segunda-feira, 4 de julho de 2022

Brasil no cabresto

 


Chegada de balsas de garimpo aflige moradores do Juruá

Moradores de comunidades tradicionais do Juruá, uma das regiões mais resguardadas da Amazônia e protegidas por diversas unidades de conservação, estão em alerta após registrarem a chegada de balsas de garimpo. Eles temem que o local se transforme em um novo polo de atividades ilegais.

Segundo informações de moradores, duas embarcações de garimpo se movimentam pelo rio Andirá, dentro dos limites da Reserva Extrativista (Resex) do Baixo Juruá, no sudoeste do estado do Amazonas. A unidade federal de conservação abrange parte dos municípios de Juruá e Uarini e tem uma área de aproximadamente 1.880 quilômetros quadrados.

Dias antes, outra balsa do tipo fora avistada na região. De acordo com representantes de organizações extrativistas, a embarcação foi interceptada por moradores, que pediram que os garimpeiros se retirassem, mas a localização atual da balsa é desconhecida.


Quilômetros rio acima, em Carauari, já dentro de outra unidade de conservação, a Resex Médio Juruá, moradores também se mobilizam para barrar uma possível invasão. "É a primeira vez na história da cidade que uma balsa de garimpo adentra a região do rio Juruá. Nunca houve notícia de exploração de ouro na região, principalmente por essas dragas gigantes”, afirma Manoel Cunha, morador e gestor da Resex.

O medo é que outros garimpeiros revirem aquelas águas em busca do metal precioso. "É uma atividade ilegal aqui, estamos numa unidade de conservação. Temos que barrar essas balsas agora antes que a situação saia de controle”, diz Cunha.

A região do Juruá, afluente do rio Amazonas que nasce no Peru e percorre mais de 3 mil quilômetros, passando pelos estados do Acre e Amazonas, tem um histórico de forte organização social em torno do uso sustentável dos recursos que a floresta oferece.

Na Resex Médio Juruá, a cooperativa formada pelos extrativistas viabiliza que sementes de andiroba, murumuru e ucuuba sejam retiradas e processadas em comunidades até chegarem à indústria de cosméticos.

Do outro lado da margem do rio, moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari também se dedicam à atividade, além do manejo do pirarucu, espécie gigante da Amazônia que quase entrou em extinção devido à pesca predatória.

"Eles puderam organizar uma economia local para que conseguissem escoar e vender sua produção, associado a projetos de conservação ambiental e manejo sustentável”, diz Tiago Jacaúna, conhecedor da região e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

No passado, os moradores eram usados como mão de obra análoga à escravidão na exploração da seringa. Influenciados por Chico Mendes, expulsaram os "patrões", que se diziam donos da terra, e cobraram das autoridades a criação da reserva.

"O manejo sustentável dos recursos naturais é a base da segurança alimentar, geração de renda e das dinâmicas socioculturais das populações tradicionais e povos indígenas da região. Diversas cadeias de valor dos produtos da sociobiodiversidade estão em curso no Médio Juruá, tais como a farinha, açaí, pescado e óleos vegetais”, afirma uma carta do Fórum Território Médio Juruá, que reúne 19 organizações, enviada às autoridades.

Por conta de sua rica biodiversidade, o Juruá entrou em 2018 na lista de Sítio Ramsar, áreas úmidas estratégicas que devem ser preservadas e que recebem apoio técnico e financeiro, segundo a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, assinada na cidade iraniana de Ramsar em 1971, ratificada pelo Brasil em 1993.

Logo após a notícia da chegada das balsas correr as comunidades dentro das unidades de conservação no Juruá, representantes das organizações locais pediram providências junto à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal.

Segundo levantamento do Fórum Território Médio Juruá, existem pelo menos sete processos minerários abertos na Agência Nacional de Mineração com incidência na região, todos em busca de ouro. "Não há outorga legal para qualquer atividade de pesquisa ou extração de substância garimpável nestes municípios", ressaltam as organizações.

