sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Dores do Brasil


Tento sempre ter por dia três ou quatro horas no século XIX

Na Idade Média, ao longo das suas vidas as pessoas tinham acesso, no máximo, a sete ou oito imagens, pinturas ou representações. Por isso, concentravam a sua atenção durante dias, semanas, meses. Vivemos numa época em que, em dois minutos, vemos mais imagens que os nossos antepassados do século XVI na vida toda. O mesmo acontece com as pessoas. Um europeu da Idade Média se calhar conhecia 50 na vida toda, talvez aquilo que nós conhecemos num mês. Isso faz com que haja, hoje em dia, uma velocidade de consumo de imagens e de pessoas. Se uma imagem não nos salva, há milhares de outras. Com muitas excepções, é muito raro uma pessoa estar duas ou mesmo uma hora seguida concentrada num único objecto. Ou seja, há uma geração que tem muitos estímulos. Estou com curiosidade em saber o que vai acontecer em termos artísticos daqui a 10 ou 20 anos.

Por causa da dispersão?

Ninguém imagina Miguel Ângelo a fazer uma pincelada, depois a responder a um e-mail e voltar outra vez à pintura. Os artistas passavam semanas fechados num compartimento, sem falar com ninguém, só saíam para comprar comida, sem largar o seu objecto. Há obras de arte que só podem aparecer se uma pessoa estiver uma, duas, três, quatro, cinco horas em frente delas, sem mudar a sua atenção para outro lado. E este tempo prolongado com o mesmo objecto, concentrado, é qualquer coisa que as tecnologias e o mundo contemporâneo estão a perturbar.
Gonçalo M. Tavares

Desempregados racharão a conta

Rachada a conta, estimada em até R$ 6 bilhões anuais, os desempregados pagarão a parte mais dolorosa do aumento concedido a juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), membros da Procuradoria-Geral da República e todos os demais servidores beneficiados pelo novo teto de vencimentos do funcionalismo. O salário mensal de cada juiz do STF passará de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil, graças ao reajuste de 16,38% aprovado pelo Congresso. O gasto adicional de R$ 6 bilhões para o setor público foi estimado pela consultoria do Senado. Podem-se discutir detalhes do cálculo, mas o custo social é inegável. Despesa maior significa maior dificuldade para consertar o enorme rombo das contas públicas, em todos os níveis de governo, e, como consequência, maior dificuldade para impulsionar o crescimento econômico e a criação de empregos.

Num país com 12,5 milhões de desempregados, o equivalente a 11,9% da força de trabalho, todo político decente deveria ter como prioridade animar os negócios para estimular contratações.



Com mais alguns números o quadro fica mais assustador. Se à parcela desempregada forem somados os trabalhadores com horas insuficientes de ocupação e os indivíduos contados na força de trabalho potencial, a taxa de subutilização chegará a 24,2%, ou 27,3 milhões de pessoas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou esses dados no fim de outubro.

O pessoal do Judiciário, argumentaram defensores do aumento, havia passado quatro anos sem reajuste salarial. É verdade, mas trabalhadores do setor privado ou tiveram aumentos modestos ou nenhum aumento, e muitos foram simplesmente postos na rua. Os desempregados, que totalizavam 12,5 milhões de pessoas segundo a última pesquisa, nem podem pensar em reajuste, porque nem sequer recebem salários - alguns há dois anos ou até há mais tempo.
Diante disso, os R$ 33,7 mil dos juízes do STF parecem uma remuneração tolerável. Os demais servidores públicos, mesmo os de salários mais modestos, têm pelo menos a garantia do direito ao salário regular e à segurança de permanecer no emprego.

O presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), poderia ter encerrado seu mandato sem pôr em votação o projeto de aumento, já aprovado na Câmara. A proposta, parada na Comissão de Assuntos Econômicos, foi desengavetada pelo presidente da Casa. Na quarta-feira à noite, com pouca gente no plenário, ele conseguiu incluir o assunto na pauta de votação da sessão seguinte. O aumento acabou aprovado por 41 votos contra 16. 

Também segundo defensores do projeto, o gasto adicional será compensado pela redução de outras despesas, com a eliminação do auxílio-moradia e de outros penduricalhos. O presidente do Senado citou esse argumento. Mas isso é apenas uma possibilidade e, além disso, a troca é moralmente discutível - tão discutível quanto o custeio de moradia concedido aos juízes.

