quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O que faz crescer um povo

O dia em que tivermos mais creches e mais escolas teremos menos hospitais e menos cadeias
Lygia Fagundes Telles

Infiltração invisível

Letícia Dornelles, nova presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, por indicação de um deputado recém-expulso de seu próprio partido, não gostou de se ver reduzida a ex-roteirista de novelas da TV Record. Disse que já foi também redatora do Fantástico. E se tiver sido, igualmente, assistente de palco do Ratinho? Em que isso a qualifica para presidir um monumento cultural?

A Casa Rui é um museu, uma biblioteca, um instituto de pesquisa, uma editora acadêmica, um centro cultural e uma forja de profissionais. Abriga milhares de documentos e já produziu outros tantos. A história passada e presente do Brasil vive nos seus arquivos e do que deles extraem os estudiosos. Não é necessário falar no significado do acervo deixado por Rui Barbosa. Seus 70 anos de existência, desde 1930, falam por si —mesmo humilhada por sua atual sujeição a um Ministério do Turismo comandado por um desclassificado.

Em 2011, o governo Dilma tentou pôr à frente da Casa Rui um sociólogo primário, mas afinado com o pensamento então vigente. Sua indicação foi rechaçada pela própria Casa Rui, que sempre se fez presidir por um intelectual à altura, sem cor política. Mas isso agora acabou.

Letícia Dornelles é só um caso entre centenas de pessoas inexpressivas, nomeadas pelo governo Bolsonaro para cargos menos visíveis, mas fundamentais para o funcionamento de organismos da educação e da cultura —inexpressivas para a exigência dos cargos, mas sob medida para as intenções do governo. É um aparelhamento equivalente ao praticado pelo PT, só que com sinal trocado e um ranço religioso, pentecostal, ofensivo ao Estado laico.

Na verdade, essa infiltração está se dando em todos os ministérios e secretarias. Os Salles, Damares, Weintraubs, Antônios e Araújos são mais notórios pelos cargos que ocupam. Mas, sob eles, já há incontáveis salles, damares, weintraubs, antônios e araújos.
Ruy Castro

Esqueceram as pessoas

Depois de usar e abusar da internet na eleição, Jair Bolsonaro agora utiliza a rede para alavancar um projeto de poder. É legítimo.

O problema está no governo, autor de um fiasco tecnológico: a volta das filas na Previdência. Mais de um milhão aguarda, há meses, solução dos seus pedidos, mas o Estado não responde.

Bolsonaro ecoa Lula. Em 2003, o governo do PT intimou os maiores de 90 anos à fila do INSS. Exigia prova de vida, com corpo presente.

Na origem do problema atual estão trapalhadas do INSS e da Dataprev, vinculados ao Ministério da Economia. O instituto deu licença-saúde a um de cada cinco servidores, revelou a repórter Idiana Tomazelli. A estatal congelou cidadãos num sistema operacional defeituoso. E assim, o milagre da modernidade digital virou vinagre na Previdência Social.

Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, devem desculpas aos brasileiros. Se preocuparam somente com o ajuste das contas previdenciárias. Esqueceram as pessoas.

Mais grave, porém, é o que ocorre na Esplanada dos Ministérios. A política externa binária, de alinhamento robotizado aos Estados Unidos, está induzindo o governo analógico a marginalizar o país na revolução tecnológica da telefonia móvel, o 5G.

Havia um leilão de frequências marcado para março. Seria a estreia do Brasil na disputa por essa tecnologia. Foi adiado indefinidamente.

O 5G é evento transformador, talvez só comparável à introdução da luz elétrica na vida humana. Deve aumentar o PIB mundial em 3%, com 20 milhões de novos empregos até 2035. Equivale a acrescentar uma Índia à economia global.

É insensatez parar tudo e esperar pelas empresas dos EUA, sob a vaga promessa de um 5G de “código aberto”. É, também, ingenuidade a insegurança com a China, dona de metade da rede móvel disponível no país. “Não há razão”, já disse Andrew Parker, chefe do serviço secreto britânico (MI-5), sócio principal dos EUA na espionagem global.

Lento na pista, o Brasil não tem chance na corrida mundial pelo 5G. Ainda há tempo.

Bolsonaro acelera deterioração da democracia no Brasil

A chegada ao poder no Brasil de Jair Bolsonaro — o primeiro presidente ultradireitista desde o retorno à democracia em 1985 — veio acompanhada de grandes temores por parte de seus adversários e das minorias. O primeiro ano de mandato incluiu confrontos com outros poderes do Estado, ataques à imprensa, à ciência, à história... decisões controvertidas e infinitas polêmicas. O militar reformado, que mantém vivo o discurso de nós contra eles da campanha e é abertamente hostil à esquerda, testou as instituições do Brasil.