Para os extrativistas do Médio Juruá, a Amazônia está repleta de exemplos de que o garimpo não oferece segurança às populações locais, traz impactos negativos ao meio ambiente e profundas ameaças ao modo de vida.

Tiago Jacaúna destaca que o avanço da fronteira agrícola, da pesca e da retirada de madeira ilegais vêm aumento a pressão sobre o modo de vida das comunidades que escolherem viver em harmonia com a floresta. "E, mais recentemente, o garimpo tem se expandido rapidamente, o que gera muitos problemas para as comunidades", afirma.

A cooptação de lideranças locais por meio de recursos financeiros é vista com preocupação. "Essas organizações que atuam fora da lei tentam corromper, comprar os moradores. Isso gera muito conflito interno, além de todas as externalidades, que são a poluição dos rios, contaminação dos recursos pesqueiros, entre outros", diz Jacaúna.

"Nós estamos aqui do lado de uma outra reserva invadida pelo garimpo. As lideranças foram corrompidas, a reserva está sendo explorada de forma ilegal. Tudo lá desmoronou, inclusive as organizações sociais", diz um morador da Resex Médio Juruá ouvido pela DW, fazendo referência à Resex Rio Jutaí.

"As pessoas lá estão mais pobres que antes, quem fica rico é o dono da empresa. Junto com o garimpo vem droga, prostituição, mortes. A gente não quer isso aqui", afirma uma das lideranças locais, que teve o nome omitido por motivos de segurança.

'Fora, Bolsonaro' lembra o fim da ditadura

Os gritos de “Fora, Bolsonaro” pela plateia do Rock in Rio Lisboa não são apenas gritos de “Fora, Bolsonaro”. Os gritos de “Fora, Bolsonaro” durante o show de Elba Ramalho na noite de São João não são apenas gritos de “Fora, Bolsonaro”. Não podem ser comprados pelo valor de face. São algo mais. Por trás do “Fora, Bolsonaro” esconde-se algo semelhante ao que ocorreu no fim da ditadura militar com o ex-presidente João Figueiredo.

Numa visita oficial a Florianópolis, vaiado pelos universitários, chateado com a azeda recepção, o general envolveu-se num empurra-empurra de baixo calão. Assemelhou-se a uma briga de rua. Pouco depois, com a ditadura derrotada, Figueiredo deixaria o Palácio do Planalto pela porta dos fundos, para não passar a faixa presidencial ao sucessor, José Sarney.

A fuga e o imbróglio catarinense escandiam a exaustão dos brasileiros com a carestia, a inflação brutal e a incompetência —nessa ordem. Ao deixar o posto, a inflação superava os 200% anuais. Com um atenuante: Figueiredo chegava a ser engraçado em sua grosseria de cavalariço. Dizia preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de povo. Ria-se das tolices dele porque em geral ele se autorridicularizava. Veja bem, cada um sabe onde coloca o próprio nariz.


Os gritos contra Bolsonaro, até numa plateia estrangeira, seguem semelhante diapasão de fastio do risca-faca que envolveu Figueiredo em Santa Catarina. Ambos demonstraram desprezo pelo cargo, pela oposição e uma atilada inapetência. Com a evidência de que Figueiredo estudou e alcançou o posto de general. Bolsonaro não conseguiu passar da patente de tenente (reformou-se capitão). Na vida civil, seria algo como um ensino fundamental incompleto.

No dia a dia, um preferia os cavalos; o outro prefere as motociatas. Aqui mais um atenuante: Figueiredo tinha posição diferente de Bolsonaro sobre o governo militar. Queria passar a bola para a frente; o outro quer roubar a bola. Produziu uma frase clássica sobre a ditadura (adulada pelo capitão):

— É para abrir mesmo ("regime"), e quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento.

Diante dos comícios pelas Diretas Já, Figueiredo presenciou os maiores movimentos populares vistos no Brasil. Contra ele e a ditadura. No Congresso, com a emenda rejeitada por poucos votos, a pressão da opinião pública produziu a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, derrotando Paulo Maluf, o candidato rebelde do sistema.

