terça-feira, 14 de abril de 2020

Como o coronavírus vai mudar nossas vidas

A Covid-19 mudou nossas vidas. Não estou falando aqui simplesmente da alteração da rotina nesses dias de isolamento, em que não podemos mais fazer caminhadas no Minhocão ou ir aos nossos bares e restaurantes preferidos. Sim, tudo isso mudou nosso cotidiano —e muito. Mas o meu convite para você é para pensarmos nas mudanças mais profundas, naquelas transformações que devem moldar a realidade à nossa volta e, claro, as nossas vidas depois que o novo coronavírus baixar a bola. Por isso talvez seja melhor mudar o tempo verbal da frase que abre este texto e dizer que o coronavírus vai mudar as nossas vidas. Mas como? Que cenários prováveis já começam a emergir e devem se impor no mundo pós-pandemia?


Entender que mundo novo é esse é importante para nos prepararmos para o que vem por aí. Porque uma coisa é certa: o mundo não será como antes, conforme nos alertou o biólogo Átila Iamarino.

“O mundo mudou, e aquele mundo (de antes do coronavírus) não existe mais. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que tenta manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa nova realidade”, disse nesta entrevista para a BBC Brasil Átila, que é doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Universidade Yale. “Mudanças que o mundo levaria décadas para passar, que a gente levaria muito tempo para implementar voluntariamente, a gente está tendo que implementar no susto, em questão de meses’, diz ele.

Ainda nessa linha, havia uma visão entre especialistas de que faltava um símbolo para o fim do século 20, uma época altamente marcada pela tecnologia. E esse marco é a pandemia do coronavírus, segundo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, nos EUA, em entrevista ao Universa. “[O historiador britânico Eric] Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da Primeira Guerra Mundial [1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva. Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites”, diz Lilia.

Vários futuristas internacionais dizem que o coronavírus funciona como um acelerador de futuros. A pandemia antecipa mudanças que já estavam em curso, como o trabalho remoto, a educação a distância, a busca por sustentabilidade e a cobrança, por parte da sociedade, para que as empresas sejam mais responsáveis do ponto de vista social.

Outras mudanças estavam mais embrionárias e talvez não fossem tão perceptíveis ainda, mas agora ganham novo sentido diante da revisão de valores provocada por uma crise sanitária sem precedentes para a nossa geração. Como exemplos, podemos citar o fortalecimento de valores como solidariedade e empatia, assim como o questionamento do modelo de sociedade baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo.

“A vida depois do vírus será diferente”, disse ao site Newsday a futurista Amy Webb, professora da Escola de Negócios da Universidade de Nova York. “Temos uma escolha a fazer: queremos confrontar crenças e fazer mudanças significativas para o futuro ou simplesmente preservar o status quo?”

As transformações são inúmeras e passam pela política, economia, modelos de negócios, relações sociais, cultura, psicologia social e a relação com a cidade e o espaço público, entre outras coisas.

O ponto de partida é ter consciência de que os efeitos da pandemia devem durar quase dois anos, pois a Organização Mundial de Saúde calcula que sejam necessários pelo menos 18 meses para haver uma vacina contra o novo. Isso significa que os países devem alternar períodos de abertura e isolamento durante esse período.

Diante dessa perspectiva, como ficam as atividades de lazer, cultura, gastronomia e entretenimento no centro e em toda a cidade durante esse período? O que mudará depois desse período? São questões ainda em aberto, mas há sinais que nos permitem algumas reflexões.

Para entender essas e outras questões e identificar os prováveis cenários, procurei saber que tendências os futuristas, pesquisadores e bureaus de pesquisas nacionais e internacionais estão traçando para o mundo pós-pandêmico. A partir dessas leituras e também de um olhar para as questões que dizem respeito ao centro de São Paulo e à vida urbana em geral, fiz uma lista com algumas dessas tendências, que você pode ler a seguir.
Confira as 10 tendências para o mundo pós-pandemia

1. Revisão de crenças e valores

A crise de saúde pública é definida por alguns pesquisadores como um reset, uma espécie de um divisor de águas capaz de provocar mudanças profundas no comportamento das pessoas. “Uma crise como essa pode mudar valores”, diz Pete Lunn, chefe da unidade de pesquisa comportamental da Trinity College Dublin, em entrevista ao Newsday.

“As crises obrigam as comunidades a se unirem e trabalharem mais como equipes, seja nos bairros, entre funcionários de empresas, seja o que for... E isso pode afetar os valores daqueles que vivem nesse período —assim como ocorre com as gerações que viveram guerras”.

Já estamos começando a ver esses sinais no Brasil —e no centro de São Paulo, com vários exemplos de pessoas que se unem para ajudar idosos, por exemplo.

2. Menos é mais

A crise financeira decorrente da pandemia por si só será um motivo para que as pessoas economizem mais e revejam seus hábitos de consumo. Como diz o Copenhagen Institute for Futures Studies, a ideia de “menos é mais” vai guiar os consumidores daqui para frente.

Mas a falta de dinheiro no momento não será o único motivo. As pessoas devem rever sua relação com o consumo, reforçando um movimento que já vinha acontecendo. “Consumir por consumir saiu de ‘moda’”, escreve no site O Futuro das Coisas Sabina Deweik, mestre em comunicação semiótica pela PUC e pesquisadora de comportamento e tendências.

O outro lado desse processo é um questionamento maior do modelo de capitalismo baseado pura e simplesmente na maximização dos lucros para os acionistas. “O coronavírus trouxe para o contexto dos negócios e para o contexto pessoal a necessidade de revisitar as prioridades. O que antes em uma organização gerava resultados financeiros, persuadindo, incentivando o consumo, aumentando a produção e as vendas, hoje não funciona mais”, diz Sabina.

