segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

É na confluência de incompetência, descaso e crueldade que reside a tragédia em Manaus

A incompetência e a negligência de uma administração pública são fatos graves. Já a crueldade e a baixeza deliberadas de certos governantes são taras que traduzem até que ponto o ser humano pode ser destruidor. É na confluência de incompetência, descaso e crueldade que reside a tragédia em Manaus e no interior do Amazonas.

A morte de dezenas, talvez de centenas de brasileiros por falta de oxigênio é uma ironia macabra; afinal, o estereótipo mais conhecido da Amazônia é o “pulmão do mundo”. No entanto, essa catástrofe, que nos revolta e entristece, não é surpreendente. Ela é a culminação de várias décadas de governos populistas e corruptos no Amazonas. No atual contexto político, a crueldade, a mentira e a baixeza são mais ostensivas e deletérias.

O governador do Amazonas é um ex-radialista que caiu de paraquedas na política. Em 2018, ainda no ar, candidatou-se ao governo e surfou na onda enganosa e lamacenta da “nova política”. Ele não consegue explicar ao Tribunal de Contas do AM a isenção tributária concedida à Eneva, uma empresa que explora gás natural no Campo do Azulão, entre os municípios de Silves e Itapiranga. Em junho do ano passado, sua ex-secretária de saúde foi presa por suposto superfaturamento na compra (sem licitação) de respiradores.


A Amazônia só é exótica para quem a desconhece. Exótico é o governo que compra respiradores numa loja de vinho. Naquele mês, a Polícia Federal e o MPF efetuaram buscas na residência do governador e bloquearam seus bens. Eis o rosto da “nova política” no Amazonas: uma versão do mesmo populismo insidioso, mas agora com ares de jovialidade e falsa religiosidade.

A tragédia na Amazônia não se limita à destruição do bioma e à invasão de terras indígenas. A desigualdade social em Manaus é obscena. Mais de 50% dos domicílios dessa cidade não têm acesso ao saneamento básico. Além disso, o índice de violência é altíssimo, e o IDH, vergonhoso.

Antes da Copa do Mundo, publiquei uma crônica (“Estádios novos, miséria antiga”), em que critico a construção de obras faraônicas e inúteis. O governo atual regozija-se com a plataforma de exploração de gás no Campo do Azulão, mas falta oxigênio para bebês, para pacientes com insuficiência respiratória e para doentes de Covid-19.

Minha tristeza não é maior do que a minha indignação. Nasci, passei minha infância e primeira juventude numa cidade bela, em harmonia com a natureza que a envolvia. Uma Manaus digna, onde havia pobreza, mas não essa extrema miséria e violência, consequência da miséria moral do poder público. Nesse sentido, Manaus e o Amazonas espelham o que há de pior na política brasileira. Há décadas o povo amazonense é vítima de descaso, humilhação, enganação, crueldade. Morrer por falta de oxigênio é ápice desse exercício de crueldade. Não deixa de ser uma tortura, que sempre soube (e sabe) usar sua lógica e sua logística.

 Milton Hatoum

Vacina mais forte do que gado

Milhares de pessoas perderam suas vidas, milhares ainda perderão suas vidas por causa desses atrasos que foram feitos pelo governo federal.

Nosso povo não aguenta mais. Vamos fazer um ano de uma tragédia humanitária. Um ano em que as pessoas perderam seus empregos, seus sonhos. É hora de todos exigirmos uma postura mais austera, enérgica e robusta. E viva a vida. Viva a vacina
Jean Gorinchteyn, secretário de Saúde de São Paulo

O quinto mandato

Quem me lê sabe que não costumo publicar nem discutir na coluna mensagens de leitores. Prefiro fazê-lo pessoalmente, por e-mails que eles me indicam. Mas desta vez não posso deixar passar em brancas nuvens o que é dito aqui, vocês vão entender por quê. Para facilitar a leitura, fiz as devidas correções no português do texto original, que tanto podia ser arcaico quanto futurista. Como seu tema. Eis o e-mail que recebi semana passada:

“Prezado escriba. Ainda tenho comigo o jornal de ontem, onde se encontra sua coluna desta semana. Sou seu habitual leitor, mas não posso ver o Brasil maltratado sem me meter. Sou como o nosso presidente: Brasil acima de tudo (e, claro, Deus acima de todos)! O presidente é o homem mais incompreendido do planeta, e o senhor, como bom brasileiro, não devia colaborar com as injustiças de que ele é vítima. 