O apoio à democracia caiu sete pontos, a 62% desde sua posse, os indiferentes ao formato de Governo aumentam enquanto se mantém em 12% a porcentagem dos que acreditam que em certas circunstâncias a ditadura é melhor, de acordo com a pesquisa do Datafolha divulgada no Ano Novo.

O Congresso, no qual não tem maioria, deteve suas iniciativas legislativas mais radicais como eximir policiais e militares de responsabilidade em tiroteios com bandidos e purgar os livros escolares de esquerdismo. O Supremo também foi uma barreira. Mas em áreas como a política cultural, destruiu tudo aquilo que não bate com sua visão. Os editoriais contra seus instintos autoritários são frequentes.

A ONU ligou os alarmes já em setembro, através de sua alta comissária para os Direitos Humanos, a ex-presidenta Michele Bachelet, que após criticar o aumento de mortos por disparos policiais afirmou: “Nos últimos meses observamos uma redução do espaço cívico e democrático, caracterizado por ataques contra os defensores dos direitos humanos e restrições impostas ao trabalho da sociedade civil”. Bolsonaro respondeu cruelmente ao ofender a memória do pai da chilena, um militar assassinado pela ditadura a quem acusou de comunista.

O último relatório anual sobre a qualidade da democracia no mundo do V-dem, um instituto da Universidade de Gotemburgo, coloca o Brasil no top 30% dos mais democráticos, mas alerta sobre sua guinada à autocracia (e a dos EUA, entre outros). O balanço de 2018, antes de Bolsonaro, já apontava uma deterioração desde os anos conturbados do impeachment da esquerdista Dilma Rousseff.

Ainda que o relatório sobre 2019 só fique pronto em alguns meses, o diretor do V-dem, o professor Staffan I. Lindberg, alerta que, baseado em suas observações, o Brasil vive “uma guinada à autocracia das mais rápidas e intensas do mundo nos últimos anos”.

O que mais preocupa esses acadêmicos, diz por telefone da Suécia, são os esforços do presidente e seu Governo para calar os críticos, sejam adversários políticos, juízes que investigam a corrupção, jornalistas, acadêmicos e membros da sociedade civil. “Foi o que fez (Recep Tayyip) Erdogan quando levou a Turquia da democracia à ditadura, o que faz (Viktor) Orban na Hungria, que está prestes a deixar de ser uma democracia, e exatamente o que (Narendra) Modi faz na Índia”, alerta Lindberg.

Os exemplos são inúmeros. Bolsonaro destituiu o diretor do órgão que realiza a medição oficial do desmatamento na Amazônia, pediu um boicote ao jornal Folha de S.Paulo e às empresas anunciantes, sugeriu que o jornalista norte-americano Glenn Greenwald possa ser preso no Brasil por revelações jornalísticas, em um discurso no Chile elogiou Pinochet e no Paraguai, Stroessner. A lista continua e é longa.

O diretor do V-dem afirma que “Bolsonaro é o presidente com menos restrições (das instituições democráticas) desde o final do regime militar” porque quando assumiu a Presidência as instituições — do Congresso à Promotoria Geral da União — já sofriam um enfraquecimento. De fato, desde 2017 o instituto de análise não considera o Brasil uma democracia liberal, e sim uma democracia eleitoral.

A visão da advogada constitucionalista Vera Chemim é menos sombria. Afirma que o presidente “não significa uma ameaça real à democracia ainda que continue atirando no próprio pé” com polêmicas desnecessárias que podem se tornar contraproducentes para seus interesses porque reforçam a esquerda e ofuscam a ação de seu Governo.

Chemim afirma que “o Estado de direito democrático é suficientemente sólido e relativamente maduro para sobreviver a qualquer tentativa de intervenção político-ideológica que possa desconstruir o regime democrático conquistado a duras penas em 1985” e consagrado na Constituição. Diz que o presidente “não afetou as instituições democráticas ainda que tenha de fato agitado a conjuntura política e jurídica quando se expressa e age de maneira impulsiva e explosiva, alimentando ainda mais a profunda polarização ideológica entre as supostas direita e esquerda”.

Bolsonaro faz referências constantes à necessidade de governar para a maioria e eliminar até o último vestígio de seus antecessores esquerdistas, como frisou dias atrás ao mencionar os livros de texto. Abordou o assunto sem ser perguntado por nenhum dos jornalistas que o esperavam diante de sua residência em Brasília, seu local favorito para se comunicar com a imprensa. “A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais irão adorar. Terão a bandeira na capa. Terão o hino. Hoje, como regra, os livros são um monte de coisas escritas, é preciso suavizar (...) Não pode ser como esse lixo que hoje é a regra”.