“Hoje, faz-se necessário pensar no valor concedido às pessoas, no impacto ambiental, na geração de um impacto positivo na sociedade ou no engajamento com uma causa. Faz-se necessário olhar definitivamente com confiança para os colaboradores já que o home office deixou de ser uma alternativa para ser uma necessidade. Faz-se necessário repensar a sociedade do consumo e refletir o que é essencial.”

3. Reconfiguração dos espaços do comércio

A pandemia vai acentuar o medo e a ansiedade das pessoas e estimular novos hábitos. Assim, os cuidados com a saúde e o bem-estar, que estarão em alta, devem se estender aos locais públicos, especialmente os fechados, pois o receio de locais com aglomeração deve permanecer.

“Quando as pessoas voltarem a frequentar espaços públicos, depois do fim das restrições, as empresas devem investir em estratégias para engajar os consumidores de modo profundo, criando locais que tragam a eles a sensação de estar em casa”, diz um relatório da WGSN, um dos maiores bureaus de pesquisas de tendências do mundo.

Eis um ponto de atenção para bares, restaurantes, cafeterias, academias e coworkings, que devem redesenhar seus espaços para reduzir a aglomeração e facilitar o acesso a produtos de higiene, como álcool gel. Os espaços compartilhados, como coworkings, têm um grande desafio nesse novo cenário.

4. Novos modelos de negócios para restaurantes

Uma das dez tendências apontadas pelo futurista Rohit Bhatgava é o que ele chama de “restaurantes fantasmas”, termo usado para descrever os estabelecimentos que funcionam só com delivery. Como a possibilidade de novas ondas da pandemia num futuro próximo, o setor de restaurantes deve ficar atento a mudanças no seu modelo de negócios, e o serviço de entrega vai continuar em alta e pode se tornar a principal fonte de receita em muitos casos.

5. Experiências culturais imersivas

Como resposta ao isolamento social, os artistas e produtores culturais passaram a apostar em shows e espetáculos online, assim como os tours virtuais a museus ganharam mais destaque. Esse comportamento deve evoluir para o que se pode chamar de experiências culturais imersivas, que tentam conectar o real com o virtual a partir do uso de tecnologias que já estão por aí, mas que devem se disseminar, como a realidade aumentada e virtual, assistentes virtuais e máquinas inteligentes.

De acordo com o estudo Hype Cycle, da consultoria internacional Gartner, as experiências imersivas são uma das três grandes tendências da tecnologia. Destacamos aqui a área cultural, mas isso também se estende a outros setores, como esportes, viagens a varejo, conforme indica o relatório A Post-Corona World, produzido pela Trend Watching, plataforma global de tendências.

6. Trabalho remoto

O home office já era uma realidade para muita gente, de freelancers e profissionais liberais a funcionários de companhias que já adotavam o modelo. Mas essa modalidade vai crescer ainda mais. Com a pandemia, mais empresas —de diferentes portes— passaram a se organizar para trabalhar com esse modelo. Além disso, o trabalho remoto evita a necessidade de estar em espaços com grande aglomeração, como ônibus e metrôs, especialmente em horários de pico.

7. Morar perto do trabalho
Essa já era uma tendência, e morar no centro de São Paulo se tornou um objeto de desejo para muitas pessoas justamente por conta disso, entre outros motivos. Mas, com o receio de novas ondas de contágio, morar perto do trabalho, a ponto de ir a pé e não usar transporte público, deve se tornar um ativo ainda mais valorizado.

8. Shopstreaming

Com o isolamento social, as lives explodiram, principalmente no Instagram. As vendas pela internet também, passando a ser uma opção também para lojas que até então se valiam apenas do local físico. Pois pense na junção das coisas: o shopstreaming é isso. Uma versão Instagram do antigo ShopTime.

9. Busca por novos conhecimentos

Num mundo em constante e rápida transformação, atualizar seus conhecimentos é questão de sobrevivência no mercado (além de ser um prazer, né?). Mas a era de incertezas aberta pela pandemia aguçou esse sentimento nas pessoas, que passam, nesse primeiro momento, a ter mais contato com cursos online com o objetivo de aprender coisas novas, se divertir e/ou se preparar para o mundo pós-pandemia. Afinal, muitos empregos estão sendo fechados, algumas atividades perdem espaço enquanto outros serviços ganham mercado.

10. Educação a distância

Se a busca por conhecimentos está em alta, o canal para isso daqui para frente será a educação a distância, cuja expansão vai se acelerar. Neste contexto, uma nova figura deve entrar em cena: os mentores virtuais. A Trend Watching aposta que devem surgir novas plataformas ou serviços que conectam mentores e professores a pessoas que querem aprender sobre diferentes assuntos.
Clayton Melo

O nome dos mortos

Há um momento em que são números. Muitos contaminados na China; taxa de letalidade de tantos por cento. A Itália, apesar das óperas cantadas em suas varandas, apesar do gesto espetacular do Papa, na praça vazia, tem números ainda mais alarmantes. A Espanha perde para o touro da doença. Ninguém vela seus mortos, meras estatísticas. Um dia, no entanto, a morte passa a se chamar Daniel, dona Maria, Godofredinho do Posto, filho da Zuleide. Aí é tormento, abismo e queda
Alexandre Brandão, Pandemia, modos de rir e de se desesperar

Um presidente irrelevante não merece tanta atenção da mídia

Um bom exemplo do poder das palavras de um líder veio do Reino Unido. Tendo se recuperado de um caso grave de Covid-19, o primeiro-ministro Boris Johnson gravou um depoimento oficial lapidar: demonstra empatia com os doentes, apoio e admiração aos profissionais de saúde, louva o sistema público de saúde do país e conclama a população ao esforço coletivo necessário para enfrentar a tragédia.