Os votos dados a Tancredo, inclusive os de ex-apoiadores do regime militar, encerravam uma movimentação popular ensejada nas centenas de comícios, Brasil afora, marcados pelo desejo de liberdade e democracia. Em todos os momentos da campanha, havia o grito uníssono: “Abaixo a ditadura!”.

As manifestações das plateias dos espetáculos contra Bolsonaro seguem o mesmo roteiro da pressão feita pela opinião pública contra os militares. Lá como cá, surgiu como uma onda, que logo se tornou incontrolável. Não adianta Elba Ramalho pedir que o público se atenha à música, como aconteceu, querendo saudar somente São João. A plateia quer brindar todos os santos e espantar os demônios e os maus espíritos.

As milícias digitais (a dúzia de robôs denunciada por Elon Musk) trabalham para constranger os artistas posicionados contra Bolsonaro. Na ditadura militar, a tática era semelhante, embora analógica: havia a cadeia. Enquanto os robôs replicam tuítes de origem anônima, o público dos espetáculos tem rosto, CPF verificável e roupa com botões. Grita a plenos pulmões. Grita alto porque não quer esquecer os mais de 670 mil mortos (pais, mães e outros parentes) abatidos pela Covid-19 e pela motociata bolsonarista.

No fim da ditadura, também ocorreu o engajamento dos artistas. Do mesmo jeito, aconteceram clivagens. Já naquela quadra existiam os protobolsonaristas. Como agora, eram minoria. Ao contrário de hoje, não ganhavam milhões das prefeituras.

O pensador Isaiah Berlin, em “As raízes do romantismo”, lembra a reação dos filósofos epicuristas diante da destruição das cidades gregas por Alexandre, o Grande. Pensavam assim: “Quem não pode obter do mundo o que realmente deseja deve ensinar a si mesmo a não querer”. Era uma forma de autoproteção.

Mas o Brasil não é a Grécia Antiga, e a postura estoica não sugere ser a arma escolhida pelas plateias brasileiras. A vibração de engajamento entre artistas e público se dissemina como um estribilho. O público do “Fora, Bolsonaro” parece buscar que ele repita a frase de Figueiredo, o Único:

— Não odeio o povo brasileiro; o povo brasileiro é que me odeia. 

Novos livros trazem os tremores de tempos sombrios

Ao mesmo tempo, as pessoas lutam para manter a sanidade. Tocam o violão e a vida diária em suas atividades, saem em busca de novas soluções, num processo desigual de renovação e de resistência. Talvez fosse mais fácil ficar preso entre os tanques nos engarrafamentos da estrada, fingindo que nada daquilo estava acontecendo. Muitos saíram feridos, tiveram medo da depressão e da morte, mas a coragem venceu

Começa a chegar às livrarias uma coleção de livros que trazem o fel e os tremores dos últimos dois anos vividos sob um clima de tensão, ansiedade e isolamento. Uma literatura típica de tempos sombrios. Seus autores não tiveram tempo para se afastar dos campos minados em que pisavam. Imergiram nas ruínas e nos apagamentos da História que marcaram o período, para captar os efeitos de uma realidade torturante na vida das pessoas.

São livros que se situam na encruzilhada do jornalismo com a história e a ficção, alguns já disponíveis para o público. Não precisam recorrer aos efeitos de magia para conduzir os leitores a um mundo verdadeiramente fantástico, transitando às vezes por aventuras e situações dolorosas, nas fronteiras de um país dizimado e ameaçado de destruição.

Críticos e estudiosos de literatura que irão analisá-los no futuro tratarão de situar as obras na memória de um período de horrores e absurdos, estigmatizado pela junção de dois vírus letais, o da pandemia de Covid-19 e o de um autoritarismo pestilento de viés fascista.