Aos vários argumentos contra a elevação dos salários o relator do projeto, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), acrescentou detalhes de peso. Por estar fora da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da proposta do Orçamento-Geral da União, os parlamentares nem poderiam votar o aumento. Além disso, recordou, é proibido elevar salários nos últimos 180 dias de governo.
Sem ter sido reeleito, o senador Eunício Oliveira deverá enfrentar como cidadão comum as investigações baseadas em delações de dirigentes e ex-dirigentes da Odebrecht.

Mas o gesto de simpatia de Eunício Oliveira e seus pares aos magistrados foi apenas um dos novos golpes contra o Tesouro. Um dia depois do aumento aos juízes, o Senado aprovou a medida provisória de criação do Rota 2030, novo programa de mimos tributários ao setor automobilístico. Tão discutível quanto o programa anterior, o Inova Auto, o novo conjunto de benefícios será mais um presente a um setor muito protegido e com exportações comodamente concentradas na vizinhança. Sensatamente, a equipe do Ministério da Fazenda se opôs ao programa. Foi tão derrotada, nesse caso, quanto a maioria dos contribuintes e os milhões de desempregados. O presidente da República pode consertar a lambança, vetando os dois projetos.

Brasil fica em último lugar em ranking sobre prestígio do professor

O desempenho dos alunos está ligado à forma como a sociedade vê e remunera seus professores, afirmou um estudo divulgado nesta quinta-feira. A China lidera o ranking dos 35 países analisados, e o Brasil tem o pior rendimento.

Os governos que almejam pontuações mais altas na classificação mundial do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) – que mede as habilidades de jovens em leitura, matemática, ciências e trabalho em equipe – deveriam concentrar seus esforços na valorização e nos salários de professores, afirmou o estudo. A pesquisa foi encomendada pela Fundação Varkey, organização voltada para a educação baseada em Dubai.

O Índice Global de Status de Professores (GTSI) da fundação verificou "uma ligação direta entre o status do professor e o desempenho dos alunos medidos pelo Pisa". As pesquisa do programa internacional são publicadas regularmente pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Os governos devem levar o status do professor a sério

O GTSI foi calculado por meio do cruzamento dos resultados existentes do Pisa com respostas sobre professores obtidas por um instituto econômico baseado na Universidade de Sussex, que analisou mil adultos em cada um dos 35 países pesquisados, além de 5.500 professores espalhados desses países.
A equipe, liderada pelo pesquisador Peter Dolton, também comparou os resultados de uma amostragem menor de 2013, de 21 países, assim como os níveis atuais de remuneração e as horas em que os professores afirmam realmente trabalhar e a carga horária estimada pela opinião pública.

No GTIS, os países asiáticos – mais especificamente China, Malásia, Taiwan, Indonésia, Coreia do Sul e Índia – ficaram à frente "de todos os países europeus e de todas as nações ocidentais".

Ao comparar seus estudos de 2013 e de 2018, a equipe de pesquisadores concluiu que o prestígio do professor aumentou em 13 países, tendo a China a melhor avaliação – embora seja a sétima colocada no Pisa. As maiores quedas foram registradas na Grécia e no Egito.

Por outro lado, todos os países da América do Sul tiveram resultados ruins e foram classificadas na parte inferior do índice, com o Brasil em último, e a Argentina apenas quatro posições acima. Em 2013, o Brasil aparecia na penúltima para a última posição.

O estudo destaca que o respeito pelos professores é particularmente baixo no Brasil: apenas 9% acreditam que os alunos o fazem.

Na maioria dos países europeus, os entrevistados afirmaram achar que os alunos tendiam a desrespeitar os professores. Apenas 22% dos alemães afirmaram sentir que os estudantes respeitavam seus professores, em comparação com a China, na qual 81% dos entrevistados afirmaram que os professores eram respeitados.

Na Alemanha, onde o salário dos professores é relativamente alto, apenas um em cada cinco pais encorajava seus filhos a se tornarem professores, segundo o estudo. No Brasil, a proporção é a mesma. Enquanto isso, metade dos pais em China, Índia, Gana e Malásia encorajam os filhos a serem educadores.

