quinta-feira, 25 de maio de 2023

Três ataques virulentos contra Marina, em três frases, de três homens

Não foi um dia fácil ontem para a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima). Uma história que se repete, um filme que já viu. Novamente no centro de um debate na qual é colocada como a resistência ao desenvolvimento do país por suas “manias socioambientais”.

Marina passou seis horas do dia ontem numa audiência pública, na Câmara, ouvindo de bolsonaristas incomodados com suas respostas extensas coisas do tipo: “As respostas devem ser mais breves. Se não, vira palestra, e não discussão”, disse Zé Trovão (PL-SC); e “palestra e entrevista a gente vê na TV”, afirmou Felipe Francischini (União-PR).


As grosserias contra a ministra se seguiram durante o dia e vieram de escalão mais alto. Somam-se a essas duras palavras contra uma ministra que é referência mundial derrotas em votações no Congresso, como aprovação do projeto que tira poderes de sua pasta e a flexibilização da proteção da Mata Atlântica.

Relator da medida provisória que mexeu na estrutura do governo, Isnaldo Bulhões (MDB-AL) reagiu às críticas de Marina às mudanças na sua área com a afirmação de que ela fala “fora de contexto” e que atua com “espírito narcisístico”.

“Ela (Marina) está totalmente se posicionando fora de contexto, indo de encontro ao pensamento de governo. Quando ela fala, não sei se movida por um espírito narcisístico, que a política de proteção ao meio ambiente está sendo esvaziada, não é verdade. Isso é uma política de Estado, não é individual” – disse Bulhões.

Outra desferida contra a ministra veio de seu colega de Esplanada, o ministro Alexandre Silveira, das Minas e Energia, que defende exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Marina é contra essa ideia e, por conta do embate, teve que ouvir ser Lula a referência no Brasil para o meio ambiente:

“O embaixador do meio ambiente do Brasil, reconhecido mundialmente, é o presidente Lula. E a gente não precisa de outro. Ele já deu o norte que vai garantir o cumprimento estrito da lei e do respeito ao meio ambiente, mas sem perder o foco do diálogo para construção de caminhos em que a gente possa desenvolver o país e trazer retorno social. Não precisamos de outra marca no governo” – disse o ministro.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi outro que deu uma declaração que atinge em cheio a luta de Marina. Ele afirmou que não é um tema que tenha força no Congresso. Ele disse isso após a votação das duas matérias no plenário.

Gigante vai virar gnomo


Não basta a credibilidade de Lula, ou da ministra do Meio Ambiente. O mundo vai olhar para o arcabouço legal e ver que a estrutura do governo não é a que ganhou as eleições, é a do governo que perdeu. Isso fechará nossas portas
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente

Política é para meninos barbados

A política nacional era um romance que os meninos barbados folheavam, largavam, retomavam, deturpavam. Versáteis, não permaneciam nessas alturas, caíam nos sucessos vulgares, que eram também contos de fadas.

O Doutor Juiz de Direito mencionava a comarca onde servira, no Amazonas. Jacarés monstruosos, onças inofensivas, cobras que engoliam bois.

Seu André Cursino, gordinho, baixinho, barrigudo, saía à rua vestido em robe-de-chambre.

Seu Batista, embutido na camisa dura, enforcado na gravata preta, a barba em bico alongando-lhe a cara magra, falava devagar. Quando se calava, as cabeças em redor balançavam-se aprovando-o, e os olhos maliciosos troçavam dele.

Seu Filipe Benício, encorpado, tinha rugas é bigode grisalho. Sério, causava medo. Na conversa a gravidade esmorecia.

Tipo mofino era o velho Quinca Epifânio, ossudo, inquieto, cara de fome, sovina até nas palavras. Guardava a despensa na loja: barricas bem cobertas, defendidas contra os ratos. De manhã um moleque se chegava ao balcão, a cesta pendurada no braço. O avarento destapava os esconderijos, pesava e media longamente a ração miserável: duzentas gramas de charque, dois dedos de toicinho, um pires de feijão. Privava-se disso e despedia o portador, gaguejando.
Para lá da lagoa, no alto de um monte, Seu Félix Cursino recebia visitas no alpendre de uma casa rodeada de cajueiros.

Abaixo dessa classe andavam criaturas que não liam jornais, ignoravam D. Pedro II e o Barão de Ladário.

André Laerte, barbeiro muito sujo, usava um avental ensanguentado, pisava macio, com modos de gato.

As gargalhadas do pedreiro Carcará feriam todos os ouvidos.

Seu Acrísio, jogador e quase cego, ziguezagueava, batia nas paredes, tenteava degraus e portas com o cajado. No jogo, unia as cartas aos óculos, apalpava-as lentamente, como se as visse com os dedos. Mestre Firmo alfaiate, a agulha metida na gola, pedia um cigarro. Se não o obtinha, entrava na bodega e comprava um maço. Tirava o cigarro necessário e, distribuía dezenove, porque lhe faltava o instinto de proprietário, moderava-se no vício e devia a toda a gente.

Alguns indivíduos, quando não se apresentavam nas calçadas, incorriam em censuras rigorosas. Seu Antônio Justino e Seu Afro estavam entre eles, o primeiro por ser indolente, o segundo por acomodar-se a uma vida irregular.

Dificilmente se provaria que Seu Antônio Justino fosse mais preguiçoso que os outros habitantes da vila, mas todos o condenavam: não tinha fazenda nem ofício, não jogava e nas reuniões das esquinas opinava medianamente.

Seu Afro, vítima de uma infelicidade que só muito mais tarde compreendi, não se julgava infeliz, aparentava não julgar-se infeliz: era um rapagão corado, forte, risonho. Vendo-o pelas costas, as pessoas que discutiam Canudos e o Barão de Ladário faziam caretas de repugnância, largavam frases contundentes ou gestos obscenos. Porque Seu Afro, casado no religioso, morava no Cavalo-Morto, zona imprópria, com a mulher, grande loura sardenta, e um compadre.

Esse amigo tinha residência nominal na fazenda, mas de fato vivia na rua e no pecado, entregue de corpo e alma à família adotiva — uma dedicação que o tempo e os remoques não esfriavam nem corrompiam. Os três achavam no seu pequenino mundo substância para manter a sociabilidade que havia neles.

Dispensavam festas, visitas, palestras. E D. Maroca, vistosa, branca de carnes e de roupa, bem lavada e bem esfregada, caminhava firme nos passeios, sem se voltar para as janelas, isenta de cortesias. As mulheres honestas se desviavam dela, rancorosas. E as desonestas, caiadas, pintadas, enxeriam-se:
— Hum! hum! Maroca passa, nem olha.

Diziam na verdade nem uia. Creio que diziam nenhuia, coisa estranha. D. Maroca não olhava. Seguia o seu caminho, aprumada — e só.

Espantaram-me a desconsideração e a frieza que envolviam essas criaturas. Não me capacitava de que a moça bonita, cheirosa, engomada, fosse de qualquer maneira inferior a D. Águeda de Seu Acrísio, magra e pontuda.

Também me parecia injusto dar ao velho Quinca Epifânio, engelhado e faminto, mais valor que a Seu Afro, robusto e alegre. O juízo dos homens era esquisito.
Bem esquisito.

Contudo esse julgamento absurdo acompanhou-me. Fixou-se, ganhou raízes. Indigno-me, quero extirpá-lo, reabilitar Seu Afro e D. Maroca. Duas pessoas normais. Penso assim. E desprezo-as, sinto-as decaídas. Impossível deixar de senti-las decaídas. Repito mentalmente os desconchavos de Padre João Inácio.
Graciliano Ramos, "Infância"