São fragmentos de histórias reveladoras de vivências carregadas de dor e perplexidade, enfrentadas pelos habitantes confinados em suas casas. Uma realidade turbulenta, em que se combinam as agressões vindas do exterior com a ansiedade das perdas e as dores do luto familiar, num país atacado pelo negativismo, o fanatismo religioso e o irracionalismo.

Ao mesmo tempo, as pessoas lutam para manter a sanidade. Tocam o violão e a vida diária em suas atividades, saem em busca de novas soluções, num processo desigual de renovação e de resistência. Talvez fosse mais fácil ficar preso entre os tanques nos engarrafamentos da estrada, fingindo que nada daquilo estava acontecendo. Muitos saíram feridos, tiveram medo da depressão e da morte, mas a coragem venceu.

Livros foram gestados e escritos. O primeiro que apresento é o de Julián Fuks, Lembremos do futuro, isso tudo vai passar. Crônicas do tempo da morte do tempo, da Companhia das Letras. Vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro do ano em 2015, com o romance A Resistência, Fuks seduz o leitor com a alegoria de sua reflexão: “Penso na dor de um combalido país, um país maltratado e envilecido por alguns homens soturnos, e quase chego a pensar que o futuro não será grande o bastante para redimir essa tristeza, para realizar tão imenso luto”.

“Mas sim, é claro que sim, afirmo a mim mesmo com toda a certeza, o futuro renasce da mesma terra em que se calcina, o futuro se eterniza como o povo em gerações sucessivas; (…) Não tarda o dia em que os solitários se farão multidão, o silêncio se fará grito e ensurdecerá esses homens terríveis, e calará seus velhos pensamentos, eles todos vão passar, todos eles, vão passar, tudo isso, isso tudo vai passar.”

Julián Fuks lançou uma coletânea com 30 crônicas escritas no período mais crítico da pandemia. Seus textos refletem sobre a perda e a solidão, a fragmentação do tempo e as incertezas futuras de um país. Abrindo sempre espaço para outras manifestações da vida, por onde passa a esperança, com a qual podemos reconstruir e construir o futuro.

Num livro em que também aborda as conseqüências do presente no futuro, o jornalista e ensaísta Paulo Roberto Pires lançou Diante do fascismo – crônicas de um país à beira do abismo, pela Editora Tinta da China. Textos escritos para as revistas Época e Quatro Cinco Um, cobrindo o período de março de 2018 a março deste ano.

Pires dirige um olhar duro e sarcástico sobre esse tempo de dispersão e calamidades. Entra no debate público sem medo, critica a autoproclamada isenção de intelectuais que não assumem posição. Com a chegada do coronavírus e a radicalização do governo Bolsonaro, passa a se referir a ele como a encarnação da “barbárie fascista”. Deixa para o futuro o testemunho límpido e veemente de um escritor num momento crítico do país.

Autor de O drible, o jornalista, escritor e colunista da Folha de S.Paulo Sérgio Rodrigues apresenta seu novo romance, A vida Futura, da Cia das Letras. Uma inventiva ficção em que os escritores José de Alencar e Machado de Assis visitam o Rio de Janeiro do século 21 e têm suas vidas envolvidas com milicianos.

O sociólogo, ex-militante e exilado Liszt Vieira reaparece com A democracia Reage, O Brasil de 2020 a 2022, que se segue à Democracia resiste, 2018/20, pela editora Garamond. Pioneiro nas lutas do movimento verde, Liszt atua como um regente ao pôr em discussão questões da resistência democrática, da pandemia e do meio ambiente.

Em seu vasto painel histórico, o jornalista Laurentino Gomes lançou o volume 3 de sua trilogia sobre a escravidão: Da Independência do Brasil à Lei Áurea. Em 1822, a compra e venda de gente era o maior negócio do novo país independente, quando os escravos representavam cerca de 1/3 da população. Último volume é dedicado ao século 19 e passa pelo movimento abolicionista até a lei Áurea, de 1888. Laurentino expõe o infame legado da escravidão, que permanece arraigado na vida dos brasileiros.