Nos 35 países avaliados, os professores ficaram, em média, em sétimo lugar em termos de status entre 14 profissões mencionadas, com os entrevistados equiparando o prestígio dos docentes ao dos assistentes sociais. Na China, os professores receberam uma valorização parecida com a dos médicos, enquanto no Brasil foram comparados a bibliotecários.

"Há uma relação clara e sutil entre o respeito pela ocupação de ensino e as percepções de remuneração que as pessoas têm em relação às profissões listadas", afirmou o relatório.

"O alto status do professor não é apenas algo bom para se ter – é cada vez mais provável que leve a melhores resultados dos alunos", concluíram os autores do GTSI, que acrescentaram que a confiança nos sistemas de ensino nos países pesquisados cresceu desde 2013. "Os ministros devem levar o status do professor a sério e se esforçar para melhorá-lo."

O estudo do índice GTIS também verificou que, em 28 dos 35 países analisados, os professores recebiam uma remuneração menor do que os habitantes de seus países consideravam ser justa. As horas trabalhadas semanalmente pelos professores também foram subestimadas em 29 países, com os profissionais latino-americanos com a maior carga horária – chegando a 13 horas extras no Peru.

A Fundação Varkey é dirigida por Sunny Varkey, um empreendedor nascido na Índia e residente em Dubai, cuja empresa GEMS Education, de acordo com relatórios anteriores da Bloomberg e do jornal americano New York Times, tornou-se um dos maiores provedores privados de educação no mundo desde os anos 80. Seus mercados incluem o leste da Ásia e a África.

Deutsche Welle 

Gente fora do mapa

Índia, Henri Cartier-Bresson

Reforma da Previdência será uma farsa se não acabar a 'pejotização'

O Brasil é um país engraçado. Aqui do lado debaixo do Equador há leis, regras e ordens judiciais que são do tipo vacina, que podem “pegar” ou não. Quando não fazem efeito, tornam-se desmoralizadas, ninguém cumpre e fica tudo por isso mesmo. Há alguns dias, um comentarista (desculpe não lembrar seu nome) afirmou aqui na Tribuna da Internet que em 17 de fevereiro de 2017 o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, deu 10 dias para que o presidente Michel Temer, o presidente da Câmara Rodrigo Maia, além dos presidentes da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão Especial que analisam a reforma da Previdência, para que expliquem por que não há estudo atuarial que comprove o alegado déficit da Previdência e por que a proposta de emenda constitucional não foi pré-aprovada pela Comissão Nacional de Previdência Social.

Alguém respondeu? Claro que não. Os políticos são mestres em fazer “olhar de paisagem”. E o ministro Celso de Mello cobrou as respostas deles? Claro que não.

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Certamente o decano do STF tem mais o que fazer e o assunto do déficit da Previdência não parece ter a importância apregoada. Aliás, se crise fosse assim tão grave o próprio Supremo não teria reivindicado um aumento salarial, não é mesmo? Os ilustres e doutos ministros sabem que o generoso reajuste terá de ser estendido a todos os servidores, caso contrário se tornará mais uma abusiva demonstração de privilégio da nomenklatura.

Na verdade, o déficit da Previdência é da máxima importância, porque seus efeitos atingem e ameaçam todos os brasileiros, sem exceção, até mesmo as elites, que armam as maiores jogadas para sonegar pagamento de INSS e têm sido bem sucedidas neste esporte nacional, não há dúvida.

Um dos golpes que está quebrando a Previdência é a chamada “pejotização” — a transformação de empregados em pessoas jurídicas. O prejuízo aos cofres públicos é colossal, não dá nem para calcular, são bilhões, bilhões e bilhões que se esvaem, sob o olhar complacente das autoridades.

O fato concreto é que não há mais brasileiros que ganham altos salários — digamos, acima de R$ 20 mil mensais. “Isso non ecziste mais”, diria o Padre Quevedo, espantado com o imenso número de falsas pessoas jurídicas. No Brasil, só que paga impostos e INSS sobre altos salários são os servidores públicos e de estatais, porque já vem descontado. O resto é uma sonegação deslavada.

Um ator de TV ou executivo que ganha 400 mil por mês, teria de pagar 27,5% de Imposto de Renda, mais 11% de INSS, são 38,5%. Com é pejotizado, só paga 20% de impostos, então sonega 18,5%, que são R$ 74 mil mensais.

