segunda-feira, 4 de julho de 2022

'Fora, Bolsonaro' lembra o fim da ditadura

Os gritos de “Fora, Bolsonaro” pela plateia do Rock in Rio Lisboa não são apenas gritos de “Fora, Bolsonaro”. Os gritos de “Fora, Bolsonaro” durante o show de Elba Ramalho na noite de São João não são apenas gritos de “Fora, Bolsonaro”. Não podem ser comprados pelo valor de face. São algo mais. Por trás do “Fora, Bolsonaro” esconde-se algo semelhante ao que ocorreu no fim da ditadura militar com o ex-presidente João Figueiredo.

Numa visita oficial a Florianópolis, vaiado pelos universitários, chateado com a azeda recepção, o general envolveu-se num empurra-empurra de baixo calão. Assemelhou-se a uma briga de rua. Pouco depois, com a ditadura derrotada, Figueiredo deixaria o Palácio do Planalto pela porta dos fundos, para não passar a faixa presidencial ao sucessor, José Sarney.

A fuga e o imbróglio catarinense escandiam a exaustão dos brasileiros com a carestia, a inflação brutal e a incompetência —nessa ordem. Ao deixar o posto, a inflação superava os 200% anuais. Com um atenuante: Figueiredo chegava a ser engraçado em sua grosseria de cavalariço. Dizia preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de povo. Ria-se das tolices dele porque em geral ele se autorridicularizava. Veja bem, cada um sabe onde coloca o próprio nariz.


Os gritos contra Bolsonaro, até numa plateia estrangeira, seguem semelhante diapasão de fastio do risca-faca que envolveu Figueiredo em Santa Catarina. Ambos demonstraram desprezo pelo cargo, pela oposição e uma atilada inapetência. Com a evidência de que Figueiredo estudou e alcançou o posto de general. Bolsonaro não conseguiu passar da patente de tenente (reformou-se capitão). Na vida civil, seria algo como um ensino fundamental incompleto.

No dia a dia, um preferia os cavalos; o outro prefere as motociatas. Aqui mais um atenuante: Figueiredo tinha posição diferente de Bolsonaro sobre o governo militar. Queria passar a bola para a frente; o outro quer roubar a bola. Produziu uma frase clássica sobre a ditadura (adulada pelo capitão):

— É para abrir mesmo ("regime"), e quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento.

Diante dos comícios pelas Diretas Já, Figueiredo presenciou os maiores movimentos populares vistos no Brasil. Contra ele e a ditadura. No Congresso, com a emenda rejeitada por poucos votos, a pressão da opinião pública produziu a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, derrotando Paulo Maluf, o candidato rebelde do sistema.

Os votos dados a Tancredo, inclusive os de ex-apoiadores do regime militar, encerravam uma movimentação popular ensejada nas centenas de comícios, Brasil afora, marcados pelo desejo de liberdade e democracia. Em todos os momentos da campanha, havia o grito uníssono: “Abaixo a ditadura!”.

As manifestações das plateias dos espetáculos contra Bolsonaro seguem o mesmo roteiro da pressão feita pela opinião pública contra os militares. Lá como cá, surgiu como uma onda, que logo se tornou incontrolável. Não adianta Elba Ramalho pedir que o público se atenha à música, como aconteceu, querendo saudar somente São João. A plateia quer brindar todos os santos e espantar os demônios e os maus espíritos.

As milícias digitais (a dúzia de robôs denunciada por Elon Musk) trabalham para constranger os artistas posicionados contra Bolsonaro. Na ditadura militar, a tática era semelhante, embora analógica: havia a cadeia. Enquanto os robôs replicam tuítes de origem anônima, o público dos espetáculos tem rosto, CPF verificável e roupa com botões. Grita a plenos pulmões. Grita alto porque não quer esquecer os mais de 670 mil mortos (pais, mães e outros parentes) abatidos pela Covid-19 e pela motociata bolsonarista.

No fim da ditadura, também ocorreu o engajamento dos artistas. Do mesmo jeito, aconteceram clivagens. Já naquela quadra existiam os protobolsonaristas. Como agora, eram minoria. Ao contrário de hoje, não ganhavam milhões das prefeituras.

O pensador Isaiah Berlin, em “As raízes do romantismo”, lembra a reação dos filósofos epicuristas diante da destruição das cidades gregas por Alexandre, o Grande. Pensavam assim: “Quem não pode obter do mundo o que realmente deseja deve ensinar a si mesmo a não querer”. Era uma forma de autoproteção.

Mas o Brasil não é a Grécia Antiga, e a postura estoica não sugere ser a arma escolhida pelas plateias brasileiras. A vibração de engajamento entre artistas e público se dissemina como um estribilho. O público do “Fora, Bolsonaro” parece buscar que ele repita a frase de Figueiredo, o Único:

— Não odeio o povo brasileiro; o povo brasileiro é que me odeia. 

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