Por exemplo, o desmatamento não é em absoluto a causa principal das queimadas na Amazônia. Quando o fogo chega lá, as árvores já estão no chão atraídas por lei natural. Essa é a narrativa do progresso: quando há um acidente, surge também uma oportunidade. Mas os índios e os caras que moram lá sabotam o progresso, não cedem um centímetro de terra para modesta mineração, nem um riozinho sem importância para uma hidrelétrica. A floresta fica interditada. Os índios, que eram uns 4 milhões quando Cabral aqui chegou, hoje são menos de 200 mil gatos-pingados. E nós é que vamos pagar pelo descaso deles com a descendência?

O governo luta pela sobrevivência do povo, senhor escriba. Na última pandemia, no terceiro para o quarto mandato, o presidente mandou todo mundo tomar vermífugo como precaução. Foi um sucesso, esgotaram-se os vidros de vermífugo nas farmácias, a indústria farmacêutica que os fabricava foi apedrejada pela população que queria mais. Graças ao tratamento precoce com vermífugo, morreram apenas cerca de 550 mil brasileiros, metade dos mortos nos Estados Unidos e na Índia no mesmo período. 


Desde que a importação de armas foi liberada por decreto presidencial, a população vem se defendendo com entusiasmo de assaltos e tentativas de homicídio. A Polícia Militar se ocupa agora de tarefas mais graves, mantendo sob vigília oficiais ‘superiores’, como generais, almirantes e brigadeiros que perturbam a vida do governo. A PM foi liberada da servidão a esses oficiais e não depende mais de governadores e prefeitos, civis eleitos ninguém sabe por quem. A medida custou um pouco às finanças do Estado, já que o governo passou a arcar com o necessário desconto nas compras domésticas dos chefes policiais, descontos que foram cobertos pela UIF (ex-Coaf). Ficamos assim protegidos dos dias piores que o presidente teria que enfrentar (só Deus sabe como!), a exemplo de Donald Trump, sacrificado por causa de visita ao Capitólio norte-americano.

Outro dia fui ao cinema, num shopping na Praça Carlos Alberto Brilhante Ustra, recém-inaugurada, e vi com satisfação que não havia nenhum filme nacional programado. O governo parou de financiar esses comunistas, a Lei Olavo de Carvalho não financia mais o marxismo cultural, como fazia quando se chamava Rouanet. Agora ela apoia o apoio ao Brasil, como no caso da soja. Fizemos um trato com agricultores franceses, não perdemos mais tempo, dinheiro e terra arada com soja. Compramos da França, onde a família Le Pen controla o governo desde a sucessão de Macron e sua feia esposa. Os franceses nos vendem a soja com perfume inigualável, além de embrulho e embarque supervisionados por herdeiros de Pierre Cardin.

Nos anos 1930, Getúlio Vargas começou a modernizar o Brasil pela industrialização. Nosso presidente está levando o país de volta ao que sempre foi, uma ensolarada fazenda, onde todo mundo flana igual e ninguém tem pressa de nada. A Ford foi embora porque não se adaptou a esse novo Brasil do futuro. No dia D e na hora H, eles hão de entender que aqui um manda, e o outro obedece. O Congresso, hoje com sua maioria formada pela Aliança do Grande Centro, e o STF, fechado temporariamente para higiene interna, apoiam o presidente. Restam apenas os três meninos sumidos desde o Natal de 2020, que ainda estão escondidos por aí. O mais velho deles, Fernando Henrique, deve estar hoje com uns 25 anos de idade. Os meninos desaparecidos seguem mandando recados para suas comunidades, incentivando-as a resistir. Resistir a quê, meu Deus?!