Independente do juízo maior que se possa fazer sobre o governo de Boris Johnson, foi uma fala digna de um líder nacional.

Ninguém cogita que algo similar possa vir de Bolsonaro. Não esperamos do presidente nenhum sentimento nobre, nenhuma inspiração coletiva, nada que acene para a união e para valores nacionais. Dele não sai nada além de provocações baratas e brigas políticas de absoluta mesquinhez.

Elas também não indicam o rumo que o governo tomará. Até o momento em que escrevo esta coluna, Luiz Henrique Mandetta continua ministro da Saúde, mesmo depois de dar uma entrevista ao Fantástico em que disse com todas as letras que ele e o presidente divergem na estratégia. Que ele continue ministro só demonstra o quão frouxo é Bolsonaro no campo da ação.

Fala que o isolamento social é desastroso para o Brasil e mesmo assim não troca o ministro que promove o isolamento. Bolsonaro torna-se cúmplice daquilo que suas palavras condenam. Ladra, mas não morde.

Tampouco esperamos a verdade das palavras dele. Quando Bolsonaro disse em 9 de março que tinha “provas” de que as eleições de 2018 foram fraudadas, ninguém acreditou —nem mesmo seus apoiadores e fãs. Era óbvio que ele não tinha prova nenhuma; era só mais um blefe, mais uma mentira contada para chacoalhar as águas do debate público e ser esquecida no dia seguinte, quando novas provocações aparecessem.

Assim como a emissão descontrolada de moeda corrói seu valor, o palavrório inconsequente de Bolsonaro deprecia a palavra presidencial. Durante uma hiperinflação, as pessoas param de aceitar pagamentos em dinheiro. É hora de tratar as palavras do presidente da mesma maneira: como elas de nada valem, também não devem ser levadas a sério ou receber o destaque da imprensa.

Como todo mundo que passou pelos anos de colégio deve ter aprendido, uma provocação só tem poder na medida em que damos importância a ela. Bolsonaro ir a pé à farmácia ou à padaria nada mais é do que uma provocação barata de um presidente que carece da coragem para fazer valer suas palavras na condução do governo.

Essa e outras pirraças presidenciais (e dos filhos) são objetivamente irrelevantes para o país, e só adquirem centralidade na medida em que reagimos a elas.

Tornar as suas gracinhas o centro diário do debate público é conceder-lhe uma importância que não tem. O presidente não manda mais no país. Comporta-se como uma criança birrenta que tenta atrapalhar o trabalho dos adultos.

Na medida em que seu choro desvia nossa atenção, ele é bem sucedido. Está desacreditado, mente sem parar, e busca gerar barulho para que não nos demos conta do óbvio: na maior crise de seu governo (a primeira não causada por ele), Bolsonaro é irrelevante. Tratemo-lo como tal. Neste momento, não merece mais do que a notinha no pé da página.
Joel Pinheiro da Fonseca

O antes e o depois de Bolsonaro

James Carville é um consultor político que em 1992 assessorou Bill Clinton na disputa pela Presidência dos EUA, então ocupada por Bush pai. Reza a lenda que Carville afixou numa das paredes do comitê de campanha um cartaz com três lembretes para que o candidato democrata não perdesse o foco durante os debates. Diziam eles: “Não se esqueça do sistema de saúde”, “Mudança vs Mais do Mesmo” e “A economia, estúpido”.

Muito antes de Carville, economistas e cientistas políticos já estudavam as íntimas relações entre a política econômica e seus impactos nas urnas. Políticos normalmente se esquecem disso, mas além de eleitores, somos empregados, empresários, profissionais liberais ou aposentados. E percepções sobre crescimento, desemprego e inflação afetam nossas decisões de votar tanto ou mais do que preferências ideológicas ou inclinações por este ou aquele candidato.

William Nordhaus, vencedor do prêmio Nobel de economia em 2018, lançou em 1974 a hipótese de que políticos são tentados a se valer da política econômica como estratégia para se reelegerem ou fazerem seus sucessores. De acordo com sua teoria dos ciclos político-econômicos, governantes tendem a adotar políticas restritivas no início do governo, aprovando reformas e apertando o cinto das despesas enquanto sua popularidade está alta. À medida em que o mandato se aproxima do fim, é hora de afrouxar as rédeas e expandir os gastos e o crédito, apostando que o crescimento dos empregos e dos lucros lhes trarão mais votos.


Em 2018, ao se colocar à disposição de Bolsonaro para ser o seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes prometeu mundos e fundos. Com números espetaculosos, convenceu o ex capitão de que valeria a pena apoiar um programa amargo de reformas no primeiro ano de governo (Previdência, privatizações e cortes de despesas), pois dali em diante os investimentos iriam bombar e o crescimento, deslanchar.

Seguindo a receita de bolo do ciclo econômico-eleitoral, Guedes persuadiu Bolsonaro de que as medidas liberais se reverteriam em uma fácil reeleição em 2022.

No entanto, o mesmo antigo compositor baiano que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso” também nos alertava que “a vida é real e de viés”. E se no início do ano, quando tudo parecia tranquilo, Bolsonaro já estava incomodado com a demora de Guedes em entregar os resultados prometidos, a pandemia causada pelo novo coronavírus torna ainda menos provável que os planos de Guedes se concretizarão.

