sábado, 7 de novembro de 2020

Trump, o perdedor que odiava os perdedores

Em meados de 2015, a indicação do histriônico empreendedor imobiliário Donald Trump como candidato republicano à presidência dos Estados Unidos soava tão absurda que uma teoria conspiratória garantia que o magnata havia feito um conchavo com o casal Clinton para torpedear internamente a campanha dos conservadores e favorecer a vitória da ex-secretária de Estado. Mas Trump — que também carrega as qualificações de apresentador de reality show, filho de outro empreendedor bilionário e ilustre morador da Quinta Avenida de Nova York— chegou à Casa Branca apelando nada menos que à insatisfação da classe trabalhadora, a bordo de um discurso anti-imigração e antiglobalização. Quatro anos depois, não se saiu mal, recebeu mais votos dos cidadãos do que em 2016, mas a Casa Branca diz adeus ao vociferante inquilino. A vantagem do democrata Joe Biden nos votos pelo correio, ao invés de fazê-lo dar o braço a torcer, o mantém empenhado em bagunçar uma eleição a golpes de tuíte e recorrendo aos tribunais, apesar de até agora estes terem fechado suas portas às queixas dos republicanos.



Quando iniciou sua primeira campanha eleitoral, Trump mostrava-se exultante, ganhador antes de ganhar qualquer coisa, a mesma atitude que adotou inclusive quando os votos de 2020 já haviam sido depositados. “Parem a apuração”; “Fraude”, gritou nas redes sociais. Sua atitude fanfarrona não é uma surpresa: “Tenho as pessoas mais leais, poderia parar no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém e mesmo assim não perderia votos”, chegou a dizer naquele mês de janeiro de 2016, quando ninguém acreditava seriamente que algum dia dormiria na Casa Branca. Não saiu atirando em ninguém, ao menos no sentido literal, mas insultava os imigrantes mexicanos, prometia suspender a entrada de muçulmanos no país, fazia do slogan “Para a cadeia”, contra Hillary Clinton, o lema preferido dos seus comícios e agredia a torto e a direito pela sua conta no Twitter. 

O historiador britânico James Bryce empreendeu, em meados de 1880, uma longa viagem para estudar aquele jovem país, os Estados Unidos. No livro resultante, The American Commonwealth, advertiu para o perigo de que a democracia norte-americana caísse vítima de “um tirano”, mas não “um tirano contra as massas”, observou, “e sim um tirano com as massas”. Hoje, editoriais de todo o mundo questionam o desfavor que Trump está fazendo à democracia do seu país.

Donald John Trump (Nova York, 1946) afinal ganhou as eleições de 8 de novembro de 2016. Muitos esperavam que, ao chegar à Casa Branca, adotasse uma atitude mais presidencial. O que aconteceu depois surpreenderia a esse grupo. Só que, quatro anos depois, os norte-americanos não quiseram mais do mesmo.

No dia da posse, 20 de janeiro de 2017, chovia. É fácil de lembrar. No meio do discurso do novo presidente, perante o imponente Capitólio de Washington, as gotas começaram a cair sobre as cadernetas dos jornalistas que acompanhavam o ato e rabiscavam anotações. À noite, no baile de gala, Trump comemorou com a imprensa: “A quantidade de gente foi incrível hoje. Nem sequer choveu. Quando acabamos o discurso, entramos, e aí sim caiu”. E assim, junto com sua presidência, teve início também a era dos “fatos alternativos” —conforme os batizou uma assessora de Trump—, ou seja, fatos diferentes dos reais.

Trump mente com frequência. O The Washington Post, que mantém uma contagem de todas as falsidades ou tergiversações do republicano, calculou que, até 27 de agosto, o presidente disse 22.247 coisas inverídicas. De todo tipo, desde atribuir declarações inexistentes a outras pessoas —como que o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, estava impressionado com sua capacidade de ação e disse que ninguém tinha feito tanto como ele—, até acusar Barack Obama de espioná-lo e declarar que, em comparação com a Europa, os Estados Unidos não estão indo tão mal com a pandemia. Na realidade, o país sofre mais contágios e mortes per capita que todos as grandes nações europeias, exceto a Espanha e a Bélgica. As mentiras não pararam. Nem as confusões. Nas últimas horas, ele não para de questionar um sistema eleitoral que em outro momento lhe deu a vitória.