Vou ter que parar de escrever, pois meu tempo é curto, e o seu, escasso.

Preciso sair correndo para ir votar em Jair Bolsonaro, o Mito, para mais um período na Presidência, conforme a oportuna reforma constitucional de 2022, quando seu partido sugeriu ao Congresso permitir que se candidatasse a novos e seguidos mandatos de quatro anos. A pífia oposição ainda tentou argumentar que a inflação passara de 4,52% em 2020 a cerca de 452% esse ano. Mas nossos sólidos economistas argumentaram que inflação é bobagem, não serve para dizer o que acontece de fato no país. E deram como exemplo Juscelino Kubistchek, o criador de Brasília, presidente a partir de 1955, quando ainda não havia reeleição.

Depois desses 12 anos no governo, Bolsonaro vai se sacrificar mais uma vez.

Como ele tem dito a seus apoiadores, na saída do Alvorada, o Brasil ainda precisa do dobro desse tempo para se endireitar de uma vez.

Até breve, meu caro escriba”.

Esse e-mail me foi enviado com a data de 10 de outubro de 2034. E agora? 
Cacá Diegues

Bolsonaro escolheu ser o coveiro dele mesmo

Na medida em que se enfraquece, o presidente Jair Bolsonaro perde mais e mais o controle sobre os fatos produzidos ou não por seu governo. Dois episódios de ontem provam isso.

Os cinco diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nomeados por ele, anunciaram ao país que não existe tratamento preventivo contra a Covid-19.

Desmentiram Bolsonaro em transmissão nacional de rádio e de televisão. Até o ministro da Saúde, o general de peito estufado Eduardo Pazuello, também o fez com todo o cuidado do mundo.

Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) deu início à vacinação em massa, o que o Ministério da Saúde disse que só poderia acontecer depois de sua autorização.

Doria também reteve a cota paulista de doses da vacina fabricada pelo Butantan que o Ministério da Saúde esperava receber para em seguida devolver a São Paulo. Uma estupidez, por certo.

Foi um ato de rebeldia do governador que, ao ser acusado por Pazuello de promover um “golpe de marketing”, respondeu que há 11 meses Bolsonaro promove um “golpe de morte”.

O presidente da República vai fazer o quê? Processar Doria? Pressionar a Justiça para que mande prendê-lo por crime de desobediência civil? Se o fizer, perderá.

Vamos ao mantra adotado por 9 entre 10 estrelas da política: presidente pode muito, mas não tudo. Bolsonaro, por mais que diga o contrário aos berros, cada dia que passa manda menos.



A derrota que colheu com a aprovação emergencial das vacinas foi a maior derrota desde que acidentalmente se elegeu há dois anos e tomou posse da presidência sem estar preparado para isso.

Mais de 70% dos brasileiros queriam se vacinar. O percentual crescerá com o início da vacinação em massa. Bolsonaro sempre desacreditou a vacina e diz que não se vacinará.

Em todos os países onde começou, a vacinação foi festejada pelos chefes de Estado. Aqui, Bolsonaro não deu um pio. Desapareceu. Apareça, Bolsonaro! Livre-se do colete à prova de vacina. Não dói.

No passado, quando um time goleava o outro, dizia-se que fez dele barba, cabelo e bigode, lembrou o jornalista Ricardo Kotscho. Perfeito! Doria fez barba, cabelo e bigode em Bolsonaro.

O 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil na Copa do Mundo de 2014 é pouco para dar a verdadeira dimensão da surra que Bolsonaro levou de Doria. Outras surras virão em breve.

Os bolsonaristas e seus cúmplices construíram a falsa narrativa da invencibilidade de Bolsonaro, fizesse ele o que fizesse. E que ele se tornara de alguns meses para cá um presidente normal.

Jamais Bolsonaro será um presidente normal porque como ser humano jamais foi normal. Não pode ser normal quem defende a tortura, tem fixação em armas, detesta gays e sabota a vida.

Aturá-lo por mais dois anos será insuportável, mas talvez sirva para ensinar os brasileiros a votar melhor.

Quando falta oxigênio

Escrevi um artigo sobre vários temas, sobretudo vacina, e sobre as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus.