Analisando as pesquisas de opinião pública conduzidas pelo Ibope nos últimos 35 anos, fica evidente como a gestão da economia foi determinante para as ambições eleitorais de praticamente todos os presidentes brasileiros. José Sarney, por exemplo, viu sua aprovação cair da casa dos 70% no lançamento do Cruzado para menos de 10% após os sucessivos fracassos de seus planos heterodoxos. O mesmo aconteceu com Collor: engana-se quem imagina que sua popularidade despencou com as denúncias de corrupção. Com a inflação subindo e a economia em recessão, sua avaliação positiva já estava abaixo de 20% quando Pedro Collor contou tudo. Daí em diante foi só ladeira abaixo.

FHC segurou o quanto pôde para se reeleger, mas viu a sua reprovação crescer de 20% para 50% com a liberação do câmbio no início de 1999. A partir desse ponto seu segundo mandato se arrastou em meio a políticas fiscais e monetárias restritivas para salvar o Real, racionamento de energia e problemas externos como a crise na Argentina e os atentados terroristas nos Estados Unidos. Como resultado, o projeto de permanência do PSDB no poder foi abortado com a derrota de José Serra em 2002.

Lula foi o único presidente do atual ciclo democrático a conseguir aplicar as recomendações do manual da teoria do ciclo político-econômico. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, foi dada continuidade à política contracionista de Pedro Malan nos primeiros dois anos de governo, comprando credibilidade nos mercados interno e externo. Com o mensalão batendo às portas do seu gabinete, Lula abriu as torneiras do gasto público e do crédito dos bancos oficiais para estimular a economia e impulsionar sua popularidade. Sua aprovação subiu de 30% em meados de 2005 para atingir impressionantes 80% em 2010, atropelando a crise financeira de 2008 e elegendo com facilidade a sua sucessora para o Palácio do Planalto.

A história de Dilma na Presidência pode ser contada em três atos.

Enquanto a economia rodava acelerada pela política expansionista de Guido Mantega, seus índices de aprovação giravam em torno de 60%. A insatisfação popular com a classe política irrompeu com os protestos de rua de 2013, e dali até a reeleição Dilma se equilibrou entre 30% e 40% de popularidade.

Mas então a tempestade perfeita se formou: os excessos econômicos do passado cobraram seu preço no mesmo momento em que o maior escândalo de corrupção da história brasileira atingia o PT e os principais partidos da coalizão governista. Com sua reprovação batendo em 70% da população, todos sabem o que aconteceu.

A crise da covid-19 marca o fim prematuro da primeira fase do governo Bolsonaro. Ninguém sabe qual será o saldo macabro de mortes da pandemia no Brasil, e muito menos qual a duração e a gravidade dos seus efeitos econômicos. Simulações do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimam que a economia brasileira crescerá de 2,3% a 4,4% menos do que o esperado, enquanto no mercado já há instituições financeiras que trabalham com uma recessão de 5%, segundo o boletim Focus do Banco Central.

Se o cenário de desemprego recorde e quebradeiras no setor privado se concretizar, e de mãos atadas pela piora fiscal provocada pelas medidas de socorro contra a pandemia, a maldição de Carville (“é a economia, estúpido!”) assombrará os 30 meses que separam Bolsonaro das eleições de 2022. Haja cloroquina para tentar evitar a queda na sua popularidade.

Ganha contornos o tamanho da desgraça do Covid-19 no Brasil

Tempo ameno aquele que cercou há quase um mês o encontro do ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, com ministros do Supremo Tribunal Federal e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado para discutirem a ameaça do coronavírus.

Foi no último dia 16. O Brasil só tinha 234 casos confirmados e 2.064 suspeitos da desgraça que começava a atingir alguns países da Europa depois de assombrar a China. O governo destinara apenas R$ 5,09 bilhões para o combate que mal começara.

Na véspera, contrariando as recomendações médicas, o presidente Jair Bolsonaro recepcionara ao pé da rampa do Palácio do Planalto uma pequena multidão que fora às ruas pedir o fechamento do Congresso e do Supremo. Tocou com as mãos em 272 pessoas.

Antes do início da reunião, os participantes do encontro higienizaram as mãos com álcool em gel e evitaram o contato físico. Mandetta chegou a estender a sua para apertar as demais mãos, mas recolheu-a a tempo provocando risos discretos.


Combinou-se que pouco do que ali fosse dito poderia vazar para a imprensa. Um dos ministros perguntou a Mandetta quantos brasileiros poderiam morrer ao fim da pandemia. No cenário mais realista, respondeu Mandetta, algo como 280 mil. Sim, 280 mil.

Na semana passada, o governo de São Paulo anunciou que poderão morrer no Estado cerca de 111 mil pessoas se as medidas adotadas surtirem efeito. O Ministério da Saúde informou, ontem, que 23.130 casos foram confirmados e o número de mortos é de 1.328.

Tempo pesado, este, em que cientistas das universidades de São Paulo e da Nacional de Brasília estimam que o número de infectados na verdade já ultrapasse a casa dos 313 mil. E que o sistema de Saúde em São Paulo possa em breve entrar em colapso.

O Brasil é um dos países que menos aplicaram testes até agora para poder ter uma real dimensão da tragédia que se avizinha – embora seja o 14ª mais afetado pelo vírus. Numa lista de 15 grandes países, é o lanterninha no quesito testes.

Mandetta antecipara a compra de 22 milhões de kits de testes à China. Os Estados Unidos mandaram uma frota de gigantescos aviões para comprar à China tudo que estivesse à venda – de kits a respiradouros, máscaras, aventais e macacões.