O Twitter é sua via de comunicação mais imediata. Tuita sem cessar, de manhã cedo, de madrugada, a qualquer hora do dia, às vezes de forma frenética. Em 5 de junho, em plena onda de protestos contra o racismo depois da morte de George Floyd, bateu seu recorde de publicações em uma só jornada: 200. O pico anterior, no fragor do impeachment, em 22 de janeiro, era de 142. Pelo Twitter soubemos do seu contágio pelo coronavírus; no Twitter comunicou a demissão de altos funcionários, ameaçou a Coreia do Norte com “uma fúria e fogo que o mundo jamais viu” e rompeu um acordo no último momento, tachando o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, de “fraco” e “desonesto”. E o Twitter continua sendo o alto-falante da realidade paralela em que parece ter se instalado. Mas, desta vez, a rede social alerta junto às mensagens dele que suas palavras podem conter falsidades, para que ninguém se deixe enganar.

Porque insultar, e de forma feroz, tornou-se a nova normalidade da presidência mais poderosa do mundo. Uma assessora que o criticou após ser demitida, Omarosa Manigault, foi chamada de “louca”, “ralé” e “cachorro”. Embora o insulto mais recorrente do seu vocabulário, independentemente da falha que queira denunciar, seja o de loser (perdedor). Ainda nesta quinta ele disse: “Ganhar é fácil, perder não —não para mim”. Assim está demonstrando agora. Quando os resultados lhe dão as costas, se debate como um javali ferido, contra um sistema eleitoral talvez antiquado, mas em vigor.

No começo do seu mandato, e durante meses, analistas e cidadãos aguardavam o momento em que Trump deixaria o personagem valentão que o tinha levado a ganhar as eleições e assumiria finalmente o porte presidencial que se esperava, mas esse dia nunca chegou. Trump continuava sendo o juiz ogro do concurso de talentos O Aprendiz, o magnata que se lançou no mundo dos negócios cobrando de porta em porta os aluguéis atrasados em imóveis do seu pai, o sujeito capaz de se congraçar com os supremacistas brancos e de elogiar a credibilidade do presidente russo, Vladimir Putin, frente à dos seus serviços de inteligência.

Mas se Donald Trump é tão ruim como dizem, por que tanta gente vota nele? Por que foi premiado com mais de 69 milhões de votos? Se é tão tóxico, por que seus índices de popularidade entre os republicanos superam sua marca anterior? Além do pragmático voto conservador, que engole suas extravagâncias, por que, contra tudo e todos, há uma massa de trumpistas irredutíveis que o apoia em cada incêndio?

Quando se pergunta aos seus seguidos nos comícios por que gostam do republicano ou votam nele, a primeira coisa que respondem é que “não é um político”. Ser “um político”, no ecossistema trumpista, equivale a ocultar a realidade, viver do contribuinte e se render aos princípios do politicamente correto. E os ataques do presidente, suas estridências, lhes sugerem uma autenticidade da qual sentem falta na classe dirigente. Em suas críticas públicas a países aliados, apesar de tão grosseiras como as dirigidas daquela vez a Trudeau, veem uma porta raramente entreaberta para a cozinha das negociações diplomáticas.

Um dia, Emmanuel Macron foi perguntado sobre uma discussão que teria tido com Trump. O presidente francês se negou a responder, usando uma frase do chanceler Otto von Bismarck. “Nunca conto os bastidores. Porque, como dizia Bismack, se explicássemos às pessoas como as salsichas são feitas, não é certeza que continuaríamos a comê-las”. Trump, para seguir nessa analogia, faz seu público achar que, pela primeira vez, conhecerá a crua realidade de como essas salsichas são feitas. Se há algo que Trump consegue transmitir é espontaneidade. “Diz as coisas como são”, “com ele, o que você vê é o que existe”, costumam declarar seus eleitores. Mas milhões acreditam em falsos boatos que ele espalha nas redes sociais.

Como escreveu recentemente Lauren Collins na The New Yorker, “se a promessa de Obama é que ele era você, [na campanha de 2016] a promessa de Trump é que você é ele”.

Tudo, na verdade, vira show. Trump é obcecado pela atenção midiática, acompanha e divulga os índices de audiência de suas aparições televisivas como se fossem feitos políticos. Ataca com sanha a imprensa crítica, mas é viciado nos holofotes. Vê as entrevistas coletivas como shows de rock que às vezes se prolongam por mais de uma hora. Certa vez, na ONU, pediu aos jornalistas uma pergunta boa, como apoteose final. “Vocês se lembram daquilo que disse o Elton John? Quando você toca a última e é boa, não volte.” E houve situações insólitas, como quando, no Salão Oval, numa saudação protocolar ao presidente sul-coreano, Moon Jae-in, pressionou-o a responder a uma pergunta sobre a Coreia do Norte.