Aos poucos, as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus foram deslocando os outros tópicos para o canto da página e ocuparam todo o espaço. Impossível falar de outra coisa quando há pessoas morrendo por falta de oxigênio nos hospitais.

Desde a semana passada, estava de olho em Manaus. Minha intuição indicava que a descoberta pelos japoneses de uma variante do coronavírus em turistas vindos da Amazônia merecia atenção.


Essas mutações do vírus, de um modo geral, se dão na proteína “spike” e facilitam a propagação. Os ingleses, que vivem um problema semelhante, perceberam e logo proibiram voos do Brasil.

Mas, ao mesmo tempo que perseguia as notícias sobre as mutações do vírus, acompanhava a crise nos hospitais de Manaus. Primeiro foi o alerta de que faltaria oxigênio. Depois vi uma entrevista do presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas, Mario Vianna, descrevendo o caos e dizendo que os doentes mais ricos estavam fugindo para o aeroporto em busca de salvação.

Cheguei a pensar na hipótese de que iriam isolar Manaus. Roraima fez uma barreira na Manaus-Boa Vista, e o Pará decidiu bloquear os viajantes pelos rios.

Pazuello estava em Manaus. Sua tarefa era encontrar uma saída para a crise emergencial. Vi imagens de cilindros de oxigênio sendo transportados pela Força Aérea. Mas Pazuello não conseguiu dimensionar a crise ou não soube reunir os recursos para evitar a tragédia. É um incapaz.

Mais uma vez, o governo trata a morte com indiferença. E não é uma atitude isolada. A Justiça decidiu cancelar o Enem em Manaus, e Bolsonaro recorreu dessa decisão sensata.

Na raiz dessa crise, está a tentativa do governo local de colocar restrições ao comércio num momento agudo da pandemia. Houve protesto de várias entidades, manifestações de rua, bandeiras, Hino Nacional.

Os bolsonaristas aplaudiram, assim como aplaudiram a revolta em Búzios. Segundo eles, o povo estava em luta pela liberdade contra decisões autoritárias. Esse discurso de Bolsonaro apela para a liberdade individual, num momento em que é necessária a cooperação.

O êxito de um discurso desse tipo se alimenta também do cansaço com as medidas de isolamento social e de algo, no meu entender mais estrutural. Jorge Luis Borges, falando dos argentinos, disse que eles são indivíduos e não cidadãos. Creio que algo parecido acontece aqui.

Isso torna mais fácil empurrar as pessoas para a morte, o que Bolsonaro e toda essa corrente de opinião têm feito com competência, negando não apenas a orientação científica, mas também a necessária disciplina social num tempo tão difícil.

Os americanos decretaram o impeachment de Trump porque ele insuflou uma ação violenta contra a democracia. Bolsonaro se recusa a aceitar a gravidade da pandemia e empurra as pessoas para a morte.

Estamos no limiar de uma campanha de vacinação. Ou, pelo menos, próximos de um ato de propaganda iniciando essa campanha. Mas as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus não nos deixam outro caminho, exceto lembrar: a política da morte está em curso, a cada minuto que nos atrasamos em nossa união para contê-la corremos o risco de estar matando também.

É preciso lembrar que o colapso em Manaus não está assim tão longe de outras regiões do Brasil. Já temos um índice de mais de mil mortos por dia. O crescimento dos casos em São Paulo é grande, e o próprio Hospital Albert Einstein cancelou a admissão das UTIs aéreas, aviões que trazem doentes de outros lugares do país. No Rio, chegamos ao limite.

A campanha de vacinação revela um planejamento precário e vacinas com um baixo nível de eficácia. Isso significa que teremos de vacinar muita gente para reduzir o número de casos e estancar o crescimento das mortes.

É muito difícil superar uma etapa dessa grandeza com um governo negacionista, incapaz e sem um traço de empatia com o sofrimento do povo brasileiro. Ele nos rouba oxigênio não só como indivíduos, mas como sociedade.

Para voltar a respirar, será preciso se desfazer do governo.