E para completar a desdita do Brasil, o presidente da República, preocupado antes de tudo em salvar a Economia, boicota de todas as formas possíveis os esforços do seu ministro da Saúde no enfrentamento do vírus. Onde isso acontece?

Bolsonaro está à procura de um substituto para Mandetta, que sairia levando a equipe que o acompanha desde que assumiu o ministério. A arcar com tal o desgaste, Bolsonaro sabe que o ministro que escolher deverá pensar como ele, Bolsonaro.

O que significaria: ao fim e ao cabo da pandemia, seus resultados deverão ser debitados na conta do presidente. É por isso que Bolsonaro ainda hesita em mandar Mandetta embora.
Ricardo Noblat

Imagem do Dia

Koho Shoda

Apocalipse é esperança

São inéditos a velocidade de progressão da pandemia pela Covid-19 e o número de verdades e inverdades que surgem e desvaecem à luz das ainda escassas comprovações científicas, quer sobre os testes ditos padrão-ouro, fármacos que possam se mostrar verdadeiramente úteis em seu tratamento ou mesmo duração da imunidade conferida. Nesse cenário tão novo, consola o grande número de pessoas já curadas, porém esse equilíbrio instável entre epidemiologia e estrutura de serviços para responder bascula entre o tamanho do desafio e a coordenação da resposta. No Brasil, a operação dos hospitais de campanha, em construção em diversas cidades, se a eles forem assegurados recursos humanos qualificados e suficientes, poderá salvar vidas.

O grande pensador e poeta Paul Valéry nos alerta, premonitoriamente, no entreguerras: “Civilizações, não se esqueçam de que são mortais”. Esta pandemia, que seguramente não será a última, vem nos lembrar, peremptória, a nossa possibilidade de desaparecer como civilização, abrupta ou lentamente, seja pelo caos, por armas atômicas, pelos danos ao meio ambiente, pela falta d’água ou por epidemias.

Conhecendo a realidade de exclusão de nossas grandes cidades, essa doença vai desnudar, em carne viva como nunca antes, a exclusão social e a diferença de acesso aos serviços básicos, desde saneamento básico, água e moradia, até o ápice do sistema, que são as unidades de terapia intensiva. Não será apenas um jovem ianomâmi, em sua realidade longínqua, que morrerá atingido pela virose, sem a assistência adequada à sua cultura. Poderão ser nossos jovens, moradores de comunidades e suas famílias, em particular os mais velhos. Caberá, mais do que à rede suplementar de saúde, a esse sistema único, o SUS, castigado cronicamente pelo sub financiamento, através das medidas emergenciais orquestradas, dar a resposta, correndo contra o tempo da disseminação acelerada.

Na falta de testes em larga escala, urge organizar a vigilância epidemiológica dos casos de síndrome respiratória aguda grave e gripe, inclusive dos óbitos, gerando informação necessária sobre os vetores de expansão da doença e seus números. Dispensadas estão as metáforas quando o hiperrealismo grita, ululante como diria Nelson Rodrigues: Nova York, a cidade mais cosmopolita e rica do mundo, ultrapassa os 200 mil casos e enterra alguns milhares de seus cidadãos em cova rasa, se ajoelha diante da tragédia humana inaudita, a superar qualquer narrativa épica grega. Mas vai conseguir achatar a curva de transmissão do novo coronavírus com o isolamento social.

Nesta Páscoa tão insólita, contrita, mais que nunca carregada de seu sentido de travessia e libertação, nos vemos em meio à angústia, com mais perguntas do que respostas, e muitas dúvidas. É restauradora a visão de peixes e patos de volta aos canais de Veneza, bem como ouvir a homilia do Papa Francisco e Andrea Bocelli cantar “Amazing grace” numa catedral de Milão deserta. Retroalimenta-nos da velha e teimosa confiança de que podemos prosseguir, capazes de olhar o Apocalipse não como um livro de maldições, mas como ele é, uma leitura de revelação e esperança.

Pessoas com melhores condições financeiras têm mais chance de sobreviver

Elas podem adaptar seu cotidiano para reduzir ao máximo o contato com o coronavírus. Trabalham no esquema home office, sem perder o emprego. Fazem compras sem ir ao mercado. Têm um bom plano de saúde e atendimento médico.
 
Os mais pobres precisam recorrer ao hospital e não recebem informações sobre seu tratamento. Também são vítimas de preconceito, principalmente os negros. A pandemia é nova, mas a segregação no sistema de saúde segue o molde de outras doenças com as quais lidamos há tempos, como câncer ou problemas cardiovasculares. A principal recomendação da OMS é a quarentena. Nas favelas brasileiras, muitos vivem juntos em barracos minúsculos onde nem a tuberculose foi erradicada. Como elas podem seguir as orientações que lhes protegeriam do coronavírus?
Jon Zelner, epidemiologista da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan (EUA)

A peste moral (teatro)

Elementos do enredo farsesco e alegorias para um arco trágico: crise sem precedentes; depressão econômica a caminho; “imaginação totalitária” (conforme Francisco Razzo) imperando; jacobinistas de repente apaixonados por garantias constitucionais; súbitos defensores do direito de ir e vir protestando —farreando o carnaval da vida banalizada — com caixões cenográficos nas avenidas; presidente da República, com plano de saúde, investindo no (convidando ao) rolê; povo, sem plano de saúde, saindo às ruas para trombar com o pico do contágio e, talvez, tombar em caixões de verdade; governador, em defesa da vida (e para antagonizar com um fã de Brilhante Ustra), ameaçando prender quem lhe desafie a norma e ouse circular livremente.