Não é que seja transparente, porque mente com frequência, mas não há lembrança de presidentes tão acessíveis e expostos. Muitas vezes, o que havia sido anunciado à imprensa como uma simples pose para as câmeras, ao início de uma reunião, se tornava uma coletiva improvisada, em que lavava toda a roupa suja.

Seus comícios foram longos monólogos, cheios de humor. Em junho, em Tulsa (Oklahoma), falou durante quase duas horas. Parodiou conversas com Angela Merkel, com a primeira-dama, Melania, e, naturalmente, espalhou o medo: “Se os democratas ganharem em novembro, os arruaceiros terão o poder, ninguém voltará a ficar seguro”, disse.

Na véspera das eleições de 2016, este jornal esteve no comício de encerramento da campanha de Trump no Estado de New Hampshire. Em seu apelo final para chegar à Casa Branca, prometeu: “Meu contrato com os norte-americanos começa com um plano para acabar com a corrupção, quero que todo o establishment corrupto de Washington saiba: vamos drenar o pântano”.

Àquela altura, na verdade, já se tinha negado a divulgar suas declarações fiscais, tinha problemas nos tribunais por desvio de recursos de sua fundação beneficente e enfrentava uma série de denúncias por negligência contra a Universidade Trump, um projeto educativo que acabou fechando após pagar uma indenização milionária aos prejudicados. Mas o volume do que seria toda uma trama de irregularidades com o fisco, delitos de campanha, conflitos de interesses, interferência na Justiça e amizades perigosas nestes últimos quatro anos ainda estava por ser revelado. Em 2019, o procurador especial Robert S. Mueller estava concluindo a investigação sobre a trama russa, ou seja, a ingerência do Kremlin na eleição de 2016 e os possíveis conchavos com o entorno de Trump. O presidente dos Estados Unidos já estava salpicado na época por até 17 investigações judiciais abrangendo os mais diversos âmbitos.

Um possível crime de financiamento ilegal de campanha para pagar duas mulheres, a atriz pornô Stormy Daniels (nome artístico) e a modelo da Playboy Karen McDougal, para evitar que revelassem seus supostos relacionamentos extraconjugais com o hoje presidente; outro inquérito, iniciado em Nova York, centrado na suspeita de evasão fiscal; uma série de suspeitas decorrentes da trama russa, tudo somado a investigações sobre o financiamento da cerimônia de posse em 2017. Além disso, havia as ações envolvendo seu hotel de luxo em Washington, cenário habitual da hospedagem de líderes estrangeiros, recepções diplomáticas e eventos republicanos, que levaram a denúncias de enriquecimento ilícito. Algumas foram arquivadas, outras prosperaram.

Porque o homem que prometeu tirar a Casa Branca da “classe política corrupta” e devolvê-la “ao povo” nunca se desvinculou da propriedade de suas empresas, apenas deixou a gestão nas mãos de seus filhos. E a presidência acabou sendo um bom negócio: segundo os cálculos do The Washington Post, entre atos oficiais e partidários, as propriedades de Trump receberam até 8,1 milhões de dólares (44,8 milhões de reais, pelo câmbio atual) de dinheiro público proveniente de doadores políticos desde 2017. Enquanto isso, conforme revelou uma investigação jornalística do The New York Times, ele quase não pagou impostos nos últimos anos, alegando ter tido prejuízos econômicos. Em 2016, ano em que foi eleito, só precisou desembolsar 750 dólares (4.143 reais pelo câmbio atual), mesma quantia que em 2017, seu primeiro ano de mandato.

Trump criou, como cunhou Martin Wolf no Financial Times, o “plutopopulismo”, um casamento perfeito entre a plutocracia e o populismo de direita.

A investigação da trama russa terminou sem consequências legais para Trump. Em 2019, o procurador Mueller deu por provada a ingerência de Moscou para prejudicar Hillary Clinton, mas não achou evidências suficientes de conluio com o entorno do presidente. Em relação à obstrução da Justiça, outro crime pelo qual foi investigado, Mueller alegou que um mandatário não pode ser processado, salvo pela via do impeachment (julgamento político).

De fato, o terceiro processo de impeachment na história dos Estados Unidos chegaria, meses depois, pelas mãos de um escândalo diferente, o da Ucrânia. O caso diz respeito às pressões de Trump sobre o Governo de Kiev para que a Justiça do país europeu anunciasse investigações que prejudicariam a seus rivais democratas, recorrendo inclusive ao congelamento de 391 milhões de dólares em ajudas militares já comprometidas. Uma das investigações tinha como alvo justamente Joe Biden e seu filho Hunter, por seus negócios na Ucrânia.

