou, desde o início, que a melhor forma de se salvar é defender que a economia deve continuar funcionando. Calculou que a imunidade coletiva chegaria e nesse momento ele diria que estava certo desde o início. Então a raiva da população ferida poderia ser dirigida contra os outros. Que outros? Todos. Governadores, prefeitos, ministros do Supremo, adversários políticos, jornalistas. Qual a variável de ajuste dessa equação? Os mortos. Podem ser quantos forem até que se atinja a imunidade coletiva que, na sua visão, viria da contaminação em massa. Bolsonaro certa vez comparou o coronavírus à chuva. “Ela vai molhar 70% de vocês”. Bolsonaro está errado desde o início. A ciência nos ensina que diante deste vírus mutante e mortal a imunidade coletiva só virá com a vacinação em massa.
O presidente adotou conscientemente o caminho de nos levar para esta exposição máxima ao vírus porque desta forma se chegaria, na cabeça dele, ao fim da pandemia. O caminho está errado sob todos os pontos de vista: médico, científico, humano. Ele está nos levando para a morte. Qual é a palavra exata? Genocídio.
Vacinação devagar, quase parando
"E se o senhor, digamos, o senhor que está perto de completar 66 anos, digamos que o senhor aproveite a data que se aproxima para entrar na fila com outros brasileiros da mesma idade e tomar a primeira dose, veja bem, a primeira, depois o senhor teria de tomar a segunda, e, mostrando o braço de atleta, receber a vacina e provar que o senhor não tem medo da picada e, digamos, que está a favor da vacinação?".
Se não xingasse os assessores ou encerasse a conversa abruptamente, como costuma fazer diante das perguntas incômodas de jornalistas, Bolsonaro teria um bom tempo para pensar na resposta. Seu aniversário é neste domingo (21), mas a vacinação está devagar, quase parando. No ritmo atual, a cobertura de 70% da população, a mínima necessária para que haja imunidade coletiva, não virá em 2021. As mortes, sim, deverão chegar a 300 mil ainda neste mês.
Os conselhos para que Bolsonaro pare de negar a gravidade da pandemia —o que faz desde março do ano passado, quando promoveu aglomerações em frente ao Ministério da Saúde para criticar soluções sanitárias do próprio órgão— foram reforçados depois da ressurreição de Lula. O capitão anda tão nervoso que não se pode mais nem chamá-lo de "pequi roído", pois lá vem processo.
Não está no seu horizonte nenhuma mudança na retórica populista que combate as medidas severas de isolamento. Bolsonaro enxerga nelas um complô, uma guerra contra sua reeleição —única coisa a que se dedica. Tanto que agravou a crise federativa ao pedir ao STF que restrinja o poder de governadores. Mais desperdício de tempo, significando mais vidas perdidas.
Sobreviver é preciso
Jamais imaginei que usasse um dia versos de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, para ilustrar uma crônica. Nunca pensamos tanto na morte e valorizamos tanto a vida. A vida que passa diante dos olhos, no voo da borboleta, no mato acumulado em volta da árvore e que dá flor, no miado do gato de rua, sempre à mesma hora, no pio dos pássaros que visitam o telhado, nos urubus brincando de ciranda entre as nuvens, nas elegantes gaivotas e seu sóbrio silêncio. A vida que se reafirma na graça dos bebês, na inocência dos pequenos, na beleza dos jovens, na tenacidade dos adultos, na persistência dos idosos.
A morte que leva embora o vizinho amigo que, com a esposa, formava um casal invejável. Usavam a garagem fechada como estúdio, ele, para criar objetos de madeira e ela, para usar a máquina de costura. No dia em que passei mal, me acudiram prontamente. Na parede do escritório, tenho a floreira feita por ele, que recebi de presente. E a assisti desmontar o apartamento, quando resolveu voltar a morar em São Paulo, a fim de ficar mais perto de onde o marido permanecia internado. Por não gostar de despedidas, não se despediu. Penso que não volta.
A morte também está no obituário do jornal de todo dia, cada vez com mais colunas e nomes de todas as idades e profissões. Em conversas com os motoristas de táxi, quase sempre sobre perdas: o salário que não cobre as despesas, os parentes desempregados, a aposentadoria que ainda demora, o medo que representa cada passageiro, os boatos assustadores.
Assim sobrevivemos um ano e iniciamos outro, ainda sem certezas. Hoje devo tomar a primeira dose da vacina, defendendo a vida como Severina. Ela ainda me encanta, apesar dos altos e baixos, atualmente, mais baixos que altos. Ainda pulsa em cada ação, desejo, sonho, na fome, na sede, na saudade. O outono vem chegando, com sua brisa fresca e cores amenas. Tempo considerado de recolhimento, mesmo para nós, há tanto recolhidos. Se o presente não nos pertence, o futuro pertencerá. Há que se ter esperança.
Madô Martins