Compõe a trama também — glória do populismo — a luta de classes, forjada artificialmente pelo bolsonarismo, ante uma pandemia. De um lado, o pobre que quer comida — pobre defendido por (virada dramática) Jair Bolsonaro, aquele outrora contrário ao Bolsa Família, doravante preocupado com o pão na mesa do desvalido. De outro, o rico — sai da bolha!— que quer o pobre em casa, passando fome, morrendo de fome, mas sem lhe transmitir doença. Importante realçar esta marca de personalidade do abastado egoísta: se mostrar preocupação com o colapso do SUS, estará mentindo. Relevante também — para a correta caracterização das nuances — que esse alienado não seja confundido com o empreendedor dinâmico que quer o povo no trem, no rumo do batente, imunizando-se enquanto trabalha para gerar riqueza.

Hora de apresentar os artistas do espetáculo: o vírus chinês (comunista, outrora gripezinha), o isolamento social caviar (luxo elitista, coisa de governador almofadinha) e o remédio do Bolsonaro, a cloroquina (ainda carente de chancela científica, mas já largamente ministrada para a exploração personalista) — contra cuja eficácia os céticos torcem porque seu sucesso seria uma vitória do presidente.


Todo esse elenco de bárbaros a se bater sob a discreta direção da mentalidade autoritária, aquela graças à qual — sem percebermos — passamos a considerar normal, até mesmo bom, que um irresponsável autoritário eleito seja tutelado por generais; ou que, como resposta à sociopatia de um governante, outro fale em encarcerar os que furarem uma quarentena. (Sim, sei que há base jurídica no Código Penal; da mesma forma que, na Constituição, estão previstos os recursos aos estados de defesa e de sítio.)

Tratemos, portanto, da trilha sonora. Democratas — se democratas forem — devem atentar à música que põem para tocar em tempos de exceção. Convém não se esquecer do guarda da esquina. O concurso por quem pode mais em compasso excepcional convida ao baile dançarinos que não se deveria querer no salão. Ou, como explicaria Bolsonaro (em idioma próprio), “para toda ação desproporcional a reação também é forte.”

Falemos sobre iluminação — que não equivale a luzes. Todo esse plantel de autocratas por vocação (ou ignorância) e de golpistas em potencial a encenar tamanha comédia no mais absoluto escuro — isto enquanto o Ministério da Saúde do doutor Mandetta (o herói por contraste, homem modesto cuja simples razoabilidade, por oposição ao chefe, erigiu um Oswaldo Cruz) continuar incapaz de responder a este breve conjunto de perguntas: quantos testes já foram aplicados no Brasil?; quantos são aplicados diariamente?; qual o critério para aplicação?

Assim se achata — pressionada pela miséria moral sanitária — a curva do debate público brasileiro. Politizamos vírus, reclusão e medicamento — essa baixaria toda enquanto tateamos no breu. É o que chamo de as pestes dentro da peste. Uma delas — talvez política de Estado: a subnotificação; aquela que, associada à quarentena, é prece ao autoritarismo. Prudência com a valsa, senhores democratas. Decretar isolamento social sem promover testes em massa — por meio dos quais projetar algum futuro relaxamento nas restrições — é concentrar poder excepcional, por tempo indeterminado, na mão do Estado. Há quem aprecie o clima.

A chaga da subnotificação; a mesma que abaliza o presidente quando diz que o pior já terá passado. Subnotificação que — até a imposição da realidade — alicerçará o discurso irresponsável de que a reação à Covid-19 era mesmo histérica e o bicho, não tão feio. Até lá, o bolsonarismo aloprará — cantará vitória — se valendo da ilusão estatística e se apegando a princípios que sempre desprezou (os constitucionais, por exemplo) para empurrar as gentes à normalidade; e a normalidade de uma pandemia é caos e cadáveres.

Atenção, senhores democratas: não mordam a isca. Bolsonaro — cuja compreensão de liberdade contempla ter torturador por ídolo — apenas instrumentaliza, como provocação, o direito fundamental de ir e vir. Não o queiram chamar para uma corrida pelo posto de quem pode lançar mais mão de canetadas discricionárias.

A verdade do Messias


Homens peçonhentos

Relendo velhos livros ao acaso, encontro um exemplar de “Ethiopia Oriental”, do missionário português João dos Santos (1570-1625), e nele tropeço com a curiosa história de “um homem, na Ilha de Ormuz, ruivo e sardo, o qual era tão peçonhento que todas as moscas que pousavam na sua cabeça, ou mãos ou rosto, logo morriam se lhe picavam, e se não lhe picavam ficavam atordoadas, sem poder voar.”

Ormuz é uma pequena ilha pertencente ao atual Irã, no Golfo Pérsico. A partir do século XVI, diversas famílias árabes saíram dali, fixando-se ao longo da costa oriental de África. Muitas enriqueceram comerciando marfim, ouro, pau preto, panos, cera e pessoas. Suspeito que um descendente daquele peçonhento homem de que nos falava frei João dos Santos vive até hoje na Ilha de Moçambique. Abdulaziz, um velho seco, áspero, com um rosto anguloso e solene, tem fama de curar as mordidas de víbora com a própria saliva. Sem surpresa, as víboras morrem quando o mordem — bem como, assegura ele, escorpiões, aranhas e até os terríveis peixes-dragão.