Os republicanos, maioria no Senado, absolveram o seu presidente, mas o processo deixou declarações para a história, como quando um embaixador norte-americano, Gordon Sondland, admitiu que tinha pressionado Kiev sob ordens do presidente. Ou quando outra diplomata, Marie Yovanovitch, relatou que chegou a ser advertida a “se proteger bem” e a ir embora de Kiev “no próximo avião”.
Normalização do caos

Aquele período do impeachment, entre o final de 2019 e começo deste turbulento 2020, transcorreu em meio a uma sensação de estranha calma. Escândalos presidenciais anteriores, como o julgamento de Bill Clinton em 1998 e o Watergate de Nixon, que renunciou antes de enfrentar a fase final do processo, eram lembrados como capítulos transcendentais na história do país, mas a Washington de Trump vivia instalada no desassossego. Com um líder tão insólito, que parecia sempre montado num touro mecânico, um impeachment se assemelhava a apenas mais um dia de trabalho.

Sua Administração se transformou, desde muito cedo, em um constante fluxo de demissões, afastamentos e exonerações, algumas delas ruidosas. Em dezembro de 2018, quando não tinha chegado nem sequer ao equador de seu mandato, já somava mais de 30 baixas em dois anos, um volume de despedidas que não se recorda em nenhum outro Governo.

O afastamento de John Bolton, seu segundo chefe de Segurança Nacional, foi comunicado pelo Twitter, com direito a bate-boca e sem avisar outros membros do Gabinete. O chefe do Pentágono, Jim Mattis, pediu demissão numa ácida e pública polêmica pela política de Trump na Síria. O assessor econômico Gary Cohn fez o mesmo por discordar da guerra comercial e, também, por estar aflito com a compreensão demonstrada pelo mandatário em relação aos supremacistas brancos. O secretário de Justiça, Jeff Sessions, foi posto na rua porque se recusou a ajudar Trump na investigação da trama russa e favoreceu a investigação independente do Ministério Público. A lista é longa.

Altos funcionários começaram a relatar de forma anônima como, no seu entender, a Casa Branca havia se tornado insana. Um deles, cuja identidade acaba de ser revelada (Miles Taylor, ex-chefe de pessoal do Departamento de Segurança Doméstica), publicou em setembro de 2018 um artigo no The New York Times intitulado “Sou parte da resistência interna da Administração Trump”, onde contava que vários membros do Executivo confabulavam para controlar os “impulsos” do republicano. “Trabalho para o presidente, mas, como outros colegas, prometi boicotar partes de sua agenda e suas piores inclinações”, afirmava, salientando a “amoralidade” de Trump. “Qualquer um que já tiver trabalhado com ele sabe que não está ancorado em nenhum princípio discernível que guie suas decisões”, acrescentava.

Pouco depois, o prestigioso jornalista Bob Woodward publicou Medo, um livro em que descrevia a vida na Casa Branca como um vaudeville de Halloween. Mediante fontes anônimas, relatava, por exemplo, que Gary Cohn roubou da mesa do presidente um documento que este pretendia assinar, rompendo um acordo comercial com a Coreia do Sul, e que o mandatário republicano nunca percebeu o sumiço. Também que o general John Kelly, ex-chefe de Gabinete, chegou a qualificar Trump como “desenquadrado”, e “um idiota”. “Isto aqui é um hospício”, afirmava.

Revelar as entranhas do Governo virou um subgênero literário. Bolton pôs seu grão de areia com um explosivo volume de memórias. Afirmava, por exemplo, que Trump pediu ajuda a Pequim para ganhar as eleições, detalhava situações incriminadoras sobre o escândalo da Ucrânia e expunha a falta de cultura geral do presidente, que certa vez teria lhe perguntado se a Finlândia pertencia à Rússia, e se surpreendeu ao saber que o Reino Unido é uma potência nuclear.

Trump muitas vezes ostentou essas lacunas intelectuais como virtudes, acostumado que está a identificar as elites acadêmicas ou burocráticas como símbolos de um sistema viciado. “Gosto de gente pouco formada”, disse em sua primeira campanha. A Woodward, poucos meses atrás, assim descreveu sua primeira cúpula com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, em 2018: “Você conhece uma mulher. Em um segundo sabe se vai acontecer ou não. Não leva 10 minutos, não leva seis semanas. É como: ‘Uau’. Ok. Sabe? Leva menos de um segundo”.

