O presidente norte-americano, Donald Trump, não decepcionou seus mais fanáticos seguidores e fez o que prometeu há meses: contestou, nos mais rasteiros termos, a contagem de votos que indicavam a eleição de seu rival, o democrata Joe Biden, à presidência dos Estados Unidos. Em pronunciamento na Casa Branca, Trump declarou, sem apresentar qualquer dado concreto, que, se apenas os votos válidos fossem contados, ele seria declarado vencedor. Ato contínuo, exigiu a interrupção da apuração em Estados onde havia avanço da votação em Joe Biden e acusou os opositores de tentarem “roubar a eleição”.
Se Donald Trump seguiu um roteiro que foi exaustivamente anunciado, algo absolutamente inusitado aconteceu: três das principais emissoras de TV dos Estados Unidos, que mostravam ao vivo o pronunciamento de Trump, interromperam a transmissão e informaram seu público que a fala do presidente estava repleta de falsidades e imprecisões.
As redes sociais, por sua vez, haviam tomado providência semelhante ao longo do dia, classificando como “contestáveis” ou “incorretas” as mensagens de Trump que denunciavam fraude na eleição.
Isso mostra que há um limite concreto para a escalada do populismo niilista liderado por Trump e secundado por dedicados sabujos em várias partes do mundo, inclusive no Brasil: é o limite imposto pelo vigor dos sustentáculos da democracia – especialmente a imprensa livre, mas não só.
Ao mesmo tempo, o Judiciário norte-americano, demonstrando sua independência, rejeitou, por falta de provas, diversas demandas da campanha de Trump para interromper a contagem de votos ou para contestar a lisura do pleito, enquanto muitos parlamentares republicanos, correligionários do presidente, manifestaram seu inequívoco repúdio à tentativa de Donald Trump de colocar em dúvida o processo eleitoral.
A reação generalizada à farsa de Trump mostra a saúde da democracia norte-americana, apesar de tudo. Para funcionar, uma democracia depende da manutenção de uma base comum, sustentada na verdade dos fatos e nas leis aceitas por todos. É sobre essa base comum que a sociedade debate, no espaço público, as soluções para seus problemas, seja qual for a preferência ideológica ou partidária. Quando um presidente da República incita seus compatriotas a duvidar dos fatos e a desrespeitar a lei, destrói esse entendimento mínimo e ergue, em seu lugar, um mundo de absoluta desconfiança – nas instituições democráticas e entre os próprios cidadãos. Nesse mundo em que a verdade é hostilizada e a lei é para os fracos, só os delinquentes triunfam.
Por isso, é fundamental que as pessoas civilizadas, seja qual for sua preferência política, impeçam os vândalos da democracia de prevalecer, como está acontecendo nos Estados Unidos. O exemplo norte-americano nos é particularmente importante, pois neste momento o presidente Jair Bolsonaro, imitando seu mestre Donald Trump, reiterou suas dúvidas sobre o processo eleitoral brasileiro. Sem nenhuma evidência, Bolsonaro afirma que o sistema de votação nacional é suscetível a fraudes.
Em meio ao vergonhoso escarcéu causado por Trump e suas denúncias infundadas de manipulação de votos, Bolsonaro informou que vai patrocinar uma proposta de emenda constitucional destinada a acabar com o sistema eletrônico de votos e substituí-lo pelo voto em papel, que ele diz ser “confiável”.
Pode-se argumentar que o sistema que Bolsonaro considera mais “confiável”, o voto em papel, é justamente aquele que está sendo colocado em dúvida por Trump, mas é ocioso esperar qualquer discussão racional com quem deliberadamente estimula a irracionalidade. O fato a se tomar nota, e que deve alarmar todos, é a clara estratégia de Bolsonaro de estimular a farsa segundo a qual o sistema de votação não é confiável, alimentando um clima de suspeita permanente no País e preparando o terreno para, como Trump, desrespeitar o resultado da eleição presidencial de 2022, caso lhe seja desfavorável, alegando “fraude”.
O nome disso, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, é tentativa de golpe.