O especialista sueco alerta sobre dois assuntos: uma vez calados os críticos e a imprensa, os Governos têm o domínio absoluto da informação. E “não são necessárias mudanças legais para que um país se transforme em uma autocracia eleitoral. Veja a Bielorrússia”.

Pensamento do Dia


A utopia capitalista

Segundo Karl Marx o capitalismo guia-se pela lógica implacável do lucro e a desigualdade é inerente ao modo de produção. O axioma marxista parece se confirmar diante do avanço da desigualdade no planeta, mas não responde às transformações em curso. E começa a surgir um capitalismo de partes interessadas (stakeholders) para um mundo coeso e sustentável. Esse será o tema do Fórum Econômico Mundial, a ser realizado na próxima semana.

Traduzindo: o novo modelo para a estrutura das corporações empresariais diferencia-se do capitalismo de Estado e do capitalismo por ações. Parte da premissa de que uma empresa é constituída pelos seus acionistas, funcionários, fornecedores e clientes, e tem responsabilidades sociais e compromissos com a sustentabilidade.

O lucro dos acionistas, o foco apenas em resultados de curto prazo, deixa de ser o principal objetivo. Ele deve se compor a outros valores, como respeito aos direitos humanos, ao bem estar das pessoas e à natureza. Na nova genética econômica, a força do mercado deve estar a serviço de soluções para questões sociais e ambientais.

Como fronteira do que há de mais avançado no pensamento capitalista, Davos descortina uma nova utopia para um mundo que ficou órfão depois da hecatombe da utopia comunista.

Faz sentido. Não há no horizonte nada superior à sociedade capitalista e sua organização econômica. Assim, a utopia possível é dar uma face profundamente humana ao capitalismo, por meio de uma economia mais justa e sustentável.

A humanidade não está mais diante do dilema capitalismo ou socialismo, mas sim de definir que tipo de capitalismo queremos, como indaga o manifesto Davos-2020.

Terá de escolher entre um capitalismo de acionistas focado na maximização dos lucros - como o é na maioria das empresas do mundo ocidental -, um capitalismo de Estado, tipo o da China, ou a terceira via, na qual as empresas privadas se posicionam como curadoras da sociedade, segundo o fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab.

Para Marx, a superação da desigualdade se daria com o fim do capitalismo. Davos pensa diferente: a desigualdade não é intrínseca ao capitalismo ou àglobalização. Ela é produto de escolhas políticas e econômicas. O mesmo raciocínio vale para a devastação ambiental.

Ora, se não é inerente ao modo de produção capitalista, outras escolhas políticas e econômicas podem gerar mais igualdade e garantir a preservação da natureza. Essa é a aposta do chamado capitalismo por partes interessadas.

Não estamos falando de ideias descoladas da realidade. Davos-2020 é impulsionada pelo efeito Greta Thunberg, pelos incêndios da Amazônia, da California e da Austrália. E também pelas convulsões sociais do Chile, França, Colômbia, Equador, Bolívia, entre outros. A questão climática e a da desigualdade econômico-social estão no topo da agenda contemporânea.

Houve também mudanças estruturais. O chão de fábrica de hoje nada tem a ver com o das primeiras revoluções industriais e de uma sociedade estruturada em classes. A classe operária, tida como redentora por Marx, hoje quer fazer a roda da história girar para trás. O capital também se modificou. Seu polo dinâmico se deslocou para as empresas de tecnologia.

Sim, o mundo se move numa velocidade galopante. Quem imaginaria que a Business Roundtable – associação que reúne as maiores corporações dos Estados Unidos – um dia lançaria um manifesto, assinado por 181 CEOs, no qual afirma que a responsabilidade corporativa deve ser mais importante do que o lucro. Entre os signatários do manifesto estão gigantes como Apple, Amazon, Bayer, Coca Cola, Dell, IBM e Novelis.