Trump sai, Bolsonaro continua

Em “De Volta para o Futuro” (1985), Michael J. Fox, vindo daquele ano, vai ao passado pela primeira vez e se refere a Ronald Reagan como o presidente dos EUA. Christopher Lloyd, o cientista, não acredita: “Reagan, o ator? Presidente dos EUA??? E quem é o vice? Jerry Lewis???”. Em 1955, ano em que se passa a história, Reagan, já relegado a filmes B, não poderia ser o presidente nem na tela —papel reservado a atores sóbrios e amados, como Henry Fonda, Ralph Bellamy, Fredric March—, quanto mais na vida real. Pois, em 1980, a vida real elegeu Reagan. Pena que sem Jerry Lewis.

Claro que, diante de Donald Trump, Reagan ganhou estatura de estadista, digno sucessor de Washington, Lincoln e Franklin Roosevelt. Trump rebaixou o cargo a níveis que nem o genocida James Buchanan (1857-61), o imoral Richard Nixon (1969-74) e o mentiroso George W. Bush (2001-09) se atreveram. Fez isto somando e absorvendo as piores ignomínias desses três e acrescentando a última audácia que os EUA esperariam de seu presidente —um projeto de golpe e ditadura.



Trump sairá pelos fundos da Casa Branca em 48 horas, mas o mundo ainda não está a salvo. Até o último minuto ele continuará a fazer o mal —insuflando seu gado ao ódio, sonegando dados sobre a pandemia para seu sucessor e cogitando anistiar a si mesmo e à sua família pelos crimes que cometeram. Muitos americanos que o apoiaram descobrem agora que sua ideia de poder não visava a um fim, qualquer que fosse. Ele era o meio e o fim. A psiquiatria deve ter um nome para isso.

Com o fim de Trump, os americanos têm um país a reconstruir. Aqui chegamos à metade do mandato do subclone Jair Bolsonaro e o pior ainda está por vir.

Pendurado na brocha sem a escada de seu líder, só cabe a Bolsonaro recrudescer. Ele também se vê como um meio e um fim. Resta ver quem chegará primeiro a este fim —ele ou o Brasil.

Brasil se vacina

 


Os horizontes turvos da democracia

O tema já frequenta foros avançados da democracia: a influência da tecnologia e da inteligência artificial na política. O pressuposto é o de que a personalidade de uma pessoa pode ser decifrada por processos de reconhecimento facial, segundo estudos de um controverso professor da Universidade Stanford, o polonês Michal Kosinski. A polêmica ganhou intensidade na campanha americana de 2016. Donald Trump teria usado algoritmos extraídos de feições para identificar a orientação política de eleitores. E, a partir daí, influenciá-los com intensas cargas de conteúdos.

À sombra dessa hipótese, desenham-se imensos painéis sobre a crise da democracia, do conflito recorrente entre o liberalismo e o ideário democrático (conviverão ou tendem a se afastar?), os sistemas partidários, o nacional-populismo, com seu vaivém.

Bobbio alerta em seu clássico O Futuro da Democracia: “o pensamento liberal continua a renascer, inclusive sob formas capazes de chocar pelo seu caráter regressivo, e de muitos pontos de vista ostensivamente reacionário, porque está fundado sobre uma concepção filosófica da qual, agrade ou não, nasceu o mundo moderno: a concepção individualista da sociedade e da história. Concepção com a qual a esquerda jamais fez seriamente um acerto de contas”. Ele preocupava-se com o desmantelamento do estado assistencial.

Não por acaso, o nacional-populismo expande seus laços com figuras estrambóticas e ideais de defesa da Pátria contra “invasões alienígenas”, como são considerados os imigrantes, acusados de sugar riquezas nacionais, aumentar a desigualdade e contribuir para a insegurança pública. Assim, tocam o coração de uma “supremacia branca”, que se mostra disposta a ameaçar a democracia.

A impressão é a de que o planeta caminha na trilha do Grande Irmão, que tudo vigia, extraindo dados e informações para alimentar os protagonistas do nacional-populismo, criando em torno deles a figura do mito e puxando a sociedade para o autoritarismo. Vamos ter de conviver com uma caminhada de fôlego nos caminhos tortuosos da deterioração das democracias.

