terça-feira, 14 de abril de 2020

Homens peçonhentos

Relendo velhos livros ao acaso, encontro um exemplar de “Ethiopia Oriental”, do missionário português João dos Santos (1570-1625), e nele tropeço com a curiosa história de “um homem, na Ilha de Ormuz, ruivo e sardo, o qual era tão peçonhento que todas as moscas que pousavam na sua cabeça, ou mãos ou rosto, logo morriam se lhe picavam, e se não lhe picavam ficavam atordoadas, sem poder voar.”

Ormuz é uma pequena ilha pertencente ao atual Irã, no Golfo Pérsico. A partir do século XVI, diversas famílias árabes saíram dali, fixando-se ao longo da costa oriental de África. Muitas enriqueceram comerciando marfim, ouro, pau preto, panos, cera e pessoas. Suspeito que um descendente daquele peçonhento homem de que nos falava frei João dos Santos vive até hoje na Ilha de Moçambique. Abdulaziz, um velho seco, áspero, com um rosto anguloso e solene, tem fama de curar as mordidas de víbora com a própria saliva. Sem surpresa, as víboras morrem quando o mordem — bem como, assegura ele, escorpiões, aranhas e até os terríveis peixes-dragão.


Em Kampala, em Uganda, vive um outro homem, Joe Rwamirama, de 48 anos, cujos puns matam todos os mosquitos num raio de cem metros, pelo menos. A notícia surgiu no final do ano passado, em muitos jornais do mundo (podem confirmar no Google). Joe afirma que a família e vizinhos estão protegidos da malária graças ao poder da sua elaborada flatulência. O camponês manifestou-se disposto a ceder os seus gazes íntimos à ciência. Fabricantes de repelentes, revelou ele, já o contactaram com a intenção de produzir em laboratório os famosos puns, engarrafá-los (digamos assim) e comercializá-los. Sugiro que batizem o produto de Punzex, em homenagem àquela que é, até agora, a mais conhecida marca de repelentes que se comercializa em África — a Mijex (é verdade, também podem confirmar no Google).

Caso um pouco diferente é o do norte-americano Tim Friede, um ex-motorista de caminhões, que ao longo dos últimos 20 anos se fez picar mais de 200 vezes por todo o tipo de cobras venenosas, incluindo a terrível mamba negra. Friede sujeita-se a esse tormento com o objetivo de adquirir imunidade e, na sequência disso, desenvolver um antídoto universal.

A produção de antídotos contra o veneno de cobras segue há décadas o mesmo procedimento: uma pequena quantidade de veneno é injetada em cavalos e, em seguida, os anticorpos do animal são extraídos do seu sangue. “Basicamente, me torno o cavalo”, explica Friede. “Por que não podemos nos tornar imunes?”

Os médicos dividem-se quanto ao esforço de Friede. Uns consideram-no um herói. Outros, uma pessoa estúpida ou muito perturbada, com tendências suicidas.

Abdulaziz, Joe e Tim são, todos eles, homens venenosos. Contudo, usam o seu veneno em benefício da comunidade. Conclusão: pode ser que a natureza, o destino, o acaso, ou todos esses elementos em conjunto, tenham feito de si uma pessoa particularmente peçonhenta; ainda assim, você tem sempre a possibilidade de transformar em remédio o próprio veneno. A escolha é sua.

E não, juro que não estava a pensar em Jair Bolsonaro enquanto escrevia esta coluna.
José Eduardo Agualusa

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