Em Kampala, em Uganda, vive um outro homem, Joe Rwamirama, de 48 anos, cujos puns matam todos os mosquitos num raio de cem metros, pelo menos. A notícia surgiu no final do ano passado, em muitos jornais do mundo (podem confirmar no Google). Joe afirma que a família e vizinhos estão protegidos da malária graças ao poder da sua elaborada flatulência. O camponês manifestou-se disposto a ceder os seus gazes íntimos à ciência. Fabricantes de repelentes, revelou ele, já o contactaram com a intenção de produzir em laboratório os famosos puns, engarrafá-los (digamos assim) e comercializá-los. Sugiro que batizem o produto de Punzex, em homenagem àquela que é, até agora, a mais conhecida marca de repelentes que se comercializa em África — a Mijex (é verdade, também podem confirmar no Google).

Caso um pouco diferente é o do norte-americano Tim Friede, um ex-motorista de caminhões, que ao longo dos últimos 20 anos se fez picar mais de 200 vezes por todo o tipo de cobras venenosas, incluindo a terrível mamba negra. Friede sujeita-se a esse tormento com o objetivo de adquirir imunidade e, na sequência disso, desenvolver um antídoto universal.

A produção de antídotos contra o veneno de cobras segue há décadas o mesmo procedimento: uma pequena quantidade de veneno é injetada em cavalos e, em seguida, os anticorpos do animal são extraídos do seu sangue. “Basicamente, me torno o cavalo”, explica Friede. “Por que não podemos nos tornar imunes?”

Os médicos dividem-se quanto ao esforço de Friede. Uns consideram-no um herói. Outros, uma pessoa estúpida ou muito perturbada, com tendências suicidas.

Abdulaziz, Joe e Tim são, todos eles, homens venenosos. Contudo, usam o seu veneno em benefício da comunidade. Conclusão: pode ser que a natureza, o destino, o acaso, ou todos esses elementos em conjunto, tenham feito de si uma pessoa particularmente peçonhenta; ainda assim, você tem sempre a possibilidade de transformar em remédio o próprio veneno. A escolha é sua.

E não, juro que não estava a pensar em Jair Bolsonaro enquanto escrevia esta coluna.
José Eduardo Agualusa

Bolsonaro se isola do resto do mundo obcecado por seu messianismo perigoso

Entre os transtornos psiquiátricos que afetariam o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, apontados por um grupo de psicanalistas à Folha de S. Paulo figura seu messianismo de querer resolver o drama do coronavírus de forma milagrosa. Assim, se distancia do consenso mundial da ciência que afirma que ainda não existe nenhuma evidência médica de cura fora de uma possível vacina.

Esse messianismo do líder brasileiro e seu falso dilema de que seria preciso escolher que as pessoas morram de fome se forem isoladas ou do novo coronavírus pode levar a um perigoso e fatal equívoco.


Desse modo, o presidente isola o Brasil do resto do mundo, onde ainda não foi encontrada uma forma melhor de evitar que o novo vírus continue matando milhares de pessoas do que o isolamento social. Não por acaso estão sendo aconselhados Governos de unidade nacional para melhor fazer frente à tragédia. O inimigo que assombra o mundo é forte demais para que se possa brincar com ele com cálculos simplistas de política menor. É hora de o mundo estar nas mãos de todas as forças mais bem preparadas para enfrentar o perigo juntos, sem distinções ideológicas.

Já se sabe que todos os messianismos, usados e abusados pelos líderes populistas de todas as tendências políticas, são perigosos porque o ser humano é inclinado a acreditar em receitas milagrosas. Assim, os brasileiros podem acabar sendo arrastados pela miragem do presidente, desobedecendo autoridades ao afrouxar o isolamento, como já se viu em São Paulo e em outras localidades, com consequências que podem ser fatais.

Ao longo da história, os falsos profetas acabaram sendo os maiores assassinos e enganadores das pessoas simples e menos escolarizadas.

Em um país como o Brasil, com um forte componente religioso, brincar com receitas oferecidas pelos pastores ao presidente que consideram ungido por Deus para acabar com a peste é voltar ao obscurantismo da Idade Média, como já lembrei em outra coluna. Pretende-se, como então, substituir a ciência e a medicina por receitas de cunho messiânico.

Insistir como faz o presidente nessa volta aos tempos tristes em que a religião se apoderava da ciência e da medicina hoje significa isolar o Brasil do resto do mundo, onde a ciência está se unindo para dar uma resposta segura à doença mortal que possa evitar tanta morte e tanta dor.

Hoje está claro que nada nem ninguém será capaz de fazer o presidente brasileiro recuar de seu messianismo. Assim, os altos militares de seu Governo se equivocam se acreditam que basta que eles retoquem os discursos do presidente nas redes de rádio e televisão.

Vimos como essa falsa conversão dura menos de 24 horas para o presidente e em seguida sintoniza com o chamado “gabinete do ódio”, e multiplicado pelas redes sociais dominadas pelo seu pequeno grupo de seus seguidores mais fanáticos.

Daí a responsabilidade dos militares presentes no Governo, que deveriam entender neste momento que nem eles são mais capazes de fazer mudar a índole psicológica do ex-capitão Bolsonaro nem de conter seus arroubos autoritários. Não é um paradoxo que, na esperança de que o Brasil possa continuar sendo uma democracia sem ameaças contínuas de golpes autoritários, o país esteja hoje nas mãos dos militares?

Que a democracia conquistada no Brasil com dor e lágrimas depois da ditadura militar esteja hoje ameaçada pela personalidade totalitária do presidente já não é um segredo. Como tampouco o é que o presidente continue defendendo e exaltando a ditadura e a tortura, algo que o melhor do Exército, especialmente os mais jovens, hoje rejeitam e desejam esquecer, como soube esta coluna de testemunhas nos quartéis.