Para complicar, as ideologias ainda se confundem. Não se sabe mais como caracterizar os sistemas políticos: Sociais-Democráticos? Socialistas? Direitistas? Capitalistas de Estado como a China? (Esquisita essa mimese entre Estado Autoritário e Estado Democrático de Direito, base do sistema capitalista).

São imprevisíveis os impactos da inteligência artificial. Imagine Fulano da Silva no meio da multidão, capturado por milhares de micro-câmeras, que pinçam seu estado d’alma para transformá-lo em “mutante político”. Esse retrato se parece com o quadro pintado por George Orwell em 1984. Entra no debate o criminalista italiano Cesare Lombroso, defensor da ideia de que criminosos podem ser identificados por suas características físicas. A tese lombrosiana, rechaçada por muitos, passa a receber agora o impulso da tecnologia.

O tema volta no momento em que a maior democracia ocidental padece do assalto ao Capitólio, em Washington, abalando a confiança da sociedade sobre a capacidade do país suportar a ascensão de políticos batizados nas águas da imponderabilidade.

O fato é que, a cada dia, os horizontes democráticos são cobertos por nuvens escuras.

Cumplicidade


No Brasil, qualquer coisa é impeachment. Deixa o cara governar, pô!
Hamilton Mourão, general vice-presidente

Brasil: não é incompetência, é plano

Quem acompanha a carreira do homem que hoje está na presidência do Brasil sabe: ele é isso aí. Durante toda sua medíocre vida parlamentar ele esteve ancorado na ignorância, no ódio, na intolerância, na sede de sangue. Não é sem razão que seu ídolo maior é um dos mais nefastos torturadores da ditadura militar. Falando sobre a ditadura ele afirmava: “Matou só 30 mil, tinha que ter matado mais”, ou “Não devi a ter só torturado, tinha que ter matado”. Tirando isso, tema que domina com maestria, sobre o demais é sempre uma ladainha de burrice e preconceito. Seu mundo é tão pequeno que suas ideias sobre ele caberiam em algumas linhas de papel. É o receptáculo perfeito para servir de gerente sem alma do capital. Por isso, quando sua presença foi ganhando corpo em uma camada igualmente ignorante da população, ele passou a ser notado pela elite dominante no país.

Naqueles dias, os partidos políticos amargavam grande repúdio por parte dos brasileiros. A direita tradicional havia perdido força e o Partido dos Trabalhadores fraudava as esperanças dos que acreditavam ser possível um passo mais à esquerda. Cenário perfeito para o azarão. E foi assim que a criatura saiu da marca dos 3% para ganhar as eleições em 2018. Não foi um raio no céu azul. Foi a consequência dos equívocos políticos de quem deveria ter formado as gentes e mantido a população organizada para alavancar mudanças estruturais.

Correndo por fora da mídia comercial, aproveitando-se das novas redes comunicacionais, a criatura foi crescendo. Expressava o sentimento de muita gente que havia se mantido no silêncio, mas que alimentava dentro de si horrores semelhantes. Assim, bastou criar um inimigo plausível: os comunistas (já bem conhecidos por serem comedores de criancinhas) e pronto. Fervia o caldo da desgraça. A lógica empregada pela campanha bolsonarista não era novidade. Já tinha sido empregada na chamada “Primavera Árabe” que destruiu parte do Oriente. Mentiras, simulações, ampliação do medo, reforço dos ódios raciais e preconceitos de todo o tipo, aliado ao fundamentalismo religioso construído durante décadas pelas chamadas igrejas neopentecostais.

