quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Tem alma os verdugos?

Uma alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma vontade, de um querer, de um desejar não especificamente localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade imaterial, a alma, que, através da consciência, seria, ao mesmo tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A flor absolve o martelo?

Ficou dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar de o não serem efectivamente, não podem viver separados), não são especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células nervosas dispostas em seis camadas ligadas entre si), se encontra ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo, não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação de uma “amostra material” dessa mesma materialidade…

O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas.

Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A alma dos verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: “Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade”. Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, de que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.

Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…
José Saramago, "O caderno"

Yanomami: tragédia humanitária anunciada

Diante da tragédia humanitária que se instalou sobre os povos Yanomami e Ye’kuana, publicizada neste janeiro de 2023, a Associação Brasileira de Antropologia reitera denúncias já realizadas por meio de notas técnicas e manifestações ao longo dos últimos quatro anos. Ratifica a urgência da retirada de invasores e a construção de um plano emergencial para o qual nós, associados da ABA, e demais entidades abaixo subscritas, nos colocamos à disposição para colaborar com as ações no âmbito de nossas competências.

O povo Yanomami compreende um conjunto cultural e linguístico constituído por quatro subgrupos adjacentes que vivem nos estados de Roraima e Amazonas, assim como na Venezuela. Além dos Yanomami, vivem no território o povo Ye’kuana, de língua Karib e povos isolados. Em dados de 2011, sua população total era de mais de 19 mil pessoas. Embora seu território tenha sido criado em 1991, no Brasil, os conflitos com os garimpeiros persistem desde então, recebendo atenção intermitente e ineficaz por parte do Estado brasileiro. Uma das maiores crises deflagradas pela invasão de garimpeiros em território Yanomami ocorreu em 1993, num episódio conhecido por massacre de Haximu. Na ocasião, 16 pessoas, a maioria crianças, mulheres e idosos, foram brutalmente assassinados.

Ao longo dos anos, antropólogo/as têm produzido inúmeros materiais etnográficos sobre os Yanomami, muitos dos quais mobilizados nas ações e denúncias da ABA sobre as violações de direitos a esse povo. Nos últimos quatro anos, essas denúncias se intensificaram na medida em que a violência contra os Yanomami também escalou de forma brutal. Em março de 2019, denunciamos com a Abrasco o desmonte do subsistema de saúde junto à população indígena. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em abril de 2020, já na pandemia de covid-19, afirmamos que a chegada da pandemia se deparava com desmonte nas políticas de saúde, entre elas a demissão de profissionais da antropologia nas equipes multidisciplinares de assistência básica a estes Povos.

Alertamos sobre as consequências das fake news sobre a vacina junto à população indígena entre outras. Em maio de 2021, chamamos a atenção sobre o risco de genocídio dos povos isolados e um ano mais tarde, em maio de 2022, sobre o risco de genocídio na terra Indígena Yanomami e Ye’kuana. As denúncias relacionavam, desde então, a invasão da TIYY pelo garimpo ilegal, a contaminação por mercúrio, a desestruturação dos serviços de saúde, o aumento de violência nas comunidades, as violações sexuais, a fome e a desnutrição, o aumento exponencial dos casos de malária, situações nas quais mulheres, idosos, idosas e crianças são as mais vulnerabilizadas.

Diante da reportagem realizada pelas jornalistas Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum no Sumaúma – Jornalismo do centro do mundo, em 20/01/2023, e de sua repercussão, vimos informar que as notas produzidas pela ABA e outras associações científicas, acima indicadas, são documentos públicos, muitos dos quais enviados às autoridades, que estavam, portanto, cientes da grave situação dos Povos Yanomami e Ye’kuana. Assim como os documentos elaborados pela associação Hutukara Yanomami ao longo destes últimos anos.

A retirada dos invasores, o atendimento à saúde e a segurança alimentar são ações urgentes. É uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), tal como declarada pela Portaria GM/MS nº 28 de 20 de janeiro de 2023, da ministra da Saúde [Nísia Trindade]. Esta situação requer a abertura de inquérito policial para apurar o crime de genocídio e crimes ambientais na Terra Indígena Yanomami, como determinado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública [Flávio Dino]. A criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, decretada pelo presidente da República, é igualmente importante. Todas as medidas governamentais são urgentes e indispensáveis, inclusive a descontaminação de rios e solo, envenenados pelo mercúrio garimpeiro. Mas também é urgente e indispensável que a sociedade brasileira esteja informada e mobilizada para a defesa da vida e de todos os direitos dos povos originários.