Na era Trump, o flerte com líderes autoritários e velhos rivais dos Estados Unidos, como Vladimir Putin, se tornou um hábito, mesmo que o Kremlin tenha sido acusado de atacar o sistema eleitoral norte-americano. Uma das figuras com maior influência sobre o presidente é Jared Kushner, marido de Ivanka Trump, a primogênita do presidente, e também nomeada assessora. O empresário, de 39 anos, disse a Woodward que para entender Trump é preciso pensar, entre outras coisas, no gato Cheshire de Alice no País das Maravilhas. “Se você não sabe para onde quer ir, qualquer caminho leva para lá”. Kushner tentava explicar que, mais do que o rumo, o importante é a perseverança. “A polêmica eleva a mensagem”, afirmou também.

Falava, afinal de contas, do mesmo presidente que não tinha problemas em ameaçar uma guerra termonuclear pelo Twitter. Era, em resumo, o mesmo sujeito que se apresentou às eleições convencido de que poderia dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e as pessoas continuariam votando nele. Assim como naquela época, durante os primeiros anos do seu Governo muita gente se perguntava: como Donald Trump responderia à chegada de uma grande crise nacional?

Quando o coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, Trump se instalou na negação. “Praticamente o paramos”, afirmava em 2 de fevereiro; “Um dia desaparecerá, como um milagre”, chegou a dizer em 27 daquele mês; “Nada vai fechar por causa da gripe”, insistia ainda em 9 de março.

Depois, quando a ferocidade do vírus se tornou evidente e uma pandemia foi declarada, impôs-se o instinto do animal televisivo e, durante semanas, ofereceu coletivas diárias, cada uma mais errática que a outra. A menos de um ano das eleições, e com uma crise insólita que jogava por terra seu principal argumento de campanha —a economia ia furiosamente bem—, decidiu vestir o traje de comandante-em-chefe perante uma nação em perigo, mas o fez tão embebido de si mesmo que deu lugar a alguns dos episódios mais estrambóticos de sua presidência.

Dia após dia, contradizia os próprios especialistas da Casa Branca, ao vivo e em cores, dava informação errônea sobre os tratamentos e rejeitava as recomendações de seu próprio Governo, como quando estimulou o país a reabrir no domingo de Páscoa, insuflou os protestos contra o confinamento e se empenhou em não usar máscara. Esse caminho atingiu o paroxismo em 23 de abril, quando propôs aos norte-americanos que se injetassem desinfetante. “Vejo o desinfetante, que leva [o vírus] a nocaute em um minuto, há alguma maneira de que possamos fazer algo assim mediante uma injeção? Porque a gente vê que ele entra nos pulmões e causa um dano tremendo nos pulmões, então seria interessante tentar”, disse. Dois dias depois, afirmou que estava brincando, mas suspendeu as entrevistas coletivas.

Logo retomou, isso sim, os grandes atos públicos com seus seguidores, em que não usar máscara era uma declaração de princípios, e redobrou sua agenda de atos oficiais. Enquanto isso, zombava do seu rival democrata, Joe Biden, por passar a campanha praticamente trancado em casa.

Na madrugada de 2 de outubro, comunicou que tanto ele como sua esposa estavam com covid-19. Aos 74 anos, o presidente era parte do grupo vulnerável ao vírus, por isso foi hospitalizado e tratado com fortes medicações. Quem, àquela altura de sua história na Casa Branca, achava que o episódio seria um ponto de inflexão em sua relação com a crise sanitária é porque ainda não havia entendido bem o personagem.

Quando deixou o hospital, gravou um vídeo fazendo da necessidade uma virtude: “Aprendi muito com a covid-19, aprendi indo de verdade à escola, esta é a verdadeira escola, e capto, entendo, é uma coisa muito interessante”, dizia. “Esta é a verdadeira escola”, insistia, fazendo-se de especialista. Em poucas semanas, retomou os grandes comícios sem máscaras.

Trump é natural ou interpreta um papel? Suas extravagâncias são espontâneas ou obedecem a uma estratégia pensada? Perguntado sobre isso, John Bolton respondeu em uma entrevista a este jornal: “Acho que é o seu jeito de ser, mas não sou psiquiatra, não vou explicar por que é assim, o que aconteceu com ele na infância, nem nada disso. Não me importa; o que importa é sua forma de se comportar, e sempre foi assim, segundo quem o conhece há décadas”.

O show chegou ao fim, mas os Estados Unidos descobriram com Trump uma nova normalidade que custarão a esquecer. Na convenção republicana deste ano, quando foi coroado candidato presidencial, sua filha Ivanka comemorou diante do público: “Washington não mudou Donald Trump, Donald Trump mudou Washington”. E não tinha como resumir melhor.

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