Assim, enquanto a criatura bradava contra a mídia, o sistema e “tudo isso que está aí”, a esquerda brasileira, já sem dentes para morder, trabalhava com propostas palatáveis para a classe média que havia crescido no país, mas que se faziam incompreensíveis para uma camada gigante da população. Acabou perdendo a classe média, que se aliou ao discurso ultraconservador com o intuito de manter privilégios e perdeu a massa de trabalhadores que queria mudanças, qualquer mudança. O crescimento de Bolsonaro nas pesquisas levou a mídia comercial a olhar com cuidado para ele, e os discursos televisivos foram mudando. Era uma boa oportunidade de se livrarem do PT que, apesar de ser muito mais liberal do que esquerda, trazia em si a simbologia da esquerda. Assim, o mesmo Bonner que hoje faz discursinho contra Bolsonaro é o mesmo que massacrou os candidatos da esquerda liberal, e pisou miudinho com Bolsonaro nas famosas entrevistas do Jornal Nacional.

E assim, chegamos ao horror dos nossos dias. Eleito para ser o coveiro das aspirações mais à esquerda, Bolsonaro foi apoiado pela direita brasileira esfacelada, pela mídia comercial, pelas igrejas sedentas de grana, e pela camada da população que mantinha viva em si toda série de ilusões acerca da ordem, progresso e crescimento econômico do tempo dos militares. Ele seria o condutor da destruição da “bagunça” petista.



Por isso não há surpresas na política implementada pelo grupo bolsonarista. Tudo que prometeu, está cumprindo. Militares no governo (mais de oito mil em cargos), mão dura contra a dita esquerda, destruição dos serviços públicos que, segundo eles, só servem para cabide empregos dos esquerdistas, mais poder para as forças de segurança (para garantir a ordem), entrega das riquezas nacionais aos estrangeiros (que são mais competentes e trarão o progresso) e muito circo, para manter a massa animada. Vejam que não passa um dia sem que esse governo faça alguma aglomeração. A mobilização do grupo de apoio é constante, tanto física quanto virtualmente. Os grupos de uatizapi são eficazes e velozes. Qualquer declaração contra o presidente é imediatamente solapada com centenas de postagens de contrainformação.

Colar a figura do presidente à rede de “heróis mundiais” enviados por Deus é a estratégia perfeita. Junto com Donald Trump ele comanda um aguerrido grupo de lutadores que se uniu para enfrentar e destruir os pedófilos, abortistas, gayzistas e comunistas que querem destruir o mundo. Essas informações são repassadas nas igrejas aliadas, nas famílias, nas redes. É um universo paralelo que se multiplica dia a dia sem que se dê a devida atenção.

A chegada da pandemia é vista como um “castigo divino” aplicado por conta de o país ter permitido um governo de comunistas (no caso, o PT, embora o partido não seja comunista). Agora, há que limpar esse mundo que foi violado pela mancha vermelha. Então, daí a necessidade dos cordeiros imolados. Os escolhidos, que tomarem ivermectina e cloroquina, serão salvos. Não importa que a vida real esteja mostrando que aqueles que fizeram o tal tratamento precoce estão morrendo também. Eles deviam ter algum pecado. Os justos não, esses serão salvos. A prova viva é o próprio presidente que pegou o vírus e está vivinho. Isso basta.

E enquanto os “pecadores” caem como moscas nos hospitais públicos sem pessoal, sem equipamentos, sem insumos e até sem salários, os justos avançam. Hoje, quando a cidade de Manaus vive o horror de presenciar a morte por asfixia de pacientes por conta da falta de oxigênio, os grupos bolsonarista espalham a boa nova da vitória final que virá com os exércitos de Donald Trump no dia 20 próximo. A “Operação Tormenta” varrerá do mundo os comunistas e impedirá, inclusive, que sejam produzidas as vacinas feitas com fetos humanos, que eles tentam obrigar o mundo a tomar. Uma vacina que inoculará um chip capaz de tornar a pessoa comunista ou quem sabe, um jacaré.

A batalha comunicacional neste momento dá vitória folgada aos bolsonaristas. Ela tem uma eficácia extraordinária a tal ponto de as pessoas não se emocionarem para nada com as mais de mil mortes por dia no país, e mesmo o caos em Manaus, quando as vidas se extinguem, sufocadas, sem ar, não provoca maiores emoções. Pelo contrário. A corrente informativa nos grupos espalha a seguinte informação: o governo federal mandou muito dinheiro para o Amazonas, mas os governantes de lá desviaram para tentar destruir o presidente. A culpa sempre é de outro.