Além disso, ressaltamos que as imagens tornadas públicas se referem apenas a uma parcela da situação instaurada entre os Yanomami. Ainda não há informações sobre a totalidade da área atingida e de suas consequências, bem como sobre a preocupante situação dos povos indígenas em isolamento voluntário que vivem na TIYY. Lembramos ainda que, além do plano emergencial, serão necessários planos de médio e longo prazos que assegurem a estabilidade territorial e sanitária necessária para a sustentabilidade dos modos de vida Yanomami e Ye’kuana.

A Associação Brasileira de Antropologia, nesta oportunidade, rememora a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Tribunal Permanente dos Povos, em 2022, e alia-se às iniciativas da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) nas denúncias já realizadas por crime de genocídio e crimes contra a humanidade, junto ao Tribunal Penal Internacional.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

O verbo matar

Quem se espanta com o espetáculo de horror diversificado que o mundo de hoje oferece faria bem se tivesse o dicionário como livro de leitura diurna e noturna. Pois ali está, na letra M, a chave do temperamento homicida, que convive no homem com suas tendências angélicas, e convive em perfeita harmonia de namorados.


O consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o sentimentalismo; que redija projetos de paz universal, à maneira de Kant, e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive matando.

A ideia de matar é de tal modo inerente ao homem, que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.

Todos os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la. Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí, matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.

O estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na cabeça.

Beber um gole no botequim, ato de aparência gratuita, confortador e pacificante, envolve sinistra conotação. É o mata-bicho, indiscriminado. E quantos bichos se matam, em pensamento, a cada instante! Até para definir as coisas naturais adotamos ponto de vista de morte violenta. Essa planta convolvulácea é apresentada por sua propriedade maléfica: mata-cabras. Nasceu para isso, para dizimar determinada espécie de mamíferos? Não. Assim a batizamos. Outra é mata-cachorro. Uma terceira, mata-cavalo, e o dicionarista acrescenta o requinte: “goza da fama de produzir frutos venenosos”. Certo peixe fluvial atende (ou devia atender) por mata-gato, como se pulasse d’água para caçar felinos por aí, ou se estes mergulhassem com intenção de ajustar contas com ele. Em Santa Catarina, o vento de inverno que sopra lá dos Andes é recebido com a exclamação: “Chegou o mata-baiano”.

Já não se usa, mas usou-se muito um processo de secar a tinta em cartas e documentos quaisquer: botar por cima um papel grosso, chupão, que se chamava mata-borrão e matava mesmo, sugando o sangue azul da vítima, qual vampiro de escritório.

A carreta necessita de correia de couro que una seu eixo ao leito. O nome que se arranjou para identificá-la, com sadismo, é mata-boi. Mata-cachorro não é só planta flacurtiácea, que acumula o título de mata-calado. É também alcunha de soldado de polícia estadual, e do pobre-diabo que, no circo, estende o tapete e prepara o picadeiro para a função.

Matar charadas constitui motivo de orgulho intelectual para o matador. Há um matador profissional, remunerado pelos cofres públicos: o mata-mosquito, que pouca gente conhece como guarda sanitário. Mata-junta? É a fasquia usada para vedar juntas entre tábuas. O sujeito vulgarmente conhecido como chato, ao repetir a mesma cantilena, “mata o bicho do ouvido”. Certa espécie de algodoeiro é mata-mineiro, certa árvore é matamatá, ninguém no interior ignora o que seja mata-burro, mata-cobra tanto é marimbondo como porrete e formiga. Ferida em lombo de animal chama-se matadura. Nosso admirável dedo polegar, só lhe reconhecem uma prestança: a de mata-piolhos.

Mandioca mata-negro. Peixe matante. Vegetal mata-olho. Mata-pulga, planta de que se fazem vassouras. Mata-rato, cigarro ordinário. Enfeites e atavios, meios especiais para atingir certos fins, são matadores. “Ela veio com todos os matadores” provoca admiração e êxtase. “Eunice com seus olhos matadores”, decassílabo de vítima jubilosa.

Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, os pogroms, o napalm, as bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.
Carlos Drummond de Andrade, "De notícias e não notícias faz-se a crônica"