A emprega que o contratou como PJ sonega ainda mais. De cara, deixa de pagar 20% do INSS, mais 8% do FGTS, e lá na ponta vai sonegar Imposto de Renda sobre o lucro, porque os R$ 400 mil mensais do superempregado serão contabilizados como “Despesas Operacionais”, reduzindo expressivamente o Lucro, sobre o qual será calculado o IR.

Surgiu a Central Única das Togas do Supremo

O Supremo Tribunal Federal ganhou a aparência de uma instituição meio sindicato, meio delegacia de polícia. Sindicalistas de si mesmos, os ministros da Corte empurraram para dentro do bolso do contribuinte um auto-reajuste de 16,39%. No papel de xerifes, ameaçam reverter no início de 2019 a regra que permitiu a prisão de larápios condenados na segunda instância. Sob penúria fiscal e com a corrupção a pino, a combinação das duas coisas coloca em risco o mais raro dos tesouros que um magistrado pode acumular: a reputação imaculada.

Com uma mão, os ministros da Suprema Corte elevam seus próprios contracheques de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil mensais. Com a outra, ameaçam libertar os corruptos com sentença de segundo grau —gente como Lula, Eduardo Cunha, Sergio Cabral e Eduardo Azeredo. O patrão das togas é você, caro contribuinte. Chamado a opinar, você talvez negasse o reajuste. Se pudesse, provavelmente enviaria certos ministros para o olho da rua.

O diabo é que, numa democracia, o contribuinte terceiriza as decisões aos seus representantes. E o eleitor brasileiro, com seu dedo podre, passou procuração para um Congresso que também se consolidou como uma instituição mista —meio entreposto, meio bordel. Ainda apinhado de caciques moídos nas urnas, esse Legislativo conspurcado, cuja reputação é a soma dos palavrões que inspira nas arquibancadas e nos botecos, aprovou o reajuste do Supremo, enviando-o para a sanção de Michel Temer.


No final do último mês de agosto, quando faltavam duas semanas para assumirem os postos de presidente e vice-presidente do Supremo, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux visitaram Temer. Transformaram a agenda sindical da Corte num processo de corrosão da gestão que agora personificam. Para evitar o veto do presidente da República, sugeriram trocar o “direito” dos juízes a um auxílio-moradia de R$ 4.377,73 pelo um reajuste salarial de 16,38%.

A proposta de Toffoli e Fux carregava um vício de origem. O “direito” que ofereceram como compensação para a elevação dos vencimentos é, na verdade, um privilégio imoral. A lei da magistratura anota que, além do salário, juízes “poderão” receber vantagens como o auxílio-moradia (quando forem transferidos para outras cidades, por exemplo). O mimo virou tunga em 2014, quando uma liminar concedida por Fux estendeu-o para todos os magistrados e procuradores.

Há um problema adicional. O reajuste dos ministros do Supremo aumentará automaticamente a folha de todo o Judiciário federal e estadual. Elevará também os vencimentos dos servidores que já recebem acima do teto e amargam mensalmente um abate-teto, que reduz o valor dos contracheques. Como se fosse pouco, várias corporações estão de tocaia. Os próprios congressistas tramam um auto-reajuste.

Estima-se que os efeitos do aumento do STF custarão algo entre R$ 4 bilhões e R$ 6 bilhões por ano. O Tesouro Nacional está quebrado. Para 2019, o buraco está estimado em R$ 139 bilhões. Para complicar, levantamento feito pela consultoria do Senado anota que o fim do bolsa-moradia seria insuficiente para compensar o estrago provocado pelo reajuste salarial.

A conta do auxílio-moradia de juízes e procuradores, informam os consultores do Senado, somou R$ 96,5 milhões entre janeiro de 2010 e setembro de 2014, quando Fux expediu a liminar redentora que estendeu o privilégio a todos os doutores. De outubro de 2014 até novembro do ano passado, o espeto saltou para R$ 1,3 bilhão.

A despeito da incompatibilidade entre as cifras, a liderança do governo Temer no Senado encaminhou a favor da aprovação do reajuste na votação realizada na última quarta-feira. O presidente da República tem 15 dias para sancionar ou vetar projetos aprovados no Legislativo. O veto de Temer ao reajuste do Supremo é tão improvável quanto o voo de um elefante.