Ao contrário da utopia comunista, a utopia capitalista não promete o paraíso terrestre. Não prega a revolução. Prega a reforma do capitalismo para a humanidade alcançar novo patamar civilizatório.
Hubert Alquéres 

Onde se educa

As bibliotecas podem ser um lugar a partir do qual é possível educar o cidadão na aprendizagem de uma ética social. Uma biblioteca, sobretudo uma biblioteca nacional, pode oferecer exemplos de outros modelos sociais e de outras condutas cívicas. Em tempos de corrupção generalizada e falta de empatia, a biblioteca pode nos ensinar a nos comportar de outra maneira, através de histórias que não são as oficiais
Alberto Manguel

Os rumos da desigualdade

A recuperação da economia ganhou mais força e o mercado de trabalho dá sinais de melhora, com o avanço um pouco mais intenso de postos com carteira assinada. É combinação desejável para o início de um novo ciclo de redução da desigualdade de renda no país, após o aumento do fosso social ao longo da crise. Mas o caminho de volta promete ser longo.


O Brasil sempre foi desigual, mesmo com as tênues conquistas sociais da primeira década e meia do milênio. Em 2015, o índice de Gini do país era de 0,524 - o indicador varia de zero a um, sendo zero a igualdade perfeita. Era, então, o melhor número da série histórica, mas colocava o país apenas entre Botsuana e Suazilândia. Como a recessão destruiu empregos e atingiu trabalhadores que já ganhavam menos, a disparidade ficou ainda maior nos anos recentes. O índice era 2018 em 0,545, o mesmo do Lesoto.

O pesquisador Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acredita que, daqui para frente, o índice de Gini da renda domiciliar per capita tende a melhorar gradualmente. O índice chegaria a 0,520 em 2030. Seriam necessários, portanto, mais dez anos para retornarmos ao mesmo nível de desigualdade de 2015.

O cenário traçado por Soares, que foi presidente do Ipea entre 2014 e 2015, considera um crescimento econômico médio de 2% ao ano, alguma melhora do mercado de trabalho e pouca novidades no campo da proteção social. É um quadro de recuperação gradual, que chamou de “medíocre”.

Segundo ele, a disparidade entre ricos e pobres vai ceder lentamente mesmo com fatores demográficos e educacionais atuando a favor. Um deles é que as famílias mais pobres têm cada vez menos integrantes, convergindo ao padrão das famílias ricas. Isso contribui porque o Gini é calculado pela divisão da renda da família pelo número de integrantes.

Outro fator é o início do encolhimento da população em idade ativa, o que potencialmente reduzirá a oferta de mão de obra - se o trabalhador qualificado é hoje escasso, o não qualificado também será, elevando salários. O terceiro fator está na redução da desigualdade educacional ocorrida no país no passado recente, o que ainda vai produzir frutos.

Mas existe um outro cenário que aponta para uma melhora mais acelerada da diferença de renda. Nele, o país reduziria o índice de Gini para 0,470 em 2030. O Brasil entraria na próxima década com a menor desigualdade já registrada, embora ainda elevada e distante da de vizinhos como o Uruguai (0,395).

Como acelerar a redução da desigualdade? Há muito a ser feito. Uma reforma tributária capaz de redistribuir a carga de impostos é uma peça fundamental. Daniel Duque, pesquisador do Ibre/FGV, diz que a medida passa por criar uma nova alíquota máxima do Imposto de Renda, acima de 27,5%, além de aumentar o teto do imposto sobre herança e reduzir impostos indiretos sobre consumo.

Outro campo fértil é o de programas de garantia de renda, de inclusão produtiva, as rede de proteção ao trabalhador, o saneamento. Uma agenda nessa direção foi apresentada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em novembro, batizada de Agenda para o Desenvolvimento Social. Entre as medidas, está a ampliação do programa Bolsa Família.

Durante a crise, os mecanismos de proteção social foram insuficientemente usados para compensar os efeitos da recessão sobre a parcela mais vulnerável da população, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), e o seguro-desemprego, defende Rogério Barbosa, pesquisador das universidades de São Paulo e de Columbia.

“Seria esperado que nesse período de crise a proteção social atuasse de forma particularmente mais intensa, de modo a compensar os efeitos mais perniciosos para os mais pobres. Mas isso não aconteceu”, diz Barbosa.

Sem a ampliação desses gastos, a pobreza também levará mais uma década para retornar aos níveis pré-crise, diz Marcelo Neri, da FGV Social. Nos cálculos dele, se a renda total crescer 2,5% ao ano de 2019 a 2030, com a desigualdade constante, a pobreza chegará ao fim do período no mesmo nível que estava em 2014.

“Revertendo a redução de políticas de combate à pobreza, chegaremos a 2030 com menos pobreza do que antes da crise, simples assim”, diz Neri.

No governo Jair Bolsonaro, porém, os rumos de programas sociais seguem incertos. O governo pretende reformular o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida para que recebam a “digital” do presidente. Recentemente, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, declarou que pretende aumentar a renda de 10 milhões de beneficiários que já estão no programa a um custo de R$ 7 bilhões. É meritório, mas ainda uma intenção.

Se existe um primeiro sinal positivo foi a pausa na piora da desigualdade da renda do trabalho no terceiro trimestre de 2019. O índice de Gini da renda do trabalho domiciliar per capita ficou estável frente ao mesmo período de 2018. O indicador piorara em 14 dos 15 trimestres anteriores por essa base de comparação.

Ordem unida no INSS

O governo decidiu convocar 7 mil militares da reserva para resolver o problema das filas do INSS, nas quais dois milhões de segurados aguardam suas aposentadorias e outros benefícios, como salário-maternidade e auxílio-doença. Esse é o saldo de um ano de incompetência na gestão do órgão, no qual 1,5 milhão de processos de aposentadoria estão parados por falhas no sistema. O colapso do atendimento é resultado da reestruturação do INSS por decreto, de 9 de abril de 2019, no qual o presidente Jair Bolsonaro transferiu o órgão do antigo Ministério do Desenvolvimento Social para o Ministério da Economia, ironicamente subordinado à Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Ou seja, resolveram reinventar a roda.

Na canetada, foram extintos 129 cargos em comissão do Grupo-DAS, cujos titulares eram técnicos e foram sumariamente exonerados, ficando o Ministério da Economia de apresentar a proposta de reengenharia administrativa do INSS. O resultado é esse que estamos vendo, com milhares de pessoas dormindo nas filas e sendo maltratadas nas agências do órgão. Outra ironia, envolve o Dataprev, a empresa de informática do governo federal que processa os dados da Previdência.

Em 8 de janeiro, o órgão anunciou que pretende demitir 14% dos funcionários até fevereiro, na estratégia de privatização da empresa. Com 3.360 empregados, o Dataprev está desativando 20 unidades regionais, com um total de 493 funcionários. No programa de demissões voluntárias lançado pelo Dataprev, a empresa prevê o desembolso de R$ 53 milhões para economizar R$ 93 milhões por ano. Sua direção se vangloria de ter faturado R$ 1,6 bilhão, com uma despesa na casa de R$ 1 bilhão, no ano passado. Não é preciso falar quem está pagando essa conta.

Mesmo após setembro, segundo o secretário do Trabalho e da Previdência, Rogério Marinho, que comanda a operação para acabar com as filas, não há expectativa de que o estoque de processos pendentes seja zerado por completo. “Você tem 988 mil pedidos que entram todos os meses, não dá para zerar estoque. O que a gente está dizendo é que pretende que, todo mês, até setembro, outubro, a gente tenha aí esse número de requerimentos da mesma quantidade que temos capacidade de processar. É isso que a gente quer”, disse.

O pacote de ações do governo custará R$ 14,5 milhões por mês. Numa conta de botequim, em oito meses, isso representará uma despesa de R$ 116 milhões, ou seja, muito mais do que o governo vai economizar no Dataprev. O valor inclui a gratificação dos militares — que, por lei, equivale a 30% adicionais sobre a aposentadoria na reserva. Parte do custo, segundo Marinho, será compensada. “Consideramos que esse custo será compensado com a correção monetária que o governo deve deixar de pagar.” Ou seja, o governo desorganizou tudo e agora vai gastar muito mais para reorganizar.

O que aconteceu com o INSS é típico de ações voluntaristas que não avaliam as suas consequências, porque não se basearam nos dados da realidade, mas numa visão ideológica sobre a economia. No fundo, a contenção das aposentadorias durante todo o ano passado serviu para que o ministro da Economia, Paulo Guedes, gerenciasse o fluxo de caixa do governo, de olho no deficit fiscal. Se sabia desde o primeiro momento que a aprovação da reforma da Previdência teria impacto nos pedidos de aposentadoria, simplesmente porque sua discussão vem desde o governo Michel Temer.

A propósito, àquela ocasião, o órgão estava subordinado ao então ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, hoje ministro da Cidadania, que se livrou do abacaxi. Na época dele, os dirigentes do órgão debatiam uma maneira de se antecipar aos pedidos, oferecendo a aposentadoria a todos os segurados aptos, por tempo de contribuição e idade, uma maneira de acabar com as filas e também de ter mais previsibilidade em relação ao fluxo de gastos da Previdência. Com base no sistema de processamento de dados então existente, isso era perfeitamente possível. Não se justifica, portanto, o que aconteceu neste ano, a não ser por ação deliberada de contenção de gastos, que gerou um desgastante problema social, a ponto de abalar a imagem de Bolsonaro. Como virou recorrente nessas crises criadas pelo próprio governo, os militares são convocados para enxugar o gelo.