Numa visita oficial a Florianópolis, vaiado pelos universitários, chateado com a azeda recepção, o general envolveu-se num empurra-empurra de baixo calão. Assemelhou-se a uma briga de rua. Pouco depois, com a ditadura derrotada, Figueiredo deixaria o Palácio do Planalto pela porta dos fundos, para não passar a faixa presidencial ao sucessor, José Sarney.
A fuga e o imbróglio catarinense escandiam a exaustão dos brasileiros com a carestia, a inflação brutal e a incompetência —nessa ordem. Ao deixar o posto, a inflação superava os 200% anuais. Com um atenuante: Figueiredo chegava a ser engraçado em sua grosseria de cavalariço. Dizia preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de povo. Ria-se das tolices dele porque em geral ele se autorridicularizava. Veja bem, cada um sabe onde coloca o próprio nariz.
Os gritos contra Bolsonaro, até numa plateia estrangeira, seguem semelhante diapasão de fastio do risca-faca que envolveu Figueiredo em Santa Catarina. Ambos demonstraram desprezo pelo cargo, pela oposição e uma atilada inapetência. Com a evidência de que Figueiredo estudou e alcançou o posto de general. Bolsonaro não conseguiu passar da patente de tenente (reformou-se capitão). Na vida civil, seria algo como um ensino fundamental incompleto.
No dia a dia, um preferia os cavalos; o outro prefere as motociatas. Aqui mais um atenuante: Figueiredo tinha posição diferente de Bolsonaro sobre o governo militar. Queria passar a bola para a frente; o outro quer roubar a bola. Produziu uma frase clássica sobre a ditadura (adulada pelo capitão):
— É para abrir mesmo ("regime"), e quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento.
Diante dos comícios pelas Diretas Já, Figueiredo presenciou os maiores movimentos populares vistos no Brasil. Contra ele e a ditadura. No Congresso, com a emenda rejeitada por poucos votos, a pressão da opinião pública produziu a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, derrotando Paulo Maluf, o candidato rebelde do sistema.
Os votos dados a Tancredo, inclusive os de ex-apoiadores do regime militar, encerravam uma movimentação popular ensejada nas centenas de comícios, Brasil afora, marcados pelo desejo de liberdade e democracia. Em todos os momentos da campanha, havia o grito uníssono: “Abaixo a ditadura!”.
As manifestações das plateias dos espetáculos contra Bolsonaro seguem o mesmo roteiro da pressão feita pela opinião pública contra os militares. Lá como cá, surgiu como uma onda, que logo se tornou incontrolável. Não adianta Elba Ramalho pedir que o público se atenha à música, como aconteceu, querendo saudar somente São João. A plateia quer brindar todos os santos e espantar os demônios e os maus espíritos.
As milícias digitais (a dúzia de robôs denunciada por Elon Musk) trabalham para constranger os artistas posicionados contra Bolsonaro. Na ditadura militar, a tática era semelhante, embora analógica: havia a cadeia. Enquanto os robôs replicam tuítes de origem anônima, o público dos espetáculos tem rosto, CPF verificável e roupa com botões. Grita a plenos pulmões. Grita alto porque não quer esquecer os mais de 670 mil mortos (pais, mães e outros parentes) abatidos pela Covid-19 e pela motociata bolsonarista.
No fim da ditadura, também ocorreu o engajamento dos artistas. Do mesmo jeito, aconteceram clivagens. Já naquela quadra existiam os protobolsonaristas. Como agora, eram minoria. Ao contrário de hoje, não ganhavam milhões das prefeituras.
O pensador Isaiah Berlin, em “As raízes do romantismo”, lembra a reação dos filósofos epicuristas diante da destruição das cidades gregas por Alexandre, o Grande. Pensavam assim: “Quem não pode obter do mundo o que realmente deseja deve ensinar a si mesmo a não querer”. Era uma forma de autoproteção.
Mas o Brasil não é a Grécia Antiga, e a postura estoica não sugere ser a arma escolhida pelas plateias brasileiras. A vibração de engajamento entre artistas e público se dissemina como um estribilho. O público do “Fora, Bolsonaro” parece buscar que ele repita a frase de Figueiredo, o Único:
— Não odeio o povo brasileiro; o povo brasileiro é que me odeia.
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