Um presidente que chega ao final do mandato arrastando quatro bolas de ferro —duas denúncias por corrupção e dois processos criminais— não ousaria desafiar a CUTS (Central Única das Togas do Supremo), nova central sindical do país. Entretanto, Temer converterá o absurdo em escárnio se não exigir de Toffoli e Fux uma resposta em relação ao compromisso que assumiram em agosto de acabar com o auxílio-moradia. A dupla precisa levar à vitrine uma reação qualquer. Nem que seja uma cara de nojo.

Depois da onda

Não havia muita dúvida que uma campanha improvisada, intuitiva, com propostas genéricas em vários campos e muito voluntariosa – a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro – produziria um começo de governo idem. E o que parecia tão fácil de ser dito (a promessa de delegar vastas áreas a ministros competentes e do ramo) seria tão difícil de ser feito.

Não havia muita dúvida ainda que personalidades, digamos, exuberantes na expansão de seus campos de atuação e imbuídas de muito zelo no exercício de suas ampliadas atribuições (Paulo Guedes, Hamilton Mourão, Sérgio Moro, Eduardo Bolsonaro) provocariam um constante vai e vem do que pode não pode, vale não vale, disse não foi dito. Especialmente (não é o caso de Moro) quando planos de governo ainda parecem em estágio inicial de elaboração.

Não havia muita dúvida também que outro elemento muito vantajoso na hora de conquistar corações e mentes de eleitores – a promessa de refutar o toma lá dá cá, escapando do varejo da politicagem – retardaria a montagem do governo e as articulações com parlamentares. É inegável que o conhecimento interno da máquina pública, dominado por partidos estruturados, nunca é inútil.

Não havia, em momento algum, dúvida que, na falta de profissionais designados para falar do assunto, o falatório sobre política externa oriundo da campanha provocaria ruídos em meio a poucas certezas difusas e – novamente – obrigaria o próprio Bolsonaro a esboçar correções verbais. Reiterar que o Brasil quer uma política externa “sem viés ideológico” é ainda pouco.


É perfeitamente normal a diferença entre o que se diz em campanha e o que se vislumbra, exequível ou não, quando começa a transição para a fase de governar – ainda mais para uma equipe, como a do atual governo em formação, que vai ter de aprender “on the job”. Mas o ponto é outro: estamos vendo apenas o início de um fenômeno típico de grandes mudanças políticas trazidas por ondas como esse tsunami que elegeu Bolsonaro.

Peço perdão ao leitor para utilizar aqui uma comparação que não deve ser levada ao pé da letra, mas creio ajudar a ilustrar meu argumento. Cobri como repórter duas ondas de enormes mudanças políticas: a que depôs a monarquia no Irã e a que arrebentou o Muro de Berlim. Claro que o ocorrido no Brasil não guarda proporções com esses fatos históricos, e o ponto em comum me parece ser um em especial: a onda que derruba o sistema é formada por vários e diversos componentes, encontra um símbolo e um catalisador, arrasa o que pretendia derrubar, e o depois fica para depois.

Significa que os vários vetores da onda que mudou a política brasileira agora vão convergir ou divergir e é difícil neste momento prever resultados concretos. Na economia, por exemplo, a proposta de “abertura comercial” e o ataque da “questão fiscal (Previdência)” são coisas diferentes mesmo para os integrantes do chamado “núcleo duro” de Bolsonaro, incluindo o que cada um enxerga como “necessário” e considera “possível” dado o imenso desafio político.

Acabei me convencendo na cobertura de situações críticas de mudança, e considero o que acontece no Brasil como uma delas, que a evolução dos acontecimentos raramente é linear e seus principais atores (no caso, Bolsonaro) navegam muito mais ao sabor dos fatos e das circunstâncias que, em caso de ondas, são muito voláteis. Significa que o País está diante de uma oportunidade considerável de se alterar para melhor as condições gerais que até agora o mantêm preso na famosa armadilha do rendimento médio (nosso PIB per capita aumentou, mas a distância para as economias avançadas não está diminuindo).

Mas não é inevitável que isso aconteça. É preciso trabalhar rápido.