A contraofensiva deste tipo de informação parece não encontrar espaço. As palavras emocionadas de William Bonner no Jornal Nacional só provocam risos de mofa. O presidente disse que não é para acreditar na Globo. E ninguém acredita. Ponto final. E a esquerda tirou como estratégia bradar o “Fora Bolsonaro” como se a vontade expressa nas redes pudesse se tornar potência sem uma ação organizativa real. Não pode.

No meio do caos, com as mortes se multiplicando e o país sendo assaltado à luz do dia, entidades gigantes como as Centrais Sindicais, os Partidos Políticos, que congregam milhares de pessoas, estão completamente paralisados. Nada além de “lives” na plataforma do grande irmão facebook.

Hoje é Manaus, amanhã pode ser qualquer outra cidade, mas a responsabilidade parece não colar nas figuras do poder. O que voga é a máxima religiosa: “milhões cairão à tua esquerda, milhões à direita, mas tu, que crês, não serás atingido”. O que fica vivo acredita que deu certo e o que morre não tem mais o que pensar. Então tá tudo certo.

O fato é que a pandemia só potencializou o desmonte, o crime. E cada um que ajudou a colocar no poder os que hoje nadam no sangue é responsável. Nenhum esquecimento e nenhum perdão. Não é só o presidente – esse é só o gerente do processo. É a mídia, são as igrejas da prosperidade, são os deputados federais, os senadores, os juízes da Suprema Corte, os empresários, as gentes “de bem”. Todos os que sustentam essa lógica de destruição sem garantir parada são responsáveis e haverão de responder por isso. Se não hoje, algum dia, porque como diz a música do Geraldo Vandré, “deus que se descuide deles, um jeito a gente ajeita dele se acabar. Fica mal com deus, quem não sabe dar, fica mal comigo quem não sabe amar”.

Mas, para isso, há que organizar.

Quebradeira, rachadinha e ruptura

"O Brasil está quebrado, e eu não posso fazer nada’, afirmou o presidente. E jogou a culpa na mídia por exagerar a pandemia. Já se falou na leviandade e nas possíveis consequências econômicas dessas palavras. Não faltou quem, com todas as letras e dados numéricos, demonstrasse que, além de irresponsabilidade, trata-se de mentira pura e simples. Afinal, ele corta impostos de videogames, armas e igrejas, dá aumentos a policiais, anistia desmatadores e criminosos ambientais, multiplica privilégios a militares. Tudo em crescente aumento de gastos públicos e perda de arrecadação. E, ainda por cima, não faz nada para melhorar o ambiente de negócios ou diminuir o custo Brasil — o que ficou evidente com os anúncios da saída da Mercedes e da Ford do país, ou o PDV do Banco do Brasil.

No entanto a aparente besteira dita por Sua Excelência atinge seu objetivo — sempre o mesmo. O de criar polêmica, fazer discutir o irrelevante, distrair a plateia e desviar as atenções dos problemas de sua família na área criminal. Enquanto se discute a quebradeira, não se fala em rachadinha. E ele manobra para manter o cargo, ser reeleito e assegurar impunidade a todos os seus.

Entre quebras e rachaduras, adquire proporções nacionais o fenômeno da cidade partida. Na sociedade dividida deste país partido, de riqueza não repartida, multiplica-se a segregação, apartando privilegiados e ferrados. De quebra, o pessoal das quebradas se vira como pode, multiplicando quebra-galhos. Juntando os cacos. Ora caindo no papo furado, ora indiferente. Por quanto tempo mais vai funcionar esse lero-lero?

Os mortos da Covid-19 se aproximam de 210 mil. A incompetência do governo passa dos limites. Outros países já vacinam há mais de um mês, enquanto aqui só começou ontem. Até quando essa conversa para despistar ainda vai colar?

Chega uma hora em que os trincamentos viram ruptura, e os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras. Então eles quebram a cara. Ou tudo se esfacela de uma vez.
Ana Maria Machado