Esses ímpetos absolutistas do presidente só poderiam ser paralisados pelos importantes militares que continuam em seu Governo e que se equivocariam se pensarem que são capazes de detê-lo. Eles deveriam entender que, na realidade, o presidente já não governa.

Quando os militares decidiram entrar em um Governo saído das urnas foi dito que era uma maneira de mostrar que eles respeitariam a democracia e a Constituição.

Portanto, a esperança de que Bolsonaro renuncie a um poder que já não consegue exercer não passa tanto pela longa e complexa liturgia do impeachment ou pelas formas jurídicas de demissão forçada, mas pela esperança de que os militares sejam capazes de convencê-lo a se retirar para o bem da nação.

Depois da ditadura, os militares brasileiros deram provas de ter abraçado os valores da democracia e aceitado a Constituição. E assim foi entendido pela opinião pública, que, segundo as pesquisas, considera o Exército uma das instituições mais confiáveis do país.

São horas difíceis e perigosas para um país da importância do Brasil no xadrez mundial e, embora possa parecer um paradoxo em um país sul-americano, hoje a resolução da crise de Governo por que o país está passando, e que flerta com os tempos sombrios do autoritarismo, recai nas mãos dos militares.

Seria trágico se hoje a opinião pública brasileira também perdesse sua confiança nessa instituição se ela se mostrasse incapaz de deter os arroubos messiânicos e autoritários do presidente capitão aposentado, que muito jovem foi expulso do Exército. E que hoje ameaça até os generais de seu Governo, lembrando-lhe que agora o presidente é ele e somente ele.

O Brasil vive um daqueles momentos históricos em que um erro de cálculo pode arrastar o país para uma aventura da qual um dia terá de se arrepender.

Quarentena

A quarentena continua e, por esta altura, já sabemos que será muito mais longa do que se podia prever. Estamos em confinamento há muitos dias e, se há coisas que se aligeiraram pela força do hábito, outras pesam mais agora, pelo cansaço e pelas reflexões que o tempo maturou.

Para nós, as últimas semanas têm sido bastante serenas, apesar de não termos trabalho nem previsão de voltar a ter. Já nos cancelaram a agenda até ao final de junho e, além da possibilidade de cancelarem ainda mais, há muito que não se marcou por estar tudo suspenso. Ou seja, não é só a agenda que se perde, é também a que não se marca, nesta incerteza que paralisou tudo. Estamos preocupados, obviamente, mas sobretudo pelas nossas equipas, pelas agências, pelos colegas. É que a sorte de termos conseguido poupar dinheiro para tempos difíceis tem permitido menos angústia familiar, mas essa não é, infelizmente, a realidade da maioria dos trabalhadores do setor da cultura.

A romantização da quarentena (como se lê em muitas janelas espanholas e italianas) é, de facto, um privilégio de classe. Estar em confinamento sabendo que a cada dia que passa o dinheiro está mais perto de esgotar, que o negócio está mais perto de falir, e que as obrigações estão mais perto do prazo de pagamento, é muito diferente de estar em casa com o salário garantido. A angústia de estarmos a viver uma pandemia, com todos os medos que isso acarreta, somada à angústia da falência iminente e da crise económica que se aproxima, faz da quarentena toda uma outra experiência.

Assim como é muito diferente estarmos em confinamento numa casa espaçosa, confortável, com espaço exterior, equipada com televisão, internet e com livros à disposição, do que estarmos, como acontece agora em todas as favelas brasileiras, amontoados numa assoalhada com toda a família, em condições de grande precariedade e sem acesso às mais básicas condições de salubridade.

É diferente estarmos de quarentena aproveitando o tempo, serenamente, para ler, arrumar a casa, ver filmes e cozinhar alegremente, do que ser uma mãe sozinha com filhos pequenos e em teletrabalho. Sem mãos a medir, acumulando a lida doméstica, o emprego que não se pode perder e a gestão dos filhos sempre em casa e com obrigações escolares a cumprir.

É diferente estarmos de quarentena em família, usufruindo do convívio para amenizar o confinamento, ou estar completamente só, durante semanas ou meses, isolado de quem mais se ama e exposto a esta gigante provação à saúde mental. Assim como é diferente estarmos em paz e em segurança, ou sob violência física e psicológica, como tantas mulheres para quem a casa não é um lugar seguro e que agora são obrigadas a estar em confinamento com o seu agressor, 24 horas por dia.

É também muito diferente estarmos em isolamento profilático, saudáveis e funcionais, ou estarmos doentes, com este vírus ou outra maleita qualquer, inseguros se devemos ir ou não às urgências, tendo de esperar muitas horas por um atendimento telefónico, aguardando análises ou exames cada vez mais difíceis de conseguir, e num momento de grande sobrecarga dos equipamentos de saúde.

A quarentena é um tempo em que a nossa condição se agiganta. Estamos confinados mais do que nunca às nossas circunstâncias. O corpo, a casa, a família e a nossa condição financeira são determinantes para definir os impactos que este momento histórico pode ter nas nossas vidas. E apesar de ninguém estar imune ao vírus, a nossa idade, a nossa saúde, as nossas condições de vida e a nossa capacidade de gerir emocionalmente a própria experiência de confinamento e de doença são diferentes e podem, de facto, fazer a diferença. Por tudo isto, é importante que o nosso sentido comunitário se agigante também, pois só assim podemos partilhar os privilégios e amenizar o peso que, sabemos, tende a pender sempre para o lado